Com um estalar de dedos, Oliver girou o cachimbo no ar e soprou uma baforada lenta, densa, tão púrpura quanto o crepúsculo entre mundos. A fumaça se contorceu, flutuando como seda viva, até se adensar em um círculo perfeito no chão polido da torre mágica.

    — Que comece o espetáculo final — disse ele, em tom grave, como se estivesse abrindo a cortina de um palco dos antigos teatros de Emberfell.

    A fumaça roxa se ergueu como colunas ao redor do círculo e, dentro dele, surgiu a forma familiar, e temível de Moradina. Seus pés nus tocaram o solo ilusório com a firmeza de uma Deusa que conhecia o peso do mundo. Era mais baixa que uma humana, mais alta que uma anã, com a pele de bronze esculpida como metal vivo e os cabelos negros trançados com fios de ouro. Seus olhos eram pedras milenares, imóveis e profundos.

    Diante dela, eu respirava com calma, sentindo o sangue pulsar com lentidão sob a pele. Toda a dor das trezentas e poucas mortes ecoava em meus ossos, e mesmo assim, eu me sentia mais vivo do que nunca.

    — Você está pronto, Hades? — disse Pers, sua voz como um toque frio e doce na minha nuca.

    Assenti, sem tirar os olhos da Deusa.

    — Então vá — sussurrou ela. — Mostre a ela do que o meu apóstolo é feito.

    Moradina estendeu as mãos, e o campo ilusório respondeu. A torre sumiu. O céu se partiu. Estávamos em uma caverna colossal, com estalactites de cristal acima e rios de magma correndo abaixo. O calor era real. A pressão também. Rochas flutuavam ao nosso redor como luas em miniatura.

    Ela deu o primeiro passo. Eu dei o segundo.

    E então o mundo explodiu.

    O primeiro golpe veio sem aviso, um pilar de pedra que emergiu sob meus pés. Rolei no ar, canalizando a mana sombria de Pers nos meus braços. Conjurei uma esfera de escuridão pura, mais densa do que jamais havia conseguido antes, e a arremessei contra ela.

    Moradina ergueu a palma e o feitiço se partiu como vidro.

    Avancei. As mãos envoltas em chamas negras. As pernas impulsionadas por mana bruta. Golpeei o solo e o estilhaço de uma rachadura percorreu toda a arena. Rochas caíram como chuva, e usei a telecinese para jogá-las contra ela como um enxame de meteoros.

    Ela apenas soprou. Sim, soprou e as pedras se transformaram em pó dourado.

    “Ela transforma tudo o que toca em ouro”, pensei, desviando de uma lâmina feita do próprio chão que tentou me partir ao meio. “Então… o truque não é atacá-la, mas impedir que ela toque.”

    Fechei os olhos e senti as veias de mana queimarem. Era como canalizar uma fogueira por dentro das costelas. Mas era isso ou morrer de novo.

    Orbe da Morte: Verso Crescente! — gritei, e um semicírculo de energia negra disparou, cortando o chão como uma lâmina.

    Moradina desviou, e pela primeira vez, recuou dois passos.

    “Ela sente”, percebi. “Ela testa.”

    Ela ergueu os braços, e o chão tremeu. Um obelisco dourado brotou do magma. Outro. Outro. Um exército de pilares ameaçadores, cada um uma lápide para meu possível fracasso.

    Estendi os dedos e deixei que a mana fluísse, mas não forcei. Confiar. Sentir. Era isso que Pers dizia. Não controlar, mas guiar.

    As sombras em torno de mim começaram a dançar. Não como antes. Elas me seguiam agora. Tocavam meu corpo como uma capa viva. Um escudo. Uma extensão da minha vontade.

    Eu sou o que Perséfone me fez. — sussurrei para mim mesmo, e as sombras sussurraram de volta.

    Disparei.

    Um salto no ar. Um giro. Um feitiço de fogo negro arremessado em arco.

    Moradina respondeu com um soco. O próprio ar se partiu. O impacto criou uma onda de choque que me lançou longe, mas eu absorvi parte do dano com a barreira solar, agora adaptada para choques.

    “Não… Não como antes. Agora eu luto como quem nasceu para isso.”

    A luta estava longe de terminar.

    Mas pela primeira vez… ela recuava e eu avançava.

    O campo de batalha ardia. E o céu parecia segurar a respiração.

    O calor era insuportável, mas eu não sentia mais dor, não como antes. Meu corpo já havia cruzado a linha entre exaustão e hábito, entre agonia e adaptação. A cada golpe que Moradina desferia, a cada técnica ancestral que tentava me esmagar, eu aprendia. Eu entendia. E, mais do que isso, eu crescia.

