Cap. 2 - Onde o Medo Dorme
O grupo havia acabado de deixar o porto quando foi abordado novamente pelos mascarados. O líder deles, ainda segurando a prancheta, parou na esquina de uma rua e ergueu a mão, sinalizando para que parassem.
— Não há espaço suficiente para todos no mesmo alojamento. Vocês precisarão se dividir.
— Dividir? — Lyra ergueu as sobrancelhas. — Não podemos ficar juntos?
— Acabei de dar uma olhada na lista e nem todos os lugares têm capacidade para quatro pessoas. — O mascarado olhou para a prancheta novamente, ignorando o tom irritado dela. — Há uma pousada a duas quadras daqui que pode acomodar duas pessoas. As outras duas irão para outra pousada, mais próxima à árvore.
Jean franziu a testa, tentando entender a lógica da situação.
— E se recusarmos?
— Não têm escolha. — A voz do mascarado era fria. — É isso ou ficam nas ruas.
— Parece bem democrático. — Wilda cruzou os braços.
Konstantin deu um passo à frente, tentando manter a calma.
— Certo, então quem vai para onde?
O guarda apontou para Lyra e Wilda.
— As duas vão para a pousada mais próxima. É a mais segura. Vocês dois… — Ele olhou para Jean e Konstantin. — Vão para outra mais ao norte.
Lyra arquejou, já com os braços cruzados.
— Ótimo. Separados, no meio de uma quarentena. Grande ideia!
— Vamos nos encontrar depois. — Jean lançou um olhar significativo para ela. — É temporário. Se ficarmos calmos, isso não será um problema.
— Fácil pra você dizer — respondeu Lyra, mas sem insistir.
Com o grupo decidido, o mascarado os dividiu, guiando Lyra e Wilda para uma rua mais próxima. O caminho era estreito, flanqueado por casas de pedra que pareciam ter décadas, senão séculos. As janelas estavam todas fechadas, algumas com tábuas pregadas, e o silêncio era tão denso que o som de seus passos parecia ecoar. Finalmente, o guarda parou em frente a uma construção robusta, de aparência antiga, mas bem cuidada. Ele tocou a campainha e aguardou. A vestimenta dos guardas era intimidadora. Com cores pretas e detalhes dourados que eram refletidos pelo sol, ninguém tinha peito para bater de frente.
— Aqui vocês terão segurança. — Ele olhou para elas com a voz abafada pela máscara. — Não desperdicem isso.
Antes que Lyra pudesse responder, a porta se abriu. O homem idoso que as recebeu parecia rígido, mas não hostil. A sua barba era rala e possuía um óculos tão pequeno no rosto que chegava a ser cômico. Ele olhou para as duas, claramente avaliando se eram confiáveis, antes de abrir a porta por completo.
— Mais visitantes? — Ele suspirou, com um tom cansado. — Sigam-me.
A entrada da pousada era simples, mas acolhedora. As tábuas de madeira do chão rangiam levemente, e o cheiro de cera antiga e poeira pairava no ar. O velho gesticulou para que subissem as escadas, apontando para o andar superior.
— Os quartos 13 e 14 são os únicos disponíveis. Não façam barulho. E tranquem suas portas.
Lyra olhou ao redor, ainda desconfiada.
— É só isso? Nenhuma explicação sobre o que tá acontecendo lá fora?
O velho parou, virando-se para ela com um olhar severo.
— Sigam as regras. É só o que precisam saber.
Wilda observou a interação sem dizer nada, mas claramente prestando atenção ao tom do homem. As duas seguiram para os quartos e entraram. O cômodo era pequeno e simples, mas limpo na medida do possível.
— Já vi piores — comentou Wilda, olhando em volta enquanto se encostava na porta.
Lyra não respondeu. Ela estava na janela, olhando para a rua vazia abaixo.
