Após aquela pausa, aquela breve eternidade entre flores douradas e chá quente, voltamos à rotina. Ou melhor, Oliver nos puxou de volta a ela com a delicadeza de um trovão.

    Na manhã seguinte, quando abri os olhos ainda com o cheiro dos cabelos de Perséfone preso à memória, ele já estava ali. Sentado na beirada da torre mágica, como se nunca tivesse saído, equilibrando o cachimbo entre os dentes e empilhando livros como um castelo de cartas.

    — Dormiu bem, jovem apóstolo? — disse ele, sem me olhar. — Espero que sim. Porque agora começa a parte que realmente separa os conjuradores dos encantadores de festa de vila.

    Voltei a sentir a rigidez nas veias. O corpo doía, não de esforço físico, mas da alma sendo lapidada à força. O grau três de pureza de mana não era só um número, era um divisor de mundos.

    Oliver levantou, soprou uma nuvem de fumaça púrpura que tomou a forma de círculos concêntricos flutuando no ar.

    — Terceiro círculo — anunciou. — Onde os feitiços começam a deixar de ser meras ferramentas e passam a alterar o curso da realidade.

    Pers apareceu alguns minutos depois, com um vestido novo. Preto como a meia-noite, salpicado de fios prateados como se alguém tivesse costurado o céu nela. Não falou nada. Sentou-se no alto da escadaria espiral da torre e apenas observou. Havia algo nos olhos dela… uma expectativa silenciosa.

    Oliver apontou para os círculos de fumaça.

    — Feitiços do terceiro círculo exigem concentração, estrutura e… intenções claras. 

    Ele estalou os dedos e a fumaça tomou a forma de uma lança feita de vento, que disparou num estalo e atravessou uma estátua de pedra próxima, deixando apenas fragmentos voando.

    — Primeiro, conjuração de rajadas elementais ampliadas. Pode escolher: vento, gelo ou eletricidade. Vamos com gelo. Porque é traiçoeiro. Como a política.

    Ele estendeu a mão. A mana vibrava ao redor dele como uma orquestra invisível. Da palma, nasceu uma flecha azulada, dançando com cristais de gelo girando ao redor. A temperatura caiu.

    — Isso se chama Espinho de Inverno. Não é um feitiço para ferir. É para imobilizar. Congelar pensamentos, paralisar avanços. Use-o para deter, não para destruir.

    Tentei. As mãos tremiam. A mana não saía fluida como antes, era pesada, espessa, como se eu estivesse tentando puxar um rio com as próprias veias. Concentrei-me. O ar ao meu redor escureceu, a temperatura caiu… e falhei.

    O gelo formou-se, mas desabou no chão como cacos de uma taça mal soprada.

    — De novo — disse Oliver, sem dó. — Os caminhos ainda estão impuros. Mas o grau três permite isso. Está tudo aí, basta lapidar.

    Tentativa após tentativa. O gelo ganhou forma. Depois peso. Depois direção. Até que, enfim, em uma conjuração precisa e desesperada, a flecha de gelo cortou o ar e perfurou uma das colunas de teste que Oliver havia erguido.

    Ele sorriu.

    — Agora sim. Começamos.

    Outros feitiços vieram. Um escudo rotativo de vento que podia redirecionar flechas. Um encantamento de aceleração dos reflexos. Um círculo de runas que silenciava magias por alguns segundos. Todos exigiam mais do que mana. Exigiam intenção clara, precisão mental, e um controle emocional que beirava o impossível.

    E eu… falhava. Mas falhava cada vez melhor.

    Até que Oliver soprou outra nuvem, dessa vez em forma de ampulheta.

    — O tempo corre, Hades. Se quiser ser digno do que carrega dentro de si, o terceiro círculo não pode ser seu limite. Mas por agora… — Ele me lançou um olhar que misturava respeito e cansaço. — Você o dominou. Com esforço. Como deve ser.

    Pers desceu os degraus em silêncio. Quando passou por mim, seus dedos tocaram levemente meu ombro.

    — Orgulho, Hades. Silencioso. Mas imenso. — disse ela, antes de desaparecer pela escada em espiral, como uma lembrança.

    E eu fiquei ali, sozinho com Oliver e o cheiro de gelo derretido no ar. Um degrau acima no abismo da magia. Sabendo que a cada círculo, menos humano eu me tornava e mais próximo do que Pers esperava que eu fosse.