    Ela rugiu, um som que parecia vir do centro da terra, e em resposta, colunas de cristal dourado brotaram em minha direção com velocidade brutal. Era como se o próprio mundo quisesse me empalar.

    Grilhões da Morte! — conjurei, e das minhas sombras surgiram correntes negras que envolveram as colunas, desacelerando-as, freando-as, até trincarem sob a pressão da mana. Fragmentos dourados caíram como estrelas quebradas ao meu redor.

    Ela não hesitou. Os olhos de Moradina brilhavam com aquele desafio divino que só os Deuses conhecem: um olhar que dizia: “Você ainda está vivo? Então lute mais.”

    Estendeu as duas mãos para o céu da ilusão, e uma tempestade de estalactites douradas começou a descer dos céus como lanças. Tentei erguer uma barreira, mas não seria o suficiente. Os cristais cortavam o ar como sentenças.

    Então compreendi.

    “Ela luta com a terra como se fosse seu sangue. Eu preciso lutar com a morte como se fosse minha pele.”

    Fechei os olhos.

    Domínio Sombrio: Véu Fúnebre! — gritei.

    A mana de Pers respondeu. Uma cúpula escura, pulsante, ergueu-se ao meu redor. Não era sólida. Era viva. Era como uma membrana feita da própria essência do fim. Os estalactites atingiram o véu e… silenciaram. Não quebraram. Não explodiram. Eles simplesmente pararam, como se a própria morte os houvesse tocado e dito: “AQUI, NÃO.”

    Moradina franziu o cenho.

    Eu sorri.

    Avancei outra vez.

    Lança Fúnebre! — canalizei tudo num único ponto, e uma estaca de mana negra, refinada, límpida como treva líquida, disparou em linha reta.

    Ela tentou segurar.

    Mas não com as mãos, com o olhar.

    O ar ao redor do projétil se solidificou em ouro puro, e a lança parou a centímetros do peito dela, se desfazendo em partículas. Quase. Eu havia chegado quase lá.

    Ela respirou fundo e então veio a resposta divina.

    Ela pisou no chão.

    E o mundo tremeu.

    Do centro do campo de batalha ergueu-se uma muralha de rocha viva, cheia de runas brilhantes, cercada por minerais que giravam como luas pequenas ao redor dela. Ela tocou o peito com os dedos e murmurou algo na língua antiga dos anões.

    — Terrae Pectus, Aurum Ultimum.

    Uma onda de energia dourada se espalhou, não para me destruir, mas para transformar. A realidade ao meu redor se reconfigurava. A gravidade mudava. O solo assumia formas geométricas perfeitas, como se estivéssemos dentro do pensamento dela, e não mais em uma caverna. Eu lutava agora no mundo que ela criava. E o mundo que ela criava queria me esmagar.

    Eu caí de joelhos. A mana queimava por dentro. Cada veia de mana ardia como ferro derretido.

    “Continue. Continue. Continue.”

    Ergui uma mão.

    Fragmento do Véu, murmurei, e uma adaga negra se formou. Era pequena. Frágil. Mas feita de tudo que me restava.

    Saltei sobre as placas douradas. Desviei das lanças. Meus pés sangravam, mas meus olhos viam só o alvo.

    Ela me viu chegar.

    E ela sorriu.

    A batalha ainda não havia terminado, mas pela primeira vez, Moradina sorriu.

    O mundo se partiu.

    Não o chão, não o céu, mas o mundo. O campo ilusório de batalha criado por Oliver tremeu, vacilou por um instante como se não tivesse sido feito para conter o que acabava de acontecer.

    Moradina rugiu. Um rugido de pedra viva, de metais que se chocam sob pressão. Ela avançou com fúria renovada, as mãos conjurando círculos de transmutação com complexidade absurda, dezenas deles girando ao seu redor. Estalactites caíam do teto, o chão subia para esmagar, colunas de pedra explodiam sob meus pés.

    Eu quase caí.

    Quase.

    Foi quando aconteceu.

    A dor. O calor. A pressão. Tudo atingiu meu peito ao mesmo tempo e explodiu para fora como uma estrela agonizante.

    Senti meu coração parar.

    E então bater de novo, de forma diferente, com mais pureza e mais morte.

    As veias de mana gritaram em êxtase. O sangue pulsou escuro como tinta antiga. As sombras ao meu redor se aquietaram por um breve segundo como se estivessem… ouvindo.