— Esse local é muito estranho…
Jean e Konstantin caminharam sem falar pela rua indicada pelos mascarados. O caminho era mais escuro, com becos estreitos e pouca iluminação. As pedras das calçadas estavam rachadas, e o ar parecia ainda mais pesado ali. Konstantin observava cada canto como se esperasse que algo saísse das sombras. Jean, por outro lado, mantinha o olhar fixo à frente, como se tentasse decifrar o destino deles antes mesmo de chegarem.
— Eles realmente nos mandaram para o lado ruim da cidade, não é? — Konstantin reclamou.
Jean não respondeu de imediato. Ele respirou fundo antes de murmurar:
— Parece que sim. Mas algo me diz que isso não foi por acaso.
O prédio que encontraram no final da rua era muito diferente da pousada das meninas. A fachada estava desgastada, com a pintura descascada e as janelas parcialmente cobertas por panos. No entanto, havia uma pequena placa de madeira sobre a porta, com letras entalhadas à mão que diziam “Hospedaria do Pôr do Sol”.
— Um nome otimista pra um lugar tão deprimente. — Konstantin comentou, empurrando a porta com cuidado.
O interior não era muito melhor. O hall de entrada era apertado, com móveis antigos e mal cuidados. O cheiro de mofo misturava-se a um aroma estranho de ervas queimadas. Atrás de um balcão gasto, um homem idoso ergueu os olhos com evidente desconfiança. Ele tinha cabelos ralos e um olhar cansado, porém firme.
— Visitantes novos? — Sua voz era grave e direta. — Não tenho muito espaço.
— Estamos cientes disso. — Jean deu um passo à frente, tentando manter um tom cordial. — Precisamos apenas de um lugar seguro para passar a noite.
O velho franziu a testa.
— Tenho um quarto disponível. Segundo andar. Mas, se querem minha opinião, é melhor não subirem.
— Por que não? — Konstantin estreitou os olhos.
— Porque está lotado. — Ele apontou para as escadas, de onde o som abafado de tosses podia ser ouvido. — Gente dormindo no chão, nos corredores. O que sobrou é o caos.
Jean trocou um olhar rápido com Konstantin antes de se virar para o velho.
— Há alguma outra opção?
O velho coçou o queixo, como se pensasse por um momento, antes de gesticular para uma porta ao lado do balcão.
— Tem a minha sala, onde minha filha está dormindo. Se pagarem bem, podem ficar lá. É pequena, mas limpa.
— Parece melhor do que o andar de cima. — Konstantin olhou para Jean, que assentiu sem hesitar.
— Fechado. — Jean colocou um saco de moedas sobre o balcão.
O velho nem questionou a quantia exorbitante e pegou o dinheiro sem pensar. Logo, saiu de trás do balcão, guiando-os até a porta lateral. A sala que ele ofereceu era modesta, com duas camas improvisadas e uma lareira apagada. Apesar de simples, era um alívio em comparação ao que tinham imaginado no andar de cima.
— E não saiam à noite. — O velho disse enquanto os deixava. — Não importa o que ouçam.
Antes que Jean ou Konstantin pudessem perguntar o que ele queria dizer com isso, ele saiu, fechando a porta atrás de si.
Por um momento, os dois ficaram em silêncio, ouvindo as tosses do segundo andar e o som ocasional de passos pesados vindo de fora. Konstantin se aproximou da lareira e abaixou-se para observá-la.
— Já estive em muitos lugares ruins, mas algo aqui… — Ele parou, escolhendo as palavras. — Algo aqui não parece certo.
Jean sentou-se em uma das camas, olhando para a porta por onde o velho saiu.
— Nada nesse lugar parece certo.
A lareira apagada no canto da sala parecia refletir a frieza do lugar. Jean estava sentado em uma das camas improvisadas, com os olhos fixos no chão, enquanto Konstantin andava de um lado para o outro. O silêncio era interrompido apenas pelo som constante de um líquido borbulhante em um tipo de aparelho respiratório ao lado do sofá.