    O tempo passava. Os dias se amontoavam como páginas viradas rapidamente num livro grosso e antigo, mas ainda assim, cada página queimava viva na memória. Oliver seguia incansável, me ensinando feitiços do terceiro círculo. Magias mais complexas, mais exigentes, que sugavam até o último resquício da minha vontade antes de se concretizarem no mundo real.

    Comecei a notar uma diferença estranha. Meus feitiços… estavam ficando escuros.

    Não no sentido de fracos ou turvos, ao contrário, eles pareciam mais densos, mais profundos, como se carregassem dentro de si o eco de um silêncio absoluto. Quando conjurava uma lança de gelo, ela era negra com reflexos de ametista, como uma estalactite caída da noite. Quando criava um escudo de vento, o ar ao meu redor rodopiava em redemoinhos escuros que pareciam sugar a luz ao invés de difundi-la. Era como se a própria morte espreitasse por entre as dobras das minhas conjurações.

    Comparei com os feitiços de Oliver: dele saíam como fogo dançante, luzes douradas, vapor, fumaça alegre. Os dele tinham cor de vida. Os meus, cor de ausência.

    — Oliver — perguntei um dia, após uma sessão exaustiva de conjuração onde criei três feitiços simultâneos e desabei de joelhos no chão de pedra da torre — por que os meus feitiços são assim?

    Ele tirou o cachimbo dos lábios, como sempre fazia quando o assunto era mais sério do que aparentava.

    — Assim como? — perguntou, já sabendo a resposta.

    — Escuros. Sombrios. Quase como se sugassem a luz do ar. É porque minha pureza de mana ainda é baixa? — indaguei, mesmo sabendo que não era só isso.

    Oliver olhou por cima do ombro, para o topo da escada espiral. Pers estava lá, como de costume. Sentada com os joelhos juntos, observando em silêncio. Seus olhos, aqueles olhos vermelhos, ardiam como brasas contidas.

    — Não — respondeu Oliver, voltando-se para mim. — Isso não tem nada a ver com sua pureza. Na verdade, tem a ver com sua essência.

    Ele caminhou até mim, os passos ecoando levemente.

    — Você está começando a manifestar a mana dela — apontou com o polegar para Pers lá em cima. — É raro. Extremamente raro. A maioria dos apóstolos apenas recebe bênçãos, ecos, impulsos. Mas você… você está se tornando parte do domínio dela.

    Olhei para minhas próprias mãos. Elas tremiam. A ponta dos dedos escurecida de tanto forçar conjurações além do que eu deveria suportar.

    — Todos os seus feitiços serão assim daqui em diante — completou Oliver, a voz baixa, quase reverente. — Sombrios. Belos. Irrevogáveis como a morte. A mana da Deusa da Morte flui em você, Hades.

    Pers não disse nada. Apenas cruzou os braços sobre os joelhos e inclinou o rosto, como se avaliasse a reação que eu teria.

    E, sinceramente… eu não sabia o que sentir.

    Não era medo. Não era alegria. Era um reconhecimento mudo, como se algo dentro de mim, algo muito antigo, já soubesse disso o tempo todo.

    A mana era escura, sim.

    Mas também era firme. Certeira. E estranhamente… bonita.

    Senti que, pouco a pouco, o que eu era deixava de importar. E o que eu estava me tornando… era inevitável.

    Pers desceu os degraus da torre devagar, como quem não queria interromper o momento. Seus pés descalços mal tocavam a pedra. O vestido negro esvoaçava com a brisa mágica que sempre parecia sussurrar ao redor dela. Quando se aproximou de mim, não havia mais distância entre Deusa e discípulo. Só havia os olhos dela nos meus e aquele brilho quente que desmentia o manto escuro da morte.

    Ela estendeu a mão e tocou meu rosto, os dedos leves como a pétala de um girassol caído.

    — Estou orgulhosa de você, Hades.

    As palavras foram ditas com doçura, mas carregavam um peso imenso. O tipo de peso que só os séculos conseguem moldar.

    — Você não faz ideia de quantos apóstolos não conseguem nem ao menos tocar a mana de seus Deuses. Quantos passam a vida inteira… tentando.

    Fez uma pausa, os olhos passeando pelos traços da minha face, como se decorasse ali um segredo seu.

    — Mas você não apenas tocou. Você deixou que ela fluísse. Fez dela sua. A minha mana… em você.

    Senti um arrepio subir pela espinha.

    Ela então sorriu, um sorriso sincero, quase infantil, mas cheio de uma graça que só os eternos conhecem.