    E então os caminhos apareceram.

    Linhas etéreas, invisíveis antes, começaram a se traçar pelo ar como cicatrizes de luz negra. Cada uma era uma possibilidade, um atalho, um atalho da morte. Eram fendas entre o agora e o depois, entre o aqui e o além.

    O Aspecto… — murmurou Moradina, com uma reverência involuntária. — …do Anjo da Morte.

    Não pensei. Me movi.

    Meu corpo sumiu da realidade como um sussurro. Surgi em outro ponto do campo segundos depois, quase como se não tivesse andado, como se tivesse sido convidado a passar. Ela girou, mas eu já estava atrás dela. Um corte. Um segundo. Um terceiro.

    A cada passo que eu dava, a cada respiração, novos caminhos se abriam. Não era simplesmente uma magia de teleporte. Eram trilhas invisíveis esculpidas no tecido da realidade, trilhas que só a Morte via. E agora, eu era parte dela.

    A lança de sombras em minha mão era pura, cristalina, e meus olhos queimavam com um brilho etéreo, sem cor.

    Moradina me via agora como um igual. Não um aprendiz. Não um mortal.

    Um apóstolo e um executor.

    Ela gritou e ativou o círculo maior.

    O chão se tornou um mar de ouro líquido. Tudo o que tocava virava estátua, cristal. A morte em forma de riqueza. O paradoxo vivo de Moradina.

    Eu corri pelas superfícies instáveis, desviando por entre as linhas etéreas que se desenhavam e redesenhavam à minha frente, sentindo pela primeira vez que não era só a mana de Pers que me guiava, era sua vontade.

    Um impulso me atingiu e pulei alto, girando no ar, conjurando três Lanças Fúnebres ao mesmo tempo, cada uma rodando ao redor do meu corpo como luas negras. Arremessei a primeira. Ela criou uma explosão de trevas que sugou a luz ao redor. Lancei a segunda. Rasgou o ouro e fez tremer os círculos mágicos dela.

    Ela contra-atacou.

    Um martelo colossal de pedra e prata caiu sobre mim.

    Mas já não estava ali.

    Estava no último caminho.

    No centro da morte.

    A terceira lança estava em minha mão, e Moradina finalmente entendeu: aquilo não era mais uma batalha entre mestre e aluno.

    Era entre a guardiã de uma era…

    E o Executor de Deuses.

    A lança partiu da minha mão como um trovão silencioso.

    Ela não estava pronta para ceder e eu… não estava pronto para recuar.

    A terra vibrava.

    Cada passo meu deixava marcas negras no chão ilusório. As linhas etéreas, antes frágeis e misteriosas, agora se abriam ao meu redor como trilhas naturais, como se o próprio mundo tivesse aceitado que eu não pertencia mais ao plano dos mortais.

    Me movia por elas como se respirasse. Sumia. Aparecia. A cada piscada, um golpe. A cada batida do coração, um relâmpago de sombras cortava o campo.

    — Isso… isso não é mais um teletransporte. — murmurou Moradina, com a voz carregada de surpresa, pela primeira vez hesitante.

    Eu não respondi. Minhas mãos já estavam preenchidas de pura selvageria mágica.

    A mana que corria por mim já não era só densa, era indomada. Caótica. Viva.
    E com ela, nasceu uma nova forma de feitiço.

    Trovões negros.

    Serpentes elétricas de sombras dançavam ao meu redor, enrolando-se nos meus braços como se fôssemos um só. Cada uma delas zumbia, chiava, e sibilava com uma voz antiga. Não eram raios como os da natureza, eram amaldiçoados, nascidos de uma escuridão profunda e carregados de uma eletricidade letal.

    Dei o primeiro passo.

    Três serpentes voaram num estalo.

    Elas não seguiam uma linha reta, se contorciam no ar, traçando espirais imprevisíveis, desviando das barreiras de pedra invocadas por Moradina com uma inteligência assustadora. Quando atingiram o escudo de ouro puro, não estouraram, se infiltraram como veneno, rachando o metal em veios escurecidos.

    Ela tentou reforçar a defesa, mas outra serpente negra já estava em sua direção.
    Desviei para um dos caminhos etéreos, emergindo sobre ela como uma sombra com olhos incandescentes.

    Girei no ar, e com o braço estendido conjurei uma explosão elétrica sombria. A serpente cresceu, se multiplicou, e caiu como um raio vivo, abrindo uma cratera no campo ilusório. Poeira mágica subiu. O chão rangeu.

