Oliver sorriu quando percebeu que meus olhos haviam se fixado no último feitiço: Ignis Mortem. Ele nem precisou perguntar. Sabia. A afinidade se revelava sozinha, como um perfume invisível que apenas os magos experientes sentiam.

    — Claro que seria esse — murmurou, pegando o cachimbo de volta no ar. — A magia mais condenada do círculo, e você se apaixona por ela à primeira vista. Ah, Perséfone, você realmente tem bom gosto.

    — Ele é o primeiro — respondeu ela lá de cima, com os pés balançando suavemente no ar, sentada sobre uma nuvem de mana negra como se fosse um trono. — É natural que se incline para a chama que lembra minha essência.

    Oliver apagou todas as luzes da torre com um estalar de dedos. De repente, tudo se tornou escuridão. A única luz era a que emanava do próprio professor, uma aura lilás bruxuleando como a respiração de uma estrela morta.

    — Escute com atenção, Hades. Ignis Mortem não é só um feitiço. É um juramento. Quando você o conjura, você não pede ao mundo que se curve. Você exige. A chama responde à dor. À perda. À saudade.

    Ele caminhou lentamente até mim, os olhos faiscando de expectativa.

    — Essa chama nasce da ausência. É o fogo daquilo que foi roubado. Diferente do fogo comum, que consome oxigênio, Ignis Mortem consome o tempo de vida. A energia vital. A memória da existência.

    Levantou a mão e desenhou com o indicador uma runa no ar. Uma espiral interrompida por linhas finas, quase como uma cicatriz mágica.

    — Primeiro, você precisa oferecer algo. Não um sacrifício físico. Mas uma lembrança. Uma memória que doa. Que arda. Algo que, se você deixasse queimar, te mudaria para sempre.

    — Como…? — comecei, hesitante.

    — Como aquela vez em que você segurou sua irmã nos braços e soube que ninguém viria salvá-la — disse Oliver como se a menção a isso não fosse nada.

    A lembrança me atingiu como um punhal. Os olhos apagados dela. O sangue que manchava o chão. O grito que nunca saiu da minha garganta. Meus punhos cerraram sem que eu percebesse.

    — Use isso — continuou Oliver, sem suavidade. — Veja essa dor. Não fuja dela. Sinta. E quando doer o bastante… transforme-a em chama.

    Ele abriu a palma da mão. A runa brilhou, tremulando.

    — Repita comigo: Ignis Mortem.

    Ignis Mortem — sussurrei, sentindo um calor denso subir pela espinha.

    A dor se adensou dentro de mim como lava represada. E, de repente, explodiu.

    Minha mão se acendeu com uma chama negra.

    Mas não era como o fogo tradicional. Era opaco. Como a sombra de uma chama. Como se queimasse não o mundo visível, mas algo por baixo dele. As pedras da torre não estalaram. O ar não aqueceu. Mas algo morreu naquele instante. Algo antigo. Algo dentro de mim.

    — Impressionante — murmurou Oliver. — Você não apenas a conjurou. Você a compreendeu.

    Tentei falar, mas minha garganta estava seca. Aquilo me drenava de uma forma diferente. Como se eu tivesse entregue um pedaço meu à magia. A fumaça da chama subia em espirais lentas, como se o tempo tivesse desacelerado ao meu redor.

    — Essa chama é sua agora. Mas cuidado. Ela sempre cobra. Sempre arde mais do que você está disposto a dar.

    Pers flutuou até o chão, andando na minha direção. A chama ainda ardia fraca em minha mão. Quando ela a tocou com a ponta dos dedos, a chama se dobrou a ela, como um servo reconhecendo sua criadora.

    — Você nasceu para isso — disse ela baixinho. — Queime. Mas nunca esqueça por que.

    Eu a olhei. E naquele instante soube: não importava quanto poder eu conquistasse, se me perdesse pelo caminho, a chama deixaria de me obedecer. Eu teria que dominar o fogo da perda… sem me deixar consumir por ele.

    Oliver bateu as mãos, voltando à teatralidade habitual.

    — Muito bem! Terminamos por hoje. Vá descansar, acenda um girassol com a mente, não sei. Amanhã, Hades, você aprenderá como fazer essa chama dançar.

    E com isso, o dia se encerrou. Mas a chama, a chama negra em minha mão… essa, eu sabia que jamais se apagaria.

    Quando acordei na manhã seguinte, a chama ainda queimava dentro de mim.