    — Estou orgulhosa de mim também, sabe? Porque o primeiro apóstolo que escolhi…

    Inclinou-se um pouco, os lábios perto do meu ouvido, e sussurrou como quem conta um segredo para o próprio mundo.

    — É um dos mais especiais… e mais bonitos.

    Fiquei vermelho. Mesmo tendo cruzado os portões da morte, mesmo depois de tudo que já vivemos, aquela frase me desarmou por inteiro.

    Ela riu baixinho, divertida com a minha reação, e se afastou apenas o suficiente para me olhar de novo nos olhos.

    — Um dia, Hades… você vai entender o quanto significa o que está se tornando.

    E nesse instante, mesmo que o mundo lá fora girasse em guerras, reinos e perigos, mesmo que meu corpo doesse e a mana queimasse dentro das veias como brasas… por um instante, eu fui apenas isso: o escolhido de uma Deusa, sendo elogiado por ela.

    E tudo valeu a pena.

    Dias se passaram após dominar alguns feitiços do terceiro círculo. Meus feitiços estavam mais potentes, mais velozes, mais escuros. Eu já sentia o peso da mana da morte correr livremente pelas minhas veias purificadas. Oliver, por sua vez, observava em silêncio, fumando seu cachimbo com um brilho curioso nos olhos, aquele tipo de brilho que vem de um plano maior.

    Até que, certo dia, ele fez o que nunca pensei que faria de novo: invocou Moradina.

    A fumaça púrpura tomou a torre mágica, se adensando até formar a figura já conhecida: a Deusa anã, de estatura indecifrável, cabelos negros como carvão e olhos de pedra preciosa. Sua presença era como uma montanha viva: inevitável.

    — Desta vez, vai até a morte — disse Oliver, a voz mais grave do que de costume. — Ou você a vence, ou ela vence você. E, se morrer… bom, você já sabe o caminho de volta.

    Eu não hesitei. Lancei feitiços do terceiro círculo com tudo que tinha. Invoquei estalactites, correntes de terra, esferas de mana escura, tentei usar telecinese para mover a própria torre contra ela. A mana queimava nas veias como se cada feitiço tirasse um ano da minha existência.

    Mas Moradina era implacável. Sua resistência era absurda. Cada golpe que eu desferia era respondido com um contrafeitiço mais duro, mais inteligente, mais ancestral. Não era só força. Era tempo. Sabedoria. Experiência divina.

    Lutei até meu corpo começar a falhar. Minhas veias começaram a queimar demais, os pulmões não obedeciam, o mundo girava.

    E então… o silêncio.

    Eu soube que estava morto.

    Foi a mesma sensação de antes, da Terra. O vazio, o frio, o silêncio absoluto que não machuca, mas consome. Era como cair em um mar sem fundo, sem direção.

    Mas, desta vez, havia algo diferente.

    Quando abri os olhos, o mundo estava banhado por uma luz suave e dourada. Os girassóis dançavam ao vento e, acima de mim, o rosto dela — Perséfone.

    Eu estava deitado no colo dela.

    Seus dedos acariciavam meus cabelos com delicadeza, como se estivesse cuidando de algo frágil. Havia uma tristeza silenciosa nos olhos dela, mas também… um alívio. Um carinho que palavras não alcançam.

    — Você voltou — ela sussurrou.

    Toquei o chão com os dedos. Era real. O campo, o céu, a brisa. Eu voltei.

    Ela abaixou o rosto e pousou a testa na minha, fechando os olhos por um instante. Seu toque acalmava o que nem eu sabia que doía.

    — Você morreu — disse, como quem confessa um segredo. — Mas não podia ir embora. Ainda não.

    — Foi… foi real? — perguntei. Minha voz saía fraca, quebrada.

    — Foi. E você lutou bem. Moradina sentiu. Oliver viu. E eu… eu senti tudo. Desde o momento em que sua mana gritou pela última vez até seu coração parar.

    Ela respirou fundo, quase com raiva de si mesma.

    — Me odeie, se quiser. Eu deixei que fosse até a morte. Porque precisava ver até onde você iria por si mesmo. E você foi… até o fim.

    Ela me puxou para mais perto, meu rosto ainda em seu colo, e murmurou:

    — Não morra de novo, Hades. Pelo menos não… não sem mim.

    Fechei os olhos e deixei o calor da presença dela me envolver. Eu voltara. E tudo estava em silêncio. Mas o coração, aquele que já não era mais só meu, batia firme. Por mim. Por ela. Por algo maior.