    Moradina gritou um nome antigo e o ouro ao redor tomou forma de muralhas, tentando me encurralar.

    Mas eu não era mais apenas carne e osso. Eu era velocidade. Eu era a morte vestida de relâmpago.

    Em cada feitiço lançado, sentia meu corpo vibrar. As veias de mana queimavam, mas não mais com dor, com direção, eu estava entendendo o que Oliver dizia sobre sinergia entre corpo, magia e alma e sobre lançar feitiços como extensões de si mesmo.

    Saltei, me dissolvendo em fumaça escura, reaparecendo atrás da Deusa-anã e lançando trovões como lâminas curvas. Dois passaram rente. Um rasgou o ombro dela. Ela rugiu, girou o martelo de pedra dourada e golpeou o ar, mas eu já não estava mais ali.

    A batalha ganhava nova forma, ela era fúria e resistência e eu era fluidez e devastação.

    E naquele instante… eu soube.

    Eu estava me tornando o que fui feito para ser.

    Caçador de Deuses.

    Moradina ainda tinha truques escondidos nos círculos da terra.

    A pressão no campo de batalha aumentava como uma tempestade antes de desabar.

    Moradina rugia, seu corpo coberto por runas de pedra que pulsavam em tons dourados, cada batida do martelo ecoando como trovões surdos nas paredes invisíveis daquela arena ilusória. As defesas dela tornaram-se mais brutais, os feitiços mais rápidos. O chão rachava a cada conjuração. As estalactites douradas nasciam do nada, tentando me perfurar por baixo, pelos lados, até do céu.

    Eu desviava como se o tempo fosse mais lento para mim. Mas… estava começando a sentir o cansaço, a gravidade e o limite.

    Minhas serpentes de trovão negro ainda cortavam o ar, minha teleportação pelos caminhos etéreos ainda era instintiva… Mas, pela primeira vez, notei que havia um acima que eu ainda não dominava. Um plano que ela controlava: o céu.

    Moradina criou uma plataforma de ouro sob seus pés e se lançou ao alto. De lá, começou a conjurar feitiços em arcos descendentes, como chuva de meteoros metálicos. Cada um deles explodia com força tectônica.

    Eu estava preso no chão.

    E ela sabia disso.

    Vamos, Hades! — gritou Moradina, sua ilusão com os olhos faiscando. — Você diz que pode caçar Deuses… mas nem consegue tocá-los no céu!

    As palavras dela arderam mais fundo do que qualquer feitiço.

    Foi então que senti. Algo dentro de mim se abrir.

    Como da primeira vez que enxerguei os caminhos etéreos… algo agora sussurrava dos céus.

    Como se a própria morte me dissesse: você pertence ao alto tanto quanto ao fundo do abismo.

    Fechei os olhos por um instante.

    A mana dentro de mim se moveu. Não como um rio… mas como fumaça. Como brumas ascendentes, não formava asas, não moldava penas, mas… empurrava.

    Concentrei o fluxo em meus pés, depois nas pernas, depois em volta do corpo inteiro, uma pressão invertida. O ar pareceu mais denso ao meu redor, e então, quando soltei a respiração…

    Eu subi.

    Como uma sombra liberta do chão. Como uma lembrança que se recusa a ser enterrada.

    Não era voo como o dos pássaros. Era voo como o da noite, inexorável, silenciosa, inevitável.

    Você aprendeu… — sussurrou a voz de Pers, observando à distância. Havia orgulho e dor entrelaçados. — A segunda parte do Aspecto do Anjo da Morte. Voo sem asas. Ascensão com a força da vontade. Só os que entendem que a morte não tem peso, aprendem a flutuar sobre ela.

    Abri os olhos. A luz dourada da ilusão de Moradina ofuscava tudo ao redor, ,mas eu estava em pé, No ar, elevado pela minha própria mana.

    — Agora você vai me alcançar? — zombou ela.

    — Não. — respondi com voz baixa, fria. — Vou te derrubar.

    E num piscar, desatei a voar, trovejava ao redor dela em espirais negras, cada raio uma serpente faminta, cada conjuração, mais precisa, a batalha tomava outra forma agora, não era apenas uma guerra de feitiços. Era uma dança no céu entre o trovão e a rocha, entre o discípulo da morte e o avatar de um Deus.

    E eu ainda não tinha terminado.

    Moradina tentou recuar, criando um pedestal dourado sob os pés para manter distância, mas foi tarde demais. Um raio negro, em espiral, atingiu sua plataforma com violência, explodindo-a em lascas de ouro etéreo.