    Não de forma literal, não como um incêndio devorando carne ou ossos, mas como uma presença. Como se algo tivesse sido colocado onde antes havia apenas silêncio. Um novo espaço em minha alma preenchido pela Ignis Mortem.

    Desci os degraus espiralados da torre mágica e encontrei Oliver já de pé, girando o cachimbo entre os dedos como se ensaiasse um discurso.

    — Dormiu bem, encarnação da morte? — disse ele, sem sequer me olhar. — Espero que sim. Hoje vamos fazê-la dançar. A chama, claro. A outra encarnação da morte está muito bem ali no canto te observando com olhos de viúva em lua de mel.

    Pers, sentada em uma muralha flutuante de mana negra, riu. Sua silhueta delineada pela luz espectral da torre era ao mesmo tempo majestosa e tentadora. Ela usava um vestido de seda escura que se movia como se tivesse vontade própria, os pés descalços cruzados no ar.

    — Ele está ficando cada vez mais bonito, você percebeu, Oliver? — disse ela, com a voz arrastada como um sussurro de vento.

    — Mais letal, eu diria. E isso serve — resmungou o professor, cuspindo uma bolha púrpura que flutuou até sumir. — Ignis Mortem precisa ser mais que um golpe. Precisa ser um estilo. Uma assinatura. Hoje vamos treinar variações.

    Ele traçou no ar um círculo mágico. Uma espécie de armazém etéreo se abriu, revelando fileiras de estátuas humanoides feitas de obsidiana.

    — Essas belezinhas foram encantadas com resistência a calor, força e impacto. Em outras palavras: podem aguentar sua próxima explosão. Ou morrer tentando.

    Me posicionei diante da primeira. Senti a presença do fogo negro dentro de mim, vibrando como uma serpente em repouso.

    — Primeiro exercício: Concentre-se. Invoque a Ignis Mortem sem vocalizar. Faça-a se curvar à sua vontade silenciosa. Sem palavras, sem gestos. Só comando mental.

    Fechei os olhos. Pensei em minha mãe. No dia em que ela tentou salvar uma criança, mesmo sabendo que os bombardeios estavam caindo perto. Pensei nos olhos dela se voltando para mim, sorrindo como se dissesse: “viva”.

    A chama nasceu nos meus dedos. Negra. Silenciosa. Quente como o fim do mundo.

    — Muito bem — murmurou Oliver. — Agora, dê forma.

    Abri os olhos. Toquei o chão com os dedos. A chama se espalhou num círculo. Uma serpente negra se ergueu, feita de fogo sem luz, ondulando no ar como uma extensão do meu próprio medo. Depois, arremessei.

    A criatura avançou em linha reta, atingindo a estátua com impacto seco. Ela rachou de cima a baixo, como vidro sob pressão, até desabar em mil estilhaços.

    — Excelente. Agora concentre-se em velocidade. Preciso ver essa magia usada em combate real.

    Outras estátuas se ergueram. Pers desceu para o solo e se sentou, observando em silêncio absoluto.

    Eu invoquei a chama novamente. E de novo. E de novo.

    Variando os formatos: lanças, serpentes, estilhaços, círculos de chamas ao redor dos pés. Oliver comandava os exercícios como um general. E a cada conjuração, algo dentro de mim ficava mais afiado.

    Comecei a entender que a Ignis Mortem não era um feitiço como os outros. Era um reflexo. Uma extensão das minhas emoções. De minha dor. E de minha determinação.

    — Agora, Hades — disse Oliver, exausto depois de horas me observando. — Quero que invoque e sustente essa chama… enquanto mantém todos os seus canais de mana abertos. Continue purificando enquanto conjura. Se conseguir isso, poderá lutar com ela em campo aberto.

    Ela.

    A palavra ficou suspensa no ar como uma sentença.

    Pers se levantou.

    — Ele está pronto, Oliver. Pode não estar no sexto grau ainda, mas está quase. E isso… isso é o mais perto de ser meu escolhido de verdade.

    Ela caminhou até mim, se abaixou e tocou minha testa.

    — Da próxima vez que usar a Ignis Mortem, chame meu nome. Eu quero que o mundo saiba quem está com você quando essa chama queimar as estrelas.

    E então, naquele dia, mais uma vez eu queimei. Mas pela primeira vez, não com dor, com orgulho.

    O treino recomeçou com o silêncio típico da alvorada mágica da torre.