    E ali, deitado nos braços da morte, pela primeira vez eu soube o que significava realmente… estar vivo.

    Voltamos à torre mágica, o ar ainda tingido de um leve aroma de girassóis e algo que eu só podia chamar de eternidade. A fumaça do cachimbo de Oliver serpenteava no ar como se ainda dançasse com a memória da morte.

    Sentei-me no chão, as pernas pesadas, mas o coração firme. Olhei para minhas mãos, ainda trêmulas, como se minha alma não tivesse voltado completamente. Mas voltei. E isso era o que importava.

    Então perguntei, com a voz ainda rouca da travessia:

    — Pers… há alguma penalidade? Por reviver assim? Algo que me roube tempo, ou alma?

    Ela me olhou com um misto de cuidado e força, como se já tivesse pensado nessa pergunta antes mesmo que eu a fizesse.

    — Aqui… não. — respondeu com firmeza. — Enquanto estiver sob minha bênção, neste espaço entre os mundos, não há preço. Você morreu, sim. Mas não morreu para sempre. Seu corpo ainda está no limiar entre o humano e o divino. E seu coração… ainda é meu.

    Houve silêncio por um tempo. Oliver nem se mexia, como se soubesse que aquela conversa era sagrada. Pers parecia querer dizer algo mais, mas hesitou.

    Eu não hesitei.

    — Então me deixe lutar contra ela de novo.

    A reação de Pers foi imediata. Seus olhos, normalmente doces, se tornaram afiados. Ela se ergueu de onde estava sentada e encarou-me como se eu tivesse cuspido uma blasfêmia.

    — Você quer morrer de novo?! — sua voz tremeu, não de medo, mas de algo mais íntimo… dor. — Hades, eu te trouxe de volta! Eu fiquei com você nos braços, senti seu corpo sem vida! E agora quer arriscar tudo de novo?

    Me levantei devagar. Não por ousadia, mas por respeito. Respeito a ela. E respeito ao que eu estava me tornando.

    — Sim. Porque só há uma direção, Pers. E é pra frente.

    Ela fechou os olhos por um instante, os lábios pressionados. Talvez estivesse lutando contra uma emoção antiga, contra a vontade de me proteger… e contra a certeza de que não podia me impedir.

    Quando abriu os olhos novamente, a ira havia passado. O que restava era amor. Duro. Antigo. Sincero.

    — Então vá. Mas jure por mim… que voltará outra vez.

    — Sempre.

    Oliver pigarreou. — Drama suficiente para três peças teatrais. — disse, erguendo a bengala com um giro quase elegante. — Que os véus se abram, e que os Deuses respirem devagar…

    Ele tragou o cachimbo com força e soprou uma fumaça púrpura mais densa que nunca. Ela se ergueu como um redemoinho encantado, tingindo o ar de uma magia quase palpável. E quando se dissipou…

    Moradina estava ali novamente. Imponente. Inalterada. O mesmo olhar severo. A mesma força de uma montanha que nunca se move.

    Mas dessa vez, não seria ela quem lutaria pela eternidade.
    Seria eu.

    O campo de batalha se formou no centro da torre mágica como se a própria realidade se curvasse à vontade do velho Oliver. As pedras do chão se afastaram, girando em um redemoinho gravitacional de mana bruta. As paredes, antes imóveis, tornaram-se véus ondulantes de fumaça mágica. Lá no alto, como juíza muda, Pers assistia, desta vez de pé, com um semblante que misturava orgulho e tormento.

    E diante de mim… Moradina.

    Não uma ilusão. Não uma simulação. Não uma sombra.
    Era a personificação da Deusa da terra, riqueza e resistência. A pele bronzeada brilhava como cobre polido. O corpo era musculoso e sólido como uma montanha viva. Os cabelos negros, trançados em espirais complexas, pareciam raízes de alguma árvore sagrada que mergulhava até o coração do mundo. E seus olhos… tinham o peso de mil minas, mil decisões pragmáticas, mil gerações de anões vivendo sob a pedra.

    — Apóstolo da morte — disse ela, com a voz que soava como pedras rolando em cavernas antigas. — Venha aprender o que custa alcançar a eternidade.

    Ela ergueu a mão e o chão obedeceu.

    Estacas de pedra ergueram-se como lanças famintas, tentando me empalar ainda antes que eu pudesse reagir. Rolei para o lado, conjurando uma barreira sombria para amortecer o impacto. Não era uma barreira de verdade, não como a dos magos de batalha, mas uma manipulação apressada da mana de Perséfone, feita para amortecer o dano, como uma sombra viva.