    Ela perdeu o equilíbrio por um segundo.

    Foi o suficiente.

    Apareci acima dela com um estalo etéreo, e a chutei com toda a força que a gravidade e minha vontade permitiram. O impacto a lançou em queda livre, abrindo um sulco flamejante no chão da arena mágica. Poeira dourada e faíscas negras se ergueram num redemoinho insano.

    Pousei logo depois, com os joelhos quase cedendo. Minha mana estava se esgotando. Cada célula do meu corpo parecia vibrar de exaustão, mas eu ainda estava de pé. Senti o sabor metálico do sangue na boca, o coração acelerado batendo como um tambor de guerra.

    Diante de mim, a ilusão de Moradina também se erguia devagar. Sua aparência estava suja, os cabelos desgrenhados, a pele bronzeada com marcas de queimaduras e cortes, o manto de pedra desfeito. Seus olhos, no entanto, ainda ardiam. E um sorriso surgiu em seus lábios rachados.

    Nada mal, apóstolo. — ela cuspiu sangue. — Mas será que sabe lutar como um mortal agora que o divino se foi?

    Respirei fundo, fechei as mãos em punhos.

    — Não sou mais um mortal comum. Mas posso lutar como um.

    Ela avançou primeiro.

    O primeiro soco veio reto, seco. Bloqueei com o antebraço, mas o impacto fez meus ossos rangerem. Reagi com um gancho no estômago, e ouvi o ar escapar dos pulmões dela. Mas ela revidou com um cruzado no meu queixo que me fez ver estrelas.

    Caí de joelhos. Ela veio pra cima com o joelho erguido. Rolei pro lado, levantando poeira e dor.

    Já matou Deuses com os punhos, garoto? — ela perguntou entre os dentes, os olhos queimando com orgulho e loucura.

    — Não. Mas vou começar por você.

    Avancei com uma sequência de golpes. Dois socos na costela, uma cotovelada no rosto. Ela cambaleou, mas me agarrou e me jogou contra uma parede de mana ainda vibrante. O choque me arrancou um grito abafado.

    A arena mágica estava devastada, o chão rachado, o céu falso coberto de nuvens negras e trovoadas sombrias que ainda dançavam em volta. O poder se desfazia ao redor. Agora, éramos só dois corpos. Dois respiros ofegantes. Dois corações tentando bater mais forte que o outro.

    Cada golpe que trocávamos era uma sentença. Cada bloqueio, um grito engolido.

    Era uma luta de vontades.

    Os ecos de nossos golpes preenchiam a torre mágica, e de longe, Oliver observava em silêncio, as mãos entrelaçadas e o cachimbo apagado. Pers observava com os olhos úmidos, entre o orgulho e o pavor, o corpo tenso, como se quisesse intervir.

    Mas ela sabia. Aquilo era meu. Aquilo era o fim de algo — ou o começo de tudo.

    Com o punho partido, os lábios cortados e as pernas bambas, avancei mais uma vez, gritando como quem chamava o destino para me ouvir.

    Moradina me esperava, o corpo também em pedaços. E com um último suspiro…

    Colidimos.

    O impacto final não teve som.

    Foi como o fim de uma tempestade quando até os trovões já desistiram de gritar.

    Meu punho encontrou o rosto dela com um estalo seco, brutal, e vi seus olhos se revirarem. Ela cambaleou, as pernas vacilaram e, por fim, desabou no chão da arena como uma estátua que perdeu o último pilar. Moradina, a Deusa da terra, mesmo que ilusória, jazia caída aos meus pés.

    Fiquei de pé por um segundo.

    Apenas um segundo.

    Então meu corpo desistiu.

    Desabei de joelhos, os pulmões ardendo, os músculos tremendo, o sangue escorrendo pelo queixo. Minha visão falhava, os sons da realidade se distorciam, e antes que o mundo escurecesse, uma última imagem me abraçou: a torre mágica desfeita, girando num céu sem cor, e a silhueta de Pers correndo em minha direção, com os cabelos esvoaçando como um vendaval de prata.

    Depois, só o escuro.

    Acordei devagar, com a sensação de que flutuava num oceano morno, seguro, mudo. Havia calor ao meu redor. Um perfume doce e familiar.

    Pisquei.

    Luz dourada atravessava as nuvens. Girassóis balançavam suavemente ao vento. E minha cabeça repousava no colo de alguém.

    — Pers…? — murmurei, a voz mais fraca que um suspiro.

