No dia seguinte, atravessamos os campos floridos lado a lado. A brisa leve agitava os girassóis, e o sol pálido de Chaia fazia cintilar os fios prateados do cabelo de Perséfone. Nossas mãos estavam entrelaçadas. O toque era simples, mas carregado de tudo: confiança, carinho, e aquela promessa silenciosa de que, não importa quantas vezes eu morresse, ela sempre estaria lá quando eu voltasse.

    Atravessamos os arcos de ossos da vila e subimos os degraus da torre mágica. Quando abrimos a porta do salão, Oliver já estava de costas para o quadro negro encantado, rabiscando símbolos mágicos com seu cachimbo aceso na boca, como sempre soltando espirais de fumaça púrpura.

    — Vocês chegaram juntos. De mãos dadas. — Ele não se virou, mas sua voz ressoou pelo salão como se falasse diretamente com nossas consciências. — E não rolou beijo? Sério? Vocês pensaram nos leitores? Pela barba das sete, vocês têm a chance de viver uma das maiores histórias de amor de Chaia e me aparecem aqui só de dedos entrelaçados?

    Pers soltou uma risada baixa, levando uma das mãos à cintura.

    — Não rolou. — Ela respondeu com a naturalidade de quem fala que esqueceu o guarda-chuva. Então se virou para mim, me puxou levemente pela mão e, sem aviso, se inclinou e depositou um beijo demorado na minha bochecha.

    O calor do gesto se espalhou pelo meu rosto como se minha pele fosse feita de mana.

    — Pronto. Estão satisfeitos, Oliver? Você e os leitores da sua cabeça confusa?

    Oliver enfim se virou, sua expressão uma mistura de indignação, resignação e… um leve orgulho paternal mal disfarçado. Deu uma tragada profunda no cachimbo, soltou uma nuvem em forma de coração partido e resmungou:

    — Bah… foi na bochecha. Mas serve. Ainda acho que deviam ter feito isso no alto da árvore mágica. Os leitores gostam de poesia.

    — Leitores? — perguntei, já rindo.

    — A aula começa daqui a pouco. — ele respondeu secamente, dando as costas de novo. — Vão se sentar e aproveitem os últimos momentos de paz antes de eu infernizar suas almas com o próximo treinamento.

    Pers me lançou um olhar divertido e me puxou para o lugar onde sempre sentávamos. Senti sua mão apertar a minha por mais alguns segundos antes de soltá-la. A fumaça púrpura ainda flutuava no ar como cortinas, e no meio dela, a loucura genial de Oliver começava a traçar os contornos do próximo pesadelo mágico que eu teria que enfrentar.

    Mas, por ora, eu só conseguia pensar no beijo na bochecha. E no fato de que, mesmo sem precisar, ela quis me dar algo a mais.

    Oliver estava especialmente inquieto naquela manhã. A luz do salão da torre mágica dançava em reflexos dourados sobre os cristais flutuantes, e as fórmulas mágicas rabiscadas em fumaça púrpura pairavam como constelações embaralhadas. Ele andava em círculos, batendo a bengala no chão como se estivesse à beira de uma revelação ou de um colapso nervoso.

    — Acordei hoje, Hades… inspirado! — declarou, com os olhos brilhando mais do que o normal. — Você sabe o que é isso? Isso é o cheiro da história sendo escrita! Ou talvez seja só o cachimbo mesmo… mas enfim! Hoje… hoje, meu caro… você vai entender por que o seu nome será entalhado nas colunas do tempo.

    Eu já estava acostumado aos monólogos dramáticos de Oliver, mas dessa vez, mesmo Pers parou para prestar atenção. Ela franziu levemente a testa. Como se sentisse o peso do que viria.

    Oliver parou, encarou-me e então falou com uma seriedade que era rara naquele homem:

    — Durante séculos, magos, feiticeiros e apóstolos buscaram o ápice da purificação mágica. O grau dez. O Divino. Mas nenhum, escute bem, nenhum, jamais conseguiu romper o grau oito. Sabe por quê?

    — Porque é quase impossível? — arrisquei, limpando o suor da testa.

    Ele apontou para mim com a bengala, como um professor impaciente.