    Durante a batalha, tive um insight que a mana não precisa ser apenas força, ela pode ser forma.

    — Certo — murmurei entre dentes. — Eu posso moldar isso…

    Ergui a mão e tentei responder com uma de minhas magias de terceiro círculo. Uma esfera de mana escura começou a se formar na palma. Mas, como sempre, ela tremia, oscilando como uma chama ao vento.

    — Foque a vontade, não a emoção — ecoou a voz de Oliver ao fundo. — Emoção é combustível, mas a vontade é o molde!

    Com um grito, comprimi a esfera e a atirei contra Moradina. Ela simplesmente ergueu uma mão e a transformou em poeira com um estalar de dedos.

    — Fraco. Belo, mas fraco — disse ela. — A morte é paciente demais. A terra não espera.

    Ela pisou firme, e o chão ao redor de mim começou a afundar. Como areia movediça feita de rocha. Comecei a afundar até os joelhos.

    De repente, tive outro insight , a terra não é apenas um elemento, é uma intenção, um peso e um compromisso.

    Comecei a usar a telecinese que Oliver me ensinara. Em vez de tentar empurrar pedras com força bruta, visualizei os vetores, as linhas ocultas de força que ligavam cada grão do solo à deusa diante de mim. E então… quebrei um dos elos.

    O chão explodiu sob mim, me lançando para trás, mas me libertando. Eu caí de pé, respirando fundo, o suor escorrendo como se eu tivesse corrido por uma eternidade.

    Pela primeira vez ela sorriu.

    Moradina avançou com um martelo feito de cristal de quartzo. O cabo era como uma raiz viva e a cabeça pulsava com energia telúrica. Quando ela o brandiu, todo o ambiente tremeu. Não com o som, mas com o peso. O ar, a pedra, até mesmo a luz parecia ficar mais lenta.

    Ergui outra barreira, mais forte, mais densa.

    Então percebi que as sombras que conjuro não são ausência de luz, são presença da minha essência. A morte não é um vácuo: é uma plenitude.

    A barreira resistiu. O impacto ricocheteou, enviando estilhaços de mana negra e poeira pelo campo. Ela deu dois passos para trás, surpresa. Eu também.

    — Pers — murmurei, sentindo a presença dela nas minhas veias. — Está me ensinando mesmo agora?

    — Você é meu apóstolo — ouvi a voz dela, suave como pétalas, mas firme como um selo eterno. — Aprender com a dor também é aprender.

    E então, pela primeira vez, tentei usar a forma da morte. Não apenas sua força.

    Concentrei mana em minhas mãos, não como uma esfera, mas como um símbolo.
    Uma flor. Um girassol escuro.

    Ele brotou flutuando na palma, girando lentamente como um véu de luto. E ao girar, espalhou espinhos finos e afiados em direção a Moradina. Ela desviou, surpresa não pela força, mas pela elegância.

    — Você está dançando. — disse ela. — Interessante.

    E me golpeou com uma onda de pedra que me jogou metros para trás.

    Minha respiração parou por um segundo. A visão ficou turva. Mas a mana dentro de mim ainda girava. Ainda queimava. Eu me levantei, cuspindo sangue.

    Percebi que a dor também é um canal. Quando tudo mais falha, a dor abre a mente.

    Moradina já preparava outro feitiço. O ar se condensava ao redor de suas mãos. Um feitiço do quarto círculo? Não… era um do terceiro, mas amplificado.

    Ela estava me testando. Me empurrando para além do limite.

    E eu queria ver… até onde conseguia ir.

    Eu avancei, mesmo com o corpo protestando. E no fundo da minha mente, uma voz sussurrou: Ainda não acabou.

    A batalha terminou como começou: com uma promessa de glória e o gosto metálico da derrota.

    Moradina ergueu ambas as mãos ao céu. A torre mágica tremeu. As paredes ondularam como marés de pedra. Acima de mim, dezenas de estalagmites se formavam de cabeça para baixo, afiadas como espadas divinas.

    Tentei reagir. Juntei toda a mana que ainda ardia em mim, concentrando-a em torno do corpo. Usei a barreira contra o sol que Oliver me ensinara. Usei a telecinese para desviar algumas das lanças. Usei a sombra como manto.

    Mas ela sorriu. Como uma mãe que vê o filho tentando vencer o mar com um balde.