    Ela olhou para mim com os olhos úmidos de alegria e alívio, os dedos acariciando meu cabelo com ternura. O vestido escuro contrastava com a luz viva do campo ao nosso redor, como se a morte abraçasse a vida.

    — Não, você não morreu — disse ela, com um sorriso que carregava o sol inteiro. — Você venceu, Hades.

    Aquelas palavras me atingiram como uma bênção. A dor no corpo ainda era real, mas o peso da dúvida, do fracasso, da impotência… havia sumido.

    — Eu… venci?

    — Venceu — ela assentiu, a voz embargada. — Depois de trezentas e poucas mortes, você venceu uma Deusa, ainda que apenas a ilusão de uma. E não apenas com feitiços, mas com vontade. Com tudo o que você é.

    Fechei os olhos de novo, deixando um sorriso se formar.

    — Então… posso dormir um pouco?

    Ela soltou uma risadinha entre lágrimas e respondeu:

    — Pode. Eu cuido de você.

    E, com a cabeça em seu colo, a brisa dos campos me embalando, adormeci. Pela primeira vez em muito tempo, sem medo.

    No dia seguinte, ainda com os músculos doendo e a alma leve como as nuvens, voltei para a torre mágica.

    Os campos de girassóis pareciam mais dourados, os corredores da torre, sempre envoltos em uma aura silenciosa de mistério, pareciam vibrar com um tipo estranho de comemoração silenciosa.

    Oliver estava à minha espera. Sentado sobre sua mesa como se fosse um trono improvisado, com as pernas cruzadas, o cachimbo escorando no canto dos lábios e a fumaça púrpura subindo em espirais preguiçosas.

    Ele me olhou com aquele meio sorriso de quem viu séculos passarem como capítulos de um livro entediante e disse, sem qualquer contexto:

    — Mulheres-gato são as melhores.

    Parei. Pisquei. Pers, ao meu lado, ergueu uma sobrancelha, franzindo a testa com um misto de confusão e divertimento.

    — O… quê? — perguntei, achando que meu cérebro ainda estava se reajustando à realidade.

    Oliver bateu a bengala no chão duas vezes como se invocasse alguma revelação divina, tragou o cachimbo com gosto e assoprou a fumaça em forma de um felino ronronando.

    — Mulheres-gato são as melhores — repetiu ele com solenidade. — Essa é a senha. Para o meu mausoléu. Fica em Galath’enor, perto da cratera de vidro e da árvore que nunca perde as folhas. Diga a senha com confiança, e a tumba se abrirá como os braços de uma amante bem-humorada.

    Fiquei em silêncio por um instante, absorvendo aquilo.

    — Você… realmente escolheu isso como senha?

    — Exatamente — respondeu ele, como se acabasse de citar Aristóteles. — Porque ninguém jamais diria isso por acaso em Galath’enor. E porque… bem, não se faz um bom tesouro sem um pouco de charme duvidoso.

    Pers riu baixo, levando uma mão à boca.

    — Ele está certo. É ridículo demais para ser coincidência.

    Oliver estalou os dedos e a fumaça se dissipou ao nosso redor.

    — O mausoléu é seu, meu caro. Você venceu a aposta. Mas só poderá abri-lo após reencarnar. Até lá, mantenha-se vivo. Ou… o mais funcionalmente morto possível, no seu caso.

    Eu sorri, sacudindo a cabeça.

    — Mulheres-gato, hein?

    — As melhores. — disse ele com seriedade absurda, como quem guarda um trauma de milênios.

    E assim começou mais um dia de treinamento, com uma senha absurda, um sorriso nos lábios e um futuro cheio de portas se abrindo lentamente diante de mim.

    Oliver estava encostado à grande janela arqueada da torre, de onde se via o campo de girassóis balançando ao vento como se estivessem em eterna reverência ao sol – ou talvez à Deusa que repousava em silêncio ao meu lado.

    O cachimbo dançava entre seus dedos com elegância automática, como se até os gestos mais simples dele fossem ensaiados num teatro invisível. Ele me lançou um olhar que era metade admiração, metade pura perplexidade.

    — É realmente impressionante… — disse, como se falasse consigo mesmo, mas com a voz alta o suficiente para preencher a sala. — Eu, Oliver von Fell, o mago mais genial da história da humanidade — e digo isso com a modéstia de quem foi declarado arqui-inimigo por três bibliotecas conscientes — me pego surpreso com frequência alarmante quando se trata de você, Hades.

    Ele caminhou até mim, deixando o cachimbo soltar uma espiral de fumaça em forma de interrogação acima de sua cabeça.