Na penumbra, a figura de uma menina coberta por edredons parecia ainda menor do que era. Os tubos que saíam do respirador estavam conectados ao rosto dela, e um líquido transparente fluía lentamente, preenchendo o ambiente com um som quase hipnótico.
— É assim que eles sobrevivem… — murmurou Konstantin, parando perto da janela. Sua voz estava carregada de frustração. — Se é que isso pode ser chamado de sobrevivência.
Jean ergueu os olhos, mas não respondeu de imediato. Ele sabia que Konstantin estava no limite desde que chegaram à ilha.
— É cruel, eu sei. — Jean finalmente disse, baixo. — Mas talvez seja o melhor que o pai dela pode fazer.
Konstantin virou-se para ele com o rosto sério.
— Não é só cruel, Jean. É errado. O que estamos fazendo aqui? Nós nem deveríamos estar nessa ilha.
Jean levantou-se devagar, cruzando os braços.
— Estamos aqui porque não tínhamos outra opção. Viemos atrás do nosso dinheiro, e pelo destino chegamos aqui no meio dessa situação. Agora… talvez possamos fazer alguma coisa.
— Fazer o quê? — Konstantin apontou para o sofá onde a menina estava. — Olha pra isso. Você acha que pode salvar essa gente? Não tem como.
Jean respirou fundo, aproximando-se da janela onde Konstantin estava.
— Eu não acho que posso salvar todo mundo. Mas isso não significa que não devemos tentar.
Konstantin passou a mão pelo cabelo, frustrado.
— Jean, eu só quero sair daqui. Por nós. Por você, pela Lyra, pela Wilda e pelo Tião. A gente precisa voltar pro nosso mundo, não ficar preso num lugar que já está afundando. Capaz de nos afundarmos com eles.
Jean o observou por um momento, seus olhos carregados de algo além da simples razão que costumava guiá-lo.
— Eu entendo, Konstantin. De verdade. Mas, se a gente sair agora… o que vai acontecer com eles?
— Eles não são problema nosso. — Konstantin virou-se, encarando Jean diretamente. — Eles nunca foram.
Jean hesitou, mas depois apontou para o sofá onde a menina estava.
— Então olha pra ela. Me diz que consegue simplesmente virar as costas e fingir que ela não existe.
Konstantin seguiu o olhar de Jean. A menina permanecia imóvel com apenas seu peito subindo e descendo lentamente. O barulho somente da máquina mexeu com seu pensamento. Não havia palavras entre eles, apenas uma conexão silenciosa.
— Você realmente acha que a gente pode fazer algo por eles? — Konstantin perguntou, mais baixo agora.
Jean assentiu.
— Talvez não por todos. Mas por alguns, sim. E, às vezes, isso é o suficiente.
O silêncio caiu novamente entre eles. O velho, que a alguns minutos estava na cena, volta com um cobertor em mãos. Ele olha para os dois brevemente, mas não diz nada. Logo ajusta mais um sobre ela, como se aquele pequeno gesto pudesse protegê-la de todo o horror ao redor. Konstantin suspirou profundamente e voltou a se sentar na beira da cama.
— Se você está tão certo disso… então vamos descobrir como. Mas eu não prometo nada, Jean.
— Isso já é o bastante. — Jean respondeu, com um leve sorriso.
Os dois ficaram em silêncio por mais um tempo, cada um olhando para um ponto fixo, enquanto o som do respirador preenchia o cômodo, lembrando-os da fragilidade daquela ilha e de todos que ainda resistiam ali.
A luz da vela no quarto de Wilda tremulava, lançando sombras dançantes nas paredes de pedra. Ela estava sentada na beira da cama com as pernas cruzadas, enquanto afiava a lâmina de sua adaga com movimentos precisos e automáticos. Não era que a adaga precisasse de manutenção, mas o som da pedra raspando na lâmina era a única coisa que mantinha sua mente longe da preocupação constante. A porta entreaberta deixou escapar o som do ranger de tábuas do quarto ao lado. Lyra estava andando de um lado para o outro, o som de seus passos ecoando pela madeira.