    — Seu espírito é forte — disse ela, com respeito. — Mas a terra não se curva ao desejo, apenas à eternidade.

    As estalagmites caíram.

    Dez, vinte, cem lanças de pedra me atravessaram como se eu fosse um papel. Não houve dor no começo, apenas a sensação de ser tragado por um sono antigo e inevitável. Meu corpo se tornou uma escultura de carne, sombra e sangue. E por um instante, vi o rosto de Pers surgir entre os fragmentos do céu, correndo até mim, gritando algo que não ouvi.

    Morrer pela segunda vez… foi diferente.

    Não havia desespero.

    Havia aceitação.

    Um sopro. Um suspiro.

    E então, o vazio.

    Mas a morte não me pertence mais. Não completamente.

    Acordei, mais uma vez, deitado nos campos de girassóis. Pers segurava minha mão, e seu rosto, em silêncio, dizia tudo. Ela não chorava, mas seus olhos estavam mais escuros. Mais distantes.

    — Você morreu de novo, meu amor — murmurou. — E ainda assim, volta pra mim.

    E não seria a última.

    As mortes se tornaram… frequentes.

    Havia a vez em que Oliver me colocou contra um titã de cristal invocado das profundezas do continente. Eu tentei destruí-lo com um feitiço de compressão gravitacional. A estrutura cedeu, e meu corpo foi esmagado por um colapso de mana tão denso que nem meu espírito resistiu por muito tempo.

    Havia a vez em que lutei contra um espírito flamejante ancestral que habitava uma caverna no limite de Thaldrakos. Ele me incendiou de dentro para fora. Morrendo, minha última visão foi a de meu próprio corpo se desfazendo em cinzas.

    Houve a morte silenciosa, quando tentei absorver mana diretamente de uma fonte arcana bruta. Meus canais se romperam como vidro em ebulição, e o sangue escorreu pelos poros, me afogando em mim mesmo.

    Outra vez, tentei conjurar um feitiço do quarto círculo. Era cedo demais. A mana ficou descontrolada. Eu me explodi em milhares de fragmentos. A última coisa que ouvi foi Oliver dizendo “Hades, seu idiota, você pelo menos anotou isso?”

    E havia a pior e a mais cruel.

    Uma ilusão conjurada por Oliver, ou talvez por Perséfone. Nela, lutei contra mim mesmo. Contra uma versão corrompida, devota de outra Deusa. Era mais rápido. Mais cruel. Mais frio. E quando ele me matou, com um feitiço de escuridão absoluta, eu senti algo partir dentro de mim. Uma morte que não foi apenas física, mas simbólica.

    Cada morte me ensinava algo sobre magia, dor e sobre mim mesmo.

    Mas sempre… sempre… havia ela.

    Quando os olhos se fechavam, era Perséfone quem me recebia, me carregava e me trazia de volta.

    Eu renascia mais forte e mais preparado.

    Como se morrer… fosse parte do treinamento, como se a morte… fosse o caminho.

    E talvez fosse mesmo, afinal, quem é Hades… se não o escolhido da morte?

    Acordei com gosto de ferro na boca e com o céu dourado dos girassóis dançando diante dos meus olhos. Pers segurava minha mão, em silêncio. Não precisava dizer nada. Era a décima vez que morria naquela semana.

    E eu pedi mais uma.

    Pers hesitou, como sempre fazia agora. O brilho nos olhos dela parecia perder cor toda vez que meu coração parava. Mesmo sendo a Deusa da morte, mesmo tendo me criado para caminhar entre a vida e o além… ver minha alma se apagar ainda doía nela.

    — Por que você insiste tanto…? — perguntou, a voz trêmula, quase inaudível.

    — Porque estou perto — respondi. — Eu consigo sentir. Está quase… quase no meu alcance.

    Oliver, como sempre, apenas tragou o cachimbo, soltando uma fumaça púrpura que se moldou numa gargalhada cansada.

    — Está bem, suicida encantador. Vamos ver se você morre bonito hoje.

    Com um estalar de dedos, a realidade se contorceu. Voltamos à torre mágica.

    E Moradina apareceu de novo.

    Baixa demais para ser humana. Alta demais para ser uma anã. A pele bronzeada, agora os seus olhos estavam negros como cavernas profundas, o cabelo trançado com fragmentos de metal. Quando ela abriu os braços, a terra tremeu.

    A luta recomeçou.

    E eu morri.

    Morria esmagado por colunas que brotavam do chão como lanças de titã. Morria afogado por um pântano que ela criava com um gesto, drenando o oxigênio da sala. Morria perfurado por estalagmites, soterrado por pedras, engolido por abismos.