    — Não é só o fato de ter sobrevivido 380 mortes. Nem a sua resistência absurda, que desafia qualquer tratado sobre limites mortais. O que me perturba — e digo perturba com carinho — é que você não apenas aprendeu as duas magias do Aspecto do Anjo da Morte completamente sozinho, como as utilizou antes mesmo de atingir o quinto grau de pureza.

    Ele ergueu um dedo para enfatizar.

    — Antes do quinto grau, Hades! Você manipulou os Caminhos Etéreos com a naturalidade de quem respira ar limpo e se moveu entre planos como se estivesse dando passos num lago tranquilo. Depois, voou. Voou! Sem asas, sem encantamentos, sem círculos de invocação. Apenas… com a sua mana. Como se fosse a coisa mais simples do mundo.

    Oliver começou a andar de um lado para o outro, falando cada vez mais rápido.

    — Eu levei trinta e dois anos para compreender a mecânica do Caminho Etéreo. Quarenta para a sustentação da gravidade com mana condensada. E você… você fez isso durante uma luta! Contra uma Deusa ilusória, com o corpo em frangalhos e a alma à beira do colapso.

    Pers sorriu, quieta, mas orgulhosa, os olhos brilhando como se aquela cena toda fosse um presente só dela. Um reconhecimento que ela já conhecia, mas que agora era dito em voz alta.

    — É porque ele foi forjado de forma diferente — disse ela suavemente. — Ele nasceu das cinzas da própria morte. Carrega em si uma centelha que nunca se apagou. Ele não aprende magia como os outros, Oliver. Ele lembra.

    Oliver parou. Olhou para mim como se visse pela primeira vez.

    — Talvez seja isso… Talvez você não esteja descobrindo nada. Talvez esteja apenas despertando aquilo que já era seu desde sempre. Um eco antigo. Uma herança de alguém que já caminhou entre Deuses e esqueceu disso por tempo demais.

    Ele suspirou, e finalmente sorriu.

    — Mas, francamente, Hades… Isso me irrita um pouco. Você não poderia ser apenas muito talentoso e me deixar com a ilusão de ser insuperável por mais alguns anos?

    — Posso tentar. — respondi, rindo.

    — Não tente. — respondeu ele, apontando o cachimbo para mim. — Continue me surpreendendo. Afinal, é divertido ter alguém que me lembra por que vale a pena ensinar.

    Naquela tarde, não treinamos. Oliver apenas me deixou sozinho com Pers no campo dourado, enquanto o céu tingia o horizonte em tons suaves. E pela primeira vez, me permiti pensar: talvez eu estivesse mesmo me tornando quem eu deveria ser.

    Dias depois da vitória sobre a ilusão de Moradina, ainda com os músculos doendo e o eco da luta pulsando em minha memória, reencontrei Oliver na torre mágica. Ele me observava com um ar pensativo, girando o cachimbo entre os dedos como quem ponderava sobre o destino de um rei.

    — Hades — começou ele, com um tom quase respeitoso, como se estivesse prestes a anunciar uma promoção divina —, preciso te contar uma coisa sobre aquela última luta.

    Me ajeitei no banco de pedra. Pers estava ao meu lado, silenciosa como uma tempestade adormecida.

    — A ilusão de Moradina… não era exatamente uma simulação inteligente. — Ele apontou para a própria têmpora. — Era uma marionete, controlada por mim. Cada feitiço, cada soco, cada fala, cada movimento. Eu estava lá, dentro dela, como um mestre de marionetes com cordas de mana.

    Fiquei em silêncio por um segundo. Isso mudava tudo — e ao mesmo tempo, não mudava nada.

    — Isso significa que, além de ganhar a aposta, eu derrotei você?

    — Sim. — disse ele com um sorriso tenso. — E antes que diga algo tolo como “foi sorte”, deixe-me dizer: não foi. Aquela luta era eu. Meu estilo, minha estratégia, minha mana… tudo. E você venceu.

    Pers o olhou com os olhos semicerrados, como se já soubesse o que viria a seguir. Ela cruzou os braços, mas não disse nada. Ainda.

    — Por isso — continuou Oliver, caminhando até uma estante entalhada com runas —, acredito que você está pronto para aprender o próximo passo. A verdadeira técnica secreta. Aquela que nem mesmo muitos arcanistas conseguiram dominar por completo: a Purificação das Veias de Mana.

    Perséfone levantou-se num rompante, os olhos brilhando com uma mistura de medo e desaprovação.