    A torre parecia suspensa no tempo, o ar denso de mana, os pilares flutuando em órbitas suaves, e a luz que entrava por janelas que não existiam, como se o próprio espaço obedecesse às leis de uma sinfonia esquecida.

    Eu já havia dominado a base da Ignis Mortem. A chama negra respondia ao meu chamado como uma fera fiel. Mas Oliver queria mais. E eu também.

    Hoje era sobre controle, intensidade e permanência. E sobre… ela.

    Perséfone.

    — Quando conjurar essa chama, chame por mim. — ela havia dito ontem, a voz ecoando na minha memória com a clareza de uma profecia — Não como minha face. Mas como minha alma.

    Eu não sabia exatamente o que ela queria dizer. Mas no momento em que preparei o feitiço, em silêncio e com as veias de mana ainda latejando da purificação, algo aconteceu.

    Um sussurro atravessou minha mente como uma corrente fria:

    Aristi Cthonia.

    As palavras não vieram da minha língua, nem de um pensamento lógico. Vieram de algum lugar antigo. De dentro de mim. Ou talvez de dentro dela.

    Abri os olhos e a Ignis Mortem reacendeu com uma violência nova.

    Como uma lança forjada com as sombras de cem cemitérios, como se a chama tivesse sido ungida com o próprio suspiro da morte. Ela estalava, não como fogo, mas como carne queimada em rituais proibidos.

    Pers, que antes apenas observava, deu um passo à frente.

    — Você… — disse, com uma expressão que oscilava entre surpresa e fascínio. — O que foi isso que você disse?

    Aristi Cthonia. — repeti, como se fosse um segredo que finalmente lembrava.

    Ela piscou lentamente. Seus olhos, tão rubros quanto o crepúsculo sobre um campo de batalha abandonado, se estreitaram.

    — Isso… isso é linguagem antiga, anterior até mesmo à minha criação como consciência divina. Mas ninguém, nem mesmo eu, sabe o que isso quer dizer.

    Oliver, encostado numa muralha de mana, soltou uma baforada de fumaça roxa, confuso.

    — Fascinante. Um comando enraizado no inconsciente mágico. Talvez seu vínculo esteja se aprofundando em níveis que nem mesmo as escrituras das treze escolas mágicas tentaram catalogar.

    Eu não respondi. Porque ali, naquele momento, senti.

    A ligação.

    Como se ela estivesse dentro de mim. Ou melhor, como se a minha mana estivesse se tornando um receptáculo para a dela.

    A mana morta.

    O que antes era uma centelha negra, agora era um rio. E não era apenas mana negra. Era dela. Era morte. Uma mana que não vibrava como a dos vivos. Ela fluía em silêncio. Cortante. Precisa. Com propósito.

    O próximo ataque foi diferente.

    Criei três serpentes negras com a Ignis Mortem. Mas quando canalizei o nome em minha mente, Aristi Cthonia, elas se multiplicaram em nove.

    E não apenas queimavam. Elas desfaziam.

    As estátuas, encantadas para resistir até a feitiços de grau sete, não estouraram. Não racharam. Elas apodreceram na base. Como se tivessem sido tocadas por um milênio em um segundo.

    Pers engoliu em seco.

    — Isso… não é comum. Hades, o que você está fazendo é usar a forma plena da minha mana. Nem mesmo os vampiros podem fazer isso. Nem Regis conseguia isso sem um ritual de sangue.

    Oliver se aproximou, olhos arregalados, o cachimbo esquecendo de produzir fumaça.

    — Isso é infusão direta. Você não está usando mana. Você está canalizando uma Deusa. E sem morrer no processo.

    Minha respiração estava pesada. Meu corpo tremia. Mas não de fraqueza.

    De reverência.

    Eu finalmente entendi.

    Não era só sobre usar feitiços. Era sobre tornar-me digno deles. Aristi Cthonia era mais que um nome. Era um elo. Um título. Um sussurro entre mundos e épocas.

    Com o tempo, descobri que toda vez que conjurava um feitiço com mana morta, necromancia, ilusões espectrais, maldições, o poder era maior. A precisão era assustadora. Os esqueletos invocados por Pers para treinamento se desfaziam antes mesmo de me tocarem. Os campos ao redor da torre murchavam e floresciam outra vez, como se o tempo dançasse ao meu redor.

    Pers olhava pra mim como quem via o passado e o futuro colidindo num ponto só.