    Em uma morte, tentei canalizar minha mana em espinhos de sombra. Mas ela os petrificou no ar e devolveu tudo contra mim como uma chuva de estacas.

    Em outra, tentei criar ilusões com mana escura, para distraí-la. Mas ela apenas bateu o pé e fez o solo explodir, desfazendo tudo, inclusive meu corpo.

    Em outra, quase venci. Quase.

    Toquei a pele dela. Fiz uma fissura em sua armadura de rocha. Um feitiço do terceiro círculo bateu com força no seu flanco.

    Mas ela sorriu.

    E criou uma prisão de estalactites à minha volta. E quando elas se fecharam… o som do meu corpo partindo ecoou como vidro sob os pés de deuses.

    E eu morri de novo.

    Às vezes era rápido.

    Às vezes lento.

    Às vezes ela falava algo.

    “Você aprende com a dor.”

    “Você está perto.”

    “Morra melhor.”

    E eu morria.

    Queimei de dentro para fora ao tentar usar mana de forma crua, com pressa.

    Fui congelado quando ela usou um núcleo de rocha com mana gélida.

    Me rasguei por dentro quando tentei fundir dois feitiços sem controle.

    Morri de joelhos, de pé, gritando e em silêncio.

    E em todas as vezes, Perséfone estava lá me esperando e me perdoando por morrer outra vez.

    Até que, um dia, algo mudou.

    A dor ainda estava lá, mas havia… espaço. A mana fluía melhor. Mais leve.
    Quando canalizei energia para meus braços, ela não resistia mais como lava em veias de carne.
    Ela dançava. Como se quisesse sair.

    No meio da luta, invoquei três pilares de sombra. Moradina tentou bloquear.
    Mas os pilares se dividiram no ar, como garras, e a arranharam.

    Ela recuou.

    Pela primeira vez… ela recuou.

    Eu ataquei.

    Drenei a mana do chão para impedir que ela invocasse outro labirinto de pedra, disparei esferas comprimidas, mais rápidas, mais densas, usei telecinese para atirar rochas nela como projéteis mágicos, mas ela resistiu.

    Criou um escudo de ouro, transformou o solo em armadilha e ergueu um golem de pedra.

    Mas eu lutei.

    E no momento em que ela me golpeou com um martelo invocado de puro magma, e meu corpo quebrou no impacto…

    …foi quando senti.

    A energia pura.

    Atravessando cada centímetro meu.

    Uma dor aguda, sim, mas viva, uma luz nas veias, um calor de dentro, não de fora.

    Não morri em silêncio, não morri em desespero.

    Morri sorrindo.

    Porque, naquela morte, cheguei lá.

    O grau quatro.

    A luz ao meu redor pulsou quando minha alma voltou ao campo de girassóis.

    Pers me segurava de novo. Oliver estava ali também.

    — Ele chegou — disse o professor, voz rouca, olhos arregalados. — O quarto grau de purificação… antes de virar vampiro. Hades… você é mesmo o apóstolo da morte.

    Perséfone não disse nada, apenas me abraçou.

    E ali, no calor do corpo dela contra o meu… percebi que morrer nunca seria fácil.

    Mas pelo menos, agora, eu morria por um propósito.

    E voltava mais forte.

    Dias iam se arrastando como folhas secas ao vento, e eu continuava… morrendo.

    Treinava até meu corpo não aguentar. Morria e voltava. Morria e voltava. E a cada morte, alguma coisa em mim endurecia, como metal forjado à força. Já não temia mais o fim, porque o fim sempre me trazia de volta. Eu via a morte como ela era: não um inimigo, mas uma porta. E eu estava aprendendo a atravessá-la.

    Oliver já não se espantava. Apenas tragava o cachimbo, soprando a fumaça púrpura enquanto rabiscava números no ar como se estivesse catalogando experimentos.

    — Trezentos e cinquenta e seis… trezentos e cinquenta e sete… — murmurava ele, com aquele meio sorriso cínico. — Está quase ficando poético.

    Perséfone, por outro lado, sangrava a cada uma. Mesmo que não fosse literal, eu via nos olhos dela. A cada vez que meu corpo se desfazia e eu reaparecia nos campos de girassóis, ela me olhava como se tentasse esconder o medo de que um dia eu não voltasse.

    E então veio a morte de número trezentos e cinquenta e oito.