— Você vai gastar o chão desse quarto. — Wilda ergueu a voz, com o tom leve, mas carregado de sarcasmo.
— Não consigo dormir. — Lyra apareceu na porta, os braços cruzados, o olhar cheio de irritação. — Tem algo nesse lugar que me deixa… inquieta.
Wilda sorriu de canto, mas não respondeu. Lyra entrou no quarto, sentando-se na cadeira ao lado da mesa com um suspiro exagerado.
— Você também não parece muito tranquila. — Lyra observou, apontando para a adaga na mão de Wilda.
— Porque não estou. — Wilda respondeu sem desviar os olhos da lâmina. — O Tião está naquele hospital, cercado por gente doente e… sei lá, guardas mascarados. Ele deveria estar aqui.
Lyra se recostou na cadeira, cruzando os braços.
— Tião sabe se cuidar. Mais do que a maioria. Ele não é o problema.
Wilda finalmente parou de afiar a adaga e olhou diretamente para Lyra.
— E qual é o problema, então?
— Essa ilha inteira. — Lyra respondeu de imediato. — Não faz sentido. Essa história de quarentena, esses mascarados, a maldita árvore no centro de tudo. Parece que estamos presos em uma armadilha e nem sabemos quem a montou.
— Você sempre tem um jeito otimista de ver as coisas. — Wilda voltou a olhar para a adaga, mas havia um traço de preocupação em seu rosto.
— E você acha que estou errada? — Lyra inclinou-se para frente, apoiando os cotovelos nos joelhos. — O que vimos no porto? Isso aqui não é só uma ilha isolada por doença. Tem algo mais.
Wilda ficou em silêncio por um momento. Ela também sentia que havia algo errado, mas não sabia como colocar isso em palavras. Em vez disso, disse:
— Ainda assim, não podemos fazer nada até entendermos mais. Correr sem saber pra onde vai só te faz dar de cara com um muro.
Lyra resmungou.
— Sempre tão racional, né?
— Alguém precisa ser. — Wilda sorriu de lado, mas logo seu rosto ficou sério novamente. — Mas, Lyra… se algo acontecer com o Tião, ou com algum de vocês, eu vou derrubar esse lugar.
— Você não vai ser a única. — Lyra respondeu, a voz mais baixa, mas carregada de determinação.
Por um momento, as duas ficaram em silêncio. Wilda voltou à adaga, enquanto Lyra olhava para o pequeno espaço do quarto, inquieta.
— Sabe o que mais me incomoda? — Lyra disse, depois de um tempo. — Esse velho. Ele sabe mais do que diz.
— Isso é óbvio. — Wilda murmurou. — Ninguém fica em um lugar desses sem saber o que está acontecendo.
— Então por que ele nos deixou ficar? — Lyra perguntou, cruzando os braços novamente.
Wilda parou de afiar a lâmina e olhou para Lyra.
— Talvez ele precise de gente como a gente.
— Ou talvez ele só esteja esperando o momento certo pra nos trair. — Lyra retrucou.
— Ou talvez ele só esteja tão perdido quanto nós. — Wilda respondeu, guardando a adaga. — Nem todo mundo tem segundas intenções, Lyra.
Lyra fica quieta. Ela olhou para a janela do quarto, para a cidade adormecida além.
— Talvez você esteja certa. Mas eu não confio nele. Não confio em ninguém aqui.
Wilda apenas assentiu. Ela também não confiava. Mas isso não a impedia de tentar entender. A chama da vela oscilou novamente, lançando novas sombras nas paredes. Lá fora, o silêncio parecia pesado, como se a própria ilha segurasse para não pisar em falso e acabar caindo na vastidão do caos.
FIM DO SEGUNDO CAPÍTULO
_________________________________________ PERSONAGENS DO CAPÍTULO _________________________________________
Konstantin

Jean

Lyra

Wilda

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