    — Você não está só aprendendo magia — ela disse, com a voz baixa, — Está redescobrindo algo. Algo que talvez nem mesmo Ao possa apagar.

    Oliver sorriu.

    — Um mago aprende. Um apóstolo recorda.

    E eu, Hades, no centro da torre mágica, cercado pelas cinzas do que um dia foram obstáculos, entendi:

    Eu estava cada vez mais perto de ser o que nasci para ser.

    O sol que não se via brilhava acima da torre mágica, tingindo o céu ilusório com tons dourados e rubros que se espalhavam como tinta viva sobre um papel ancestral. Após mais um dia de treino — ou melhor, de revelações — Oliver fez algo incomum: afastou-se das runas que traçava no ar, cruzou os braços sobre o peito e nos encarou com um meio sorriso.

    — Descobri. — disse, com a voz casual, quase divertida. — Descobri por que você é tão poderoso, Hades.

    Pisquei, confuso. Pers também virou o rosto em sua direção, curiosa.

    — É claro que o talento natural, a conexão divina e toda essa baboseira que os bardos adoram cantar conta. Mas não é só isso. — apontou o cachimbo para mim, girando-o entre os dedos. — É o vínculo. O vínculo emocional. Você está apaixonado por sua patrona. E ela, por você.

    Fiquei mudo. Pers arregalou os olhos e, em um raro momento, corou. Mesmo com a aura gélida de Deusa da morte, as bochechas dela ficaram levemente rosadas. Um calor silencioso percorreu meu peito. Oliver só riu.

    — Ora, não precisa ficar sem graça, minha cara. Eu li milhares de histórias, e quando há amor verdadeiro entre um bruxo e sua patrona, a mana dança de forma diferente. A fusão é mais intensa, mais pura. Isso explica sua velocidade absurda de aprendizado. Vocês não são só mestre e discípulo. São espelho e reflexo.

    Caminhou até uma mesa flutuante e estalou os dedos, fazendo surgir três xícaras de chá. Entregou uma para mim, outra para Pers, e segurou a dele com uma expressão travessa.

    — Dito isso, tirem o dia de folga. Vão caminhar, ver as estrelas, rir das bobagens que só apaixonados entendem. Façam o que quiserem. Só… — ele ergueu o dedo, em tom teatral — lembrem-se de usar camisinha. Afinal, se você vai reencarnar, Hades, seria embaraçoso descobrir que seu filho nasceu antes de você.

    Tossi o chá. Pers, completamente vermelha agora, desviou o olhar, os cabelos prateados caindo como uma cortina sobre o rosto. Ainda assim, respondeu, em um tom nervoso porém firme:

    — É… é muito cedo para… relações… carnais.

    — Claro, claro. — Oliver acenou com a mão, como quem espanta mosquitos — Só estou dizendo, o tempo é estranho com Deuses e apóstolos. Melhor prevenir do que segurar um bebê com trinta anos nas costas dizendo “pai?”

    Pers resmungou algo em uma língua antiga que soava como uma ameaça divina e mortal, e Oliver apenas riu mais alto.

    Eu só sorri, bebendo meu chá. Porque mesmo com o caos, o sangue e a morte ao redor… havia uma paz doce naquele instante. Um momento raro. Humano.

    E talvez, pela primeira vez, eu estivesse entendendo que o verdadeiro poder não estava apenas em feitiços ou em círculos de magia.

    Mas em algo mais frágil. Mais real.

    Algo que chamava o nome dela no fundo da minha alma.

    Perséfone.

    — Eu… não sei o que fazer com um encontro assim, Hades. — disse Pers, mexendo nervosamente no cabelo prateado, um gesto raro para alguém que parecia sempre dominar o cenário à sua volta. Os olhos carmesins, que costumavam conter milênios de segredos, hoje pareciam incertos, hesitantes. — Foi tudo tão repentino.

    — Então me deixa cuidar de tudo. — respondi, pegando gentilmente sua mão. — Hoje é por minha conta.

    Ela assentiu devagar, ainda surpresa. Talvez estivesse acostumada a controlar, prever, manipular, mas agora, deixava-se levar. E eu já sabia onde nossa primeira parada seria.

    Conduzi-a pelas vielas da vila de esqueletos que, ironicamente, viviam mais animados do que muita gente viva que conheci. Viramos à esquerda no beco das caveiras cantoras, e logo à frente a fachada inconfundível da “Costuraria Charme da Morte” surgiu, uma pequena alfaiataria cujo dono era o esqueleto mais charmoso de todos: Monsieur Ossain, um esqueleto de maxilar saltado, bigodes finamente torcidos e um monóculo encantado que tilintava com a luz arcana do teto da vila.