    O golpe foi limpo. Rápido. Moradina atravessou meu estômago com uma estalactite dourada e disse com frieza:

    — Quase.

    Acordei com a cabeça no colo de Pers. Outra vez. Ela me afagava com os dedos frios e suaves, mas o olhar… o olhar estava cansado. Os olhos vermelhos, úmidos. Como se cada renascimento meu arrancasse um pouco mais dela.

    Dessa vez, não me levantei de imediato.

    Fiquei ali.

    Silencioso.

    O céu estava rosado. O cheiro dos girassóis era doce como sempre. Mas havia algo de novo em mim. Uma certeza. Um instinto moldado na fornalha da repetição, da dor, da queda e da ascensão.

    Levantei devagar, sentando ao lado dela.

    Virei o rosto. Encarei seus olhos.

    E falei.

    — Você não precisa mais sofrer, Pers.

    Ela arqueou as sobrancelhas, surpresa.

    — O quê…?

    Segurei sua mão com força.

    — Na próxima… eu vou vencê-la. — A voz saiu firme. Não como um desejo. Mas como uma sentença.

    Oliver parou de contar.

    Pers abriu a boca para protestar, mas hesitou. Havia algo em mim que a fez parar. Algo que brilhou nos meus olhos, talvez. Determinação. Ou loucura.

    Ela apenas assentiu, devagar.

    E, com um sussurro de voz cansada, respondeu:

    — Então vá… e mostre ao mundo por que eu escolhi você. Meu apóstolo.

    Eu me levantei, sentindo o peso da promessa no peito.

    Não era só mais uma luta.

    Era a última.

    Na próxima… ou Moradina cairia…ou o mundo inteiro cairia comigo.

    Antes da luta começar, quando o céu etéreo da torre mágica oscilava em tons de roxo e dourado e o campo ilusório tomava forma diante de nós, senti algo diferente. Não era nervosismo. Nem medo. Era algo mais perigoso: confiança.

    Levantei o queixo, cruzei os braços e olhei para Oliver, que soprava preguiçosamente uma espiral de fumaça púrpura com o cachimbo preso no canto dos lábios. Ele me observava com aquele olhar de quem vê o mundo como um palco e cada um de nós como meros atores em seu roteiro caótico.

    — Oliver — chamei, com um sorriso de canto. — E se a gente apostasse?

    Ele arqueou uma sobrancelha, sem tirar o cachimbo da boca.

    — Apostar? — repetiu, divertido. — Caro apóstolo, o que poderia valer mais que a sua centésima octogésima morte nas mãos da Deusa da terra?

    — Se eu vencer — falei, dando um passo à frente —, quero a senha do seu mausoléu. E todos os tesouros que estão lá dentro… quando eu reencarnar.

    A fumaça parou por um segundo. Depois, ele soltou uma risada baixa, seca como papel queimando.

    — Ambicioso. Gosto disso. — Ele apontou o cachimbo para mim como se fosse um cetro. — E se perder?

    — Você escolhe.

    Oliver esfregou o queixo com o cabo da bengala, pensativo.

    — Se perder… vai limpar toda a minha sala de aula. Cada centímetro, cada degrau, cada telha invisível do teto — disse ele com um brilho diabólico nos olhos — com uma escova de dentes. E com a língua se reclamar.

    — Fechado — respondi, sem hesitar.

    — Que seja registrado então! — exclamou, estalando os dedos. A fumaça roxa se torceu no ar, formando letras douradas no espaço:
    Contrato de Sangue Teatral N.º 380 — Apóstolo vs. Ilusão Divina.

    Pers, sentada à beira do plano de batalha, suspirou profundamente, o vestido negro ondulando com o vento que não existia.

    — Vocês são ridículos — murmurou, passando as mãos no rosto. — Eu vou precisar de mais chá.

    — E talvez uma escova de dentes reserva — disse Oliver, piscando para ela.

    Eu sorri, olhando para o campo que se formava à minha frente, onde a silhueta de Moradina surgia novamente entre rochas flutuantes e estalactites douradas.

    Dessa vez, seria diferente.

    Dessa vez, ou eu vencia…

    Ou a sala de Oliver ficaria com os dentes bem limpos.

    Regras dos Comentários:

    • ‣ Seja respeitoso e gentil com os outros leitores.
    • ‣ Evite spoilers do capítulo ou da história.
    • ‣ Comentários ofensivos serão removidos.
    AVALIE ESTE CONTEÚDO
    Avaliação: 0% (0 votos)

    Nota