    — Você não pode! Não agora. Essa técnica exige demais. Ele acabou de alcançar o grau quatro. O corpo dele ainda está se adaptando à própria mana. Forçá-lo a isso agora pode destruir o que construímos até aqui.

    Oliver não recuou. Seus olhos cinzentos brilharam com uma firmeza inusitada.

    — E esperar demais pode estagnar o que já está florescendo. Perséfone, ele superou limites que magos demoram décadas para alcançar. Ele está absorvendo magia com uma velocidade absurda. Se continuarmos nos limitando por medo, corremos o risco de queimar a centelha antes que ela se torne chama.

    Ela olhou para mim, e eu a encarei de volta. Seus olhos estavam marejados — mas ela respirou fundo, controlando as emoções.

    — Ele não é só um projeto. Ele é meu apóstolo. — disse baixinho. — Meu primeiro.

    — E por isso mesmo — respondeu Oliver, com um tom inesperadamente gentil — você deve confiar nele.

    O silêncio que seguiu foi tenso e espesso como névoa, mas aos poucos, ela assentiu. Um gesto pequeno, mas cheio de peso.

    — Se ele vai fazer isso… — murmurou ela — então que não faça sozinho.

    Ela se aproximou de mim, tocou meu peito com a palma quente da mão e sussurrou:

    — Quando doer, me chama. Mesmo que só em pensamento.

    Assenti. Senti o calor daquela promessa se espalhar pelo corpo.

    Oliver estalou os dedos. A sala inteira se iluminou com linhas de mana que escorriam pelas paredes como rios encantados.

    — Hades… — disse ele — chegou a hora de transformar seu corpo em algo digno de carregar a mana de uma Deusa. Vamos ver se consegue sobreviver à purificação completa dos seus vasos de mana.

    E assim começou uma nova etapa. Mais profunda. Mais perigosa. Onde o sangue e a mana se misturam. Onde as limitações humanas começam a ceder. Onde começa, de verdade, o caminho de quem nasceu para matar Deuses.

    A sala tremeu com a intensidade da magia que se acumulava ao meu redor. As runas esculpidas nas paredes da torre mágica pulsavam em uníssono com meu coração, como se o próprio espaço tivesse sido esculpido para aquele momento. Oliver se afastou alguns passos, observando com olhos severos e atentos. Pers permaneceu perto, ajoelhada ao meu lado, sua mão ainda tocando meu peito como um elo silencioso.

    — Respire fundo — disse Oliver. — E empurre.

    Fechei os olhos.

    Comecei a forçar a mana a correr com violência por dentro de mim, por cada nervo, vaso, veia e os canais místicos que até então só conhecia de forma intuitiva. Era como incendiar rios invisíveis. A dor foi imediata. Cortante. Cegante. Meu corpo inteiro gritou em agonia e meus ossos pareceram ranger como galhos prestes a quebrar. Não havia escapatória — nem para frente, nem para trás. Apenas através.

    Mas junto da dor, algo novo surgiu: um brilho escuro, quase elegante, serpenteando por entre a minha própria essência. Como uma dança silenciosa da morte — fria, exata, implacável. A mana de Pers respondia, moldando o sofrimento em poder.

    — Continue, Hades — sussurrou Pers, seu toque firme, mas sua voz delicada, como seda em meio ao incêndio. — Você está abrindo portas que nunca mais se fecham.

    A pressão aumentou. Meus pulmões queimavam, e o suor se misturava ao sangue que escorria pela minha testa. Eu sentia. Cada artéria espiritual se expandindo. Cada centelha oculta de magia sendo arrastada para fora, refinada à força, como carvão virando diamante.

    E então… algo quebrou dentro de mim.

    Uma explosão de luz negra envolveu meu corpo. Minhas veias brilharam com um brilho sombrio por um instante eterno. Caí de joelhos, arfando, enquanto Oliver sorria — não com sarcasmo, mas com admiração genuína.

    — A primeira etapa… completa — disse ele, lentamente. — E você ainda respira. Isso já é mais do que a maioria consegue.

    Olhei para minhas mãos trêmulas. Não eram mais as mesmas. Algo dentro de mim havia sido rasgado, realinhado, purificado. Eu era o mesmo. Mas não era.

    Pers se aproximou, enxugando o sangue do meu rosto com um lenço escuro. Sorriu com ternura — e um leve tremor.

    — Está só começando, meu Hades. Daqui em diante, o que está por vir… fará até os Deuses estremecerem.

    A torre ficou em silêncio, exceto pelo som rítmico da minha respiração pesada e do cachimbo de Oliver soltando uma última espiral de fumaça púrpura.

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