    — Monsieur Ossain, precisamos estar apresentáveis. — falei, com um leve aceno.

    Mais bien sûr, monsieur Hades! — respondeu com seu sotaque dramaticamente francês, girando no calcanhar ósseo. — Venham, venham! A morte pode ser eterna, mas a elegância é instantânea!

    Fui primeiro. Deixei-me guiar pelas mãos hábeis do esqueleto que girava tecidos, colarinhos e cortes com precisão absurda. Quando me olhei no espelho… por um momento, nem me reconheci.

    O terno era negro como a meia-noite, mas não apagado, o tecido absorvia a luz com uma elegância viva. As bordas do paletó tinham linhas sutis em cinza chumbo que lembravam runas antigas, enquanto os botões de obsidiana brilhavam com reflexos purpúreos, evocando a fumaça do cachimbo de Oliver. A camisa por baixo era de um vinho profundo, quase cor de sangue envelhecido. Um broche em forma de flor de lótus morta repousava na lapela, pequeno, mas carregado de peso simbólico. E os sapatos? Lustrosos, de couro escuro com detalhes em prata opaca, como se a noite tivesse sido costurada nos meus pés.

    — Uau… — disse Pers, com uma surpresa genuína na voz. — Você está… realmente lindo.

    — Espera só até ver você.

    Monsieur Ossain virou-se para ela com a reverência de um maestro antes do clímax da sinfonia.

    — Ah, ma chère dame, é sua vez de brilhar como o eclipse sobre um campo de violetas. Sigam-me.

    A transformação foi hipnotizante. Ela escolheu um vestido longo, que mesclava tons de preto fosco e roxo profundo. O corpete era justo, esculpido como se fosse moldado na própria forma da Deusa, com detalhes que lembravam asas de corvo ao redor dos ombros. A saia fluía como sombras líquidas, com bordas em degradê violeta que lembravam pétalas morrendo ao entardecer. Um laço escuro acentuava sua cintura, com uma pequena caveira de cristal preso no centro, um toque mórbido e encantador, como ela.

    Seus cabelos estavam soltos, com pequenas tranças entrelaçadas por flores secas e ramos de obsidiana polida. Sem uniforme, sem papel de professora, sem armadura divina.

    Apenas Perséfone.

    Quando saiu do provador, até Monsieur Ossain fez uma pausa respeitosa antes de bater palmas que ecoaram secas, de ossos contra ossos.

    Magnifique! Une vision de la nuit éternelle!

    Eu me aproximei, estendendo a mão.

    — Pronta?

    Ela sorriu, e naquele sorriso havia algo de menina e algo de imortal. Ela colocou a mão sobre a minha.

    — Nunca estive tão pronta para algo que não entendo.

    E assim, vestidos para a morte, ou talvez para a vida entre ela, começamos nosso encontro.

    A noite estava absurdamente calma quando saímos da vila dos mortos. A lua cheia se debruçava sobre os campos de girassóis como um olho antigo, silencioso e cúmplice, e cada passo que dávamos parecia parte de uma cena coreografada por um autor invisível.

    Seguimos em direção ao Coliseu de Ossium, uma antiga catedral reconvertida em teatro por um artista meio-louco e inteiramente morto. A construção era feita de ossos brancos como mármore, todos encantados para que não gritassem mais. 

    Colunas gigantescas sustentavam a cúpula onde anjos esqueléticos entoavam cânticos eternos, presos em um loop de adoração melancólica. O som dos passos era abafado por um tapete feito de veludo roxo e pétalas secas de flores extintas.

    Fomos guiados até o camarote mais alto, reservado por Oliver com antecedência e um suborno. Lá de cima, víamos todo o palco, onde os músicos, esqueletos com ternos completos e luvas encantadas, afinavam instrumentos que soavam mais vivos do que os tocadores. Quando as cortinas se abriram, o teatro silenciou com reverência. A peça começava.

    Era uma ópera antiga, escrita por um bardo que enlouqueceu após perder seu amor em uma guerra entre reinos que já não existem mais. Os cantores, espectros vestidos com túnicas de fumaça, interpretavam a história com vozes tão puras que era impossível saber se vinham da boca ou da alma.

    A soprano principal era um espectro feminino, translúcida e iluminada por uma luz pálida. Sua voz cortava o ar como neve derretendo em um dia frio. Cantava sobre ausência, saudade, e o tipo de amor que sobrevive ao tempo, à guerra e até mesmo à morte. Era um lamento e, ao mesmo tempo, uma oração.

    Foi quando senti algo.

    Suave, hesitante no começo… os dedos dela tocaram os meus. Perséfone deslizou sua mão sobre a minha com a delicadeza de alguém que não sabia se podia, mas queria. Olhei para ela.

    Os olhos vermelhos fitavam o palco, marejados, mas firmes. Ela não dizia nada. Não precisava.

    A mão dela apertou a minha com mais força quando a melodia chegou ao clímax. O personagem principal da ópera cantava sua despedida, jurando reencontrar sua amada mesmo que precisasse atravessar cem mortes para isso.

    No silêncio entre duas notas, ouvi Pers sussurrar, quase como se não quisesse que eu escutasse:

    — Eu também te encontraria. Em qualquer mundo. Mesmo que esquecesse quem sou.

    Senti meu coração bater de um jeito estranho. Não como quem se emociona. Mas como quem encontra um lar dentro de outro ser.

    A ópera continuou. Mas tudo o que eu escutava era a voz dela, mesmo quando ela não falava.

    Em seguida, a conduzi para um restaurante passando pelas estradas perfumadas pelos incontáveis girassóis que se erguiam como árvores por aquele plano.

    O restaurante se chamava La Morte Douce, um jogo de palavras que só fazia sentido naquele canto esquecido do mundo onde a morte tinha aprendido a cozinhar. Era um lugar pequeno, elegante, iluminado por velas presas nos olhos vazios de crânios dourados que flutuavam ao redor das mesas como lanternas dóceis.

    Fomos guiados até uma mesa próxima ao centro, coberta com uma toalha de linho escuro e taças de cristal velho. Os garçons, esqueletos vestindo fraques impecáveis e cartolas tortas, nos atenderam com um profissionalismo quase tocante. Um deles, com um grande bigode falso colado acima da arcada dentária, puxou a cadeira de Pers com uma reverência exagerada. Ela riu.

    — Ele parece mais cavalheiro do que muito vivo que conheci.

    — A morte ensina etiqueta — respondi, e ela arqueou uma sobrancelha com aquele ar de quem está quase sorrindo e quase provocando.

    Logo, a música começou. Um esqueleto solitário subiu em uma pequena plataforma e começou a tocar violino. As notas saíam suaves, como suspiros de um tempo que ninguém mais lembrava. E por algum motivo, cada som parecia combinar com aquele momento entre nós dois.

    Conversamos. Não sobre batalhas, nem sobre magia, nem sobre mortes ou renascimentos.

    Falamos de pequenas coisas.

    — Quando eu era criança, antes de me alistar… — comecei, mexendo no talher como se ele tivesse lembranças gravadas nele — eu costumava sonhar em morar numa cabana perto de um lago. Nada grande. Só um lugar onde o céu fosse refletido na água e não tivesse barulho de explosões.

    Pers me olhou por um tempo, como se decorasse cada palavra. Depois, respondeu com um sorriso leve:

    — Eu sempre quis ter uma estufa. Daquelas com vidro por todos os lados, onde eu pudesse cultivar flores e tomar chá no fim da tarde. Talvez com música clássica tocando de fundo.

    — Você consegue imaginar uma Deusa da morte com um regador e uma touca de jardinagem?

    — Você consegue imaginar um apóstolo da morte dormindo com um gato no colo?

    — Toquei um — disse, rindo.

    Ela inclinou o rosto, apoiando o queixo sobre os dedos entrelaçados.

    — E se… depois de tudo, quando isso tudo acabar… a gente tentar isso? O lago. A estufa. Os gatos.

    — E os girassóis.

    — E os girassóis.

    A comida veio. Um banquete inesperado. Pratos elaborados feitos de ingredientes que não existiam no mundo dos vivos, flores negras recheadas de luz líquida, vinho âmbar servido em taças que pareciam derreter devagar. Conversamos entre cada garfada.

    — Você tem medo de reencarnar? — ela perguntou, sem rodeios, mas com suavidade.

    Demorei para responder.

    — Não. Tenho medo de esquecer.

    — Esquecer o quê?

    — Você.

    Ela não disse nada por um momento. A música do violino deslizou entre nós, lenta como uma promessa não dita. Então, ela estendeu a mão sobre a mesa e segurou a minha de novo.

    — Então não esquece. Nem que tudo se apague. Nem que o mundo acabe. Me leva contigo.

    Apertei os dedos dela com força.

    — Prometo.

    Rimos depois. De coisas pequenas. De piadas ruins. De como os esqueletos sabiam dançar melhor do que muitos nobres vivos. Um deles até tropeçou com estilo. Eu fiz um brinde à incompetência graciosa. Ela brindou à ironia de jantar num restaurante de mortos e se sentir mais vivo do que nunca.

    Foi uma conversa que não teve pressa. Que não queria acabar. Que, se fosse possível, teríamos estendido até o fim dos tempos.

    E mesmo quando o jantar terminou, quando o vinho acabou e a música silenciou, ficamos ali. Mãos entrelaçadas. Olhares firmes.

    Porque algumas noites… a gente não quer deixar pra depois.

    Quando o jantar finalmente chegou ao fim, deixamos o La Morte Douce ao som de uma última nota aguda do violino esquelético. Os corredores de pedra suave se estendiam à nossa frente, iluminados pela luz fria e dourada das lanternas-flor. Estávamos de mãos dadas, e eu, sorrindo com um certo mistério, disse:

    — Preciso que confie em mim… — E antes que pudesse protestar, retirei delicadamente um pedaço de tecido escuro do meu bolso. — Mas para isso, preciso cobrir seus olhos.

    Ela arqueou uma sobrancelha, desconfiada.

    — Isso não vai terminar com esqueletos cantando serenatas e me atirando pétalas de rosas amaldiçoadas, vai?

    — Não — respondi, rindo. — Hoje não. Prometo.

    Ela suspirou teatralmente, depois se virou de costas e permitiu que eu amarrasse a venda sobre seus olhos. O tecido moldou-se ao rosto dela como se feito sob medida para uma Deusa. Dei-lhe o braço e começamos a andar pelos caminhos secretos que ligavam o campo de girassóis às profundezas mais esquecidas do mundo dos mortos.

    No caminho, falamos de coisas… incomuns.

    — Você sabia — começou ela, como quem lança uma curiosidade qualquer — que Divindades e apóstolos têm uma tendência quase irracional a gostar de gatos?

    — Gatos? — olhei para ela, mesmo que não pudesse ver. — Isso é… inesperado.

    — Sempre achei estranho. A maioria de nós tem afinidade com animais mais simbólicos: corvos, serpentes, lobos, dragões. Mas no fundo… acabamos todos encantados por criaturas que nos ignoram com graça. Vai entender.

    — Um mistério maior que a própria morte.

    — Não é o maior. O maior é o nome deste continente.

    — Chaia?

    — Hm-hm. — Ela sorriu, como quem revela um segredo proibido. — Foi o nome da gata de Ao. Ele disse que o miado dela foi a primeira música que ele ouviu. Estava em êxtase criativo. E assim, nomeou o continente inteiro em homenagem a ela.

    — Pela barba das Sete… — murmurei, entre incrédulo e maravilhado. — Estamos pisando num continente que se chama “Chaia” por causa de um gato?

    — Por causa de uma gata. Ela era branca, com olhos dourados. Só aceitava peixe fresco e sentava no trono de Ao como se ele fosse o súdito.

    — Então… esse é o real poder divino.

    Ela soltou uma gargalhada solta, leve, que ecoou entre os corredores silenciosos como uma música esquecida. Continuamos caminhando, até que chegamos. Toquei suavemente seus ombros e disse:

    — Pode tirar a venda.

    Ela obedeceu.

    E ali, diante de nós, erguia-se uma árvore que não existia em nenhum outro lugar de Chaia. Era feita de mana solidificada, com galhos largos e folhas que pareciam cintilar entre os tons do entardecer e da noite. Era uma árvore que não pertencia ao tempo — viva e etérea, como se dançasse lentamente com o próprio ar ao seu redor.

    — Você… — ela sussurrou. — Você construiu isso?

    Assenti. Minha voz saiu mais baixa do que esperava.

    — Lembrei do que você me contou. De como nos primeiros anos da sua existência, você escalava árvores para ver o mundo de cima. De como isso te fazia sentir… viva.

    Ela deu alguns passos à frente, os olhos arregalados, tocando com delicadeza o tronco feito de magia. Subitamente, sorriu. Não o sorriso sedutor ou enigmático de sempre. Mas um sorriso puro. De criança. De memória. De gratidão.

    — Eu não escalo uma árvore há milênios… — disse, quase rindo. — Tem certeza que quer que uma Deusa suba numa árvore feita por um aprendiz?

    — Se ela for você, tenho.

    — Então… me dá cobertura. — Ela tirou os sapatos.

    E então, como se o tempo voltasse, como se ela ainda fosse a garota de olhos curiosos e pés leves, Pers começou a escalar a árvore. Os galhos cederam e sustentaram, flexíveis. As folhas cintilaram ao seu redor. E eu… apenas observei.

    Ali estava ela. A Deusa da morte. De vestido preto e roxo, pés descalços, rindo baixinho enquanto se equilibrava sobre um galho de mana como se dançasse entre as estrelas.

    E pela primeira vez em muito, muito tempo… ela parecia leve.

    E eu… eu parecia completo.

    Ela desceu da árvore com a graça de quem desafiava os séculos. Os pés descalços tocaram o chão silenciosamente, como se o mundo houvesse parado por um instante só para assisti-la voltar. Seu vestido ondulava com o vento leve que corria entre os galhos encantados, e quando ela chegou ao meu lado, tudo ao redor, até mesmo a própria morte, pareceu mais distante, mais humana.

    Sentamos recostados ao tronco mágico, cujos sulcos brilhavam com um tom azul profundo, como se a própria noite tivesse deixado suas digitais ali. Pers se aninhou ao meu lado, deitou a cabeça em meu ombro e apertou minha mão com os dedos frios, mas reconfortantes.

    Ficamos em silêncio por um tempo. Um silêncio bom. O tipo que não precisa ser quebrado. O tipo que cura.

    Até que ela falou, sua voz tão suave quanto as folhas que sussurravam acima de nós.

    — Eu vou dar um jeito de você reencarnar com suas memórias.

    Virei o rosto para ela, surpreso. Seus olhos rubros fitavam o horizonte como se já estivessem enxergando o futuro.

    — Não só o seu poder mágico — continuou. — Mas tudo. Sua personalidade, sua alma, suas lembranças… você vai carregar tudo consigo.

    — Isso é possível? — minha voz saiu baixa, quase temerosa. — Não era só minha alma que reencarnaria?

    — É. — Ela respirou fundo. — Mas eu sou a Deusa da morte. E isso me torna guardiã de todas as almas que partem… inclusive a sua. Posso moldar seu renascimento. Posso quebrar as regras que nós mesmas criamos.

    Fiquei em silêncio por um tempo, deixando o peso daquilo afundar em mim. Levar minhas memórias. Ser eu mesmo. Não apenas um contêiner de poder divino esperando para acordar.

    — Isso vai ter um custo, não vai? — perguntei.

    — Sempre tem. — Ela encostou o topo da cabeça no meu pescoço. — Mas não é um custo seu. É meu. E eu… eu aceito.

    — Por quê?

    Ela virou o rosto para mim, e havia um brilho molhado nos olhos dela, mas nenhum traço de fraqueza.

    — Porque você é a única coisa que fiz sem arrependimento. E se o mundo vai arder, se as Deusas vão guerrear e o caos vai engolir o continente, quero saber que você estará lá. Com tudo o que é. Do jeito que você é. Mesmo se isso significar que eu tenha que rasgar o véu entre vida e morte com as minhas próprias mãos.

    Olhei para nossas mãos entrelaçadas. Uma era branca como a lua, a outra marcada pelas batalhas da Terra e de Chaia. Duas histórias. Dois mundos. Um só destino.

    — Obrigado… — sussurrei, sem saber como agradecer algo que palavras não alcançam.

    Ela apenas sorriu. Um sorriso que não buscava consolo, nem vitória. Apenas existência. Presença.

    Ali, debaixo de uma árvore feita de magia, construída com as mãos de um aprendiz apaixonado e escalada por uma Deusa que amava demais, éramos apenas dois. Duas almas exaustas, mas inteiras. Um amor que resistia à morte, ao tempo, e ao futuro incerto que se aproximava como uma tempestade distante.

    Regras dos Comentários:

    • ‣ Seja respeitoso e gentil com os outros leitores.
    • ‣ Evite spoilers do capítulo ou da história.
    • ‣ Comentários ofensivos serão removidos.
    AVALIE ESTE CONTEÚDO
    Avaliação: 0% (0 votos)

    Nota