    — Errado. Eles fracassaram porque estavam presos a uma estrutura de adoração! — Ele se virou para Perséfone, como se a incluísse no argumento. — Os Deuses criaram seus apóstolos como servos. Fiéis. Ferramentas. Subjugados pela fé, não fortalecidos por ela.

    Ele fez uma pausa dramática, depois apontou para mim novamente, como se eu fosse um milagre vivo.

    — Mas você, Hades… você a ama. E você, Perséfone, não quer um servo. Quer um igual. Um companheiro. E isso… — ele se virou para o quadro e escreveu com fumaça a palavra Amor — …isso é o catalisador.

    Perséfone permaneceu em silêncio, mas seus olhos ficaram vidrados. Uma emoção indecifrável dançava neles, talvez esperança, talvez medo.

    — O que você está dizendo? — perguntei, mesmo já pressentindo a resposta.

    Oliver sorriu com o ar de um alquimista que transformou chumbo em ouro.

    — Estou dizendo que, por causa do amor que nutrem um pelo outro, você tem a chance de ser o primeiro apóstolo da história de Chaia a ultrapassar o grau oito. Você pode alcançar o grau dez de pureza mágica. E com isso… tornar-se um Deus menor.

    Fiquei em silêncio por alguns instantes. As palavras ecoavam na minha mente como trovões. Um Deus. Não apenas um apóstolo. Não apenas um soldado do fim dos tempos. Um ser eterno. Um igual às divindades.

    — Isso já aconteceu antes? — perguntei, ainda atordoado.

    Oliver sacudiu a cabeça com um sorriso astuto.

    — Nunca. Porque todas as outras relações entre Deuses e apóstolos foram hierárquicas, devocionais. A sua é diferente. Há confiança. Há entrega. Há reciprocidade. E isso muda tudo.

    — Isso… — murmurou Perséfone, em voz baixa — …é perigoso. Um apóstolo que se torne Deus poderia despertar a ira das outras Deusas. Elas não gostariam de desequilíbrios. E se Hades alcançar esse nível, ele não será apenas um risco… será uma ameaça.

    — Ah, querida, — disse Oliver com desdém teatral — desde quando o equilíbrio foi mais importante do que o amor? Você está soando que nem o Ao.

    Pers me lançou um olhar preocupado, mas logo desviou, como se algo dentro dela já soubesse que esse caminho seria inevitável. Seus dedos se entrelaçaram aos meus discretamente, e eu a segurei com firmeza.

    — Então, o que eu faço agora? — perguntei.

    Oliver estalou os dedos, e o ar ao nosso redor mudou. A pressão mágica cresceu. O chão tremia como se o mundo se preparasse para uma nova era.

    — Agora, meu caro apóstolo, você treina. Cada gota de mana, cada feitiço, cada respiração sua será voltada para o ápice. Hoje, não treinaremos para sobreviver. Nem para vencer Deuses. Vamos treinar… para você se tornar um.

    E assim começou o novo estágio do meu treinamento, com olhos voltados ao céu, mas raízes ainda cravadas na terra.
    Com a certeza de que o que eu e Perséfone estávamos construindo…não era só um amor impossível, era o princípio de algo que poderia estremecer até mesmo os pilares do firmamento.

    Oliver girou o cachimbo nos dedos, a fumaça púrpura se enrolando como serpentes preguiçosas no ar. Ele deu uma longa tragada, como se saboreasse o próprio gênio antes de continuar.

    — Agora, claro, um apóstolo se tornar um Deus menor? Nunca aconteceu. Isso eu repito sem medo de estar errado — disse, erguendo um dedo ossudo como um oráculo de teatro. — Mas… — e sorriu de lado — isso não quer dizer que não existam aqueles que se autoproclamam Deuses menores.

    Ele se virou para o quadro invisível flutuando no ar e traçou com fumaça três nomes em línguas esquecidas. Nenhum deles me era familiar.

    — Alguns mortais, criaturas abissais ou mesmo construtos mágicos que alcançaram o oitavo grau de pureza… bom, essas figuras se dizem deuses menores. E por um tempo, são tratadas como tal. Eles governam territórios isolados, têm cultos bizarros, até seguidores fiéis. Mas no fim… são incômodos.

    Ele fez um gesto como se espantasse algo da frente do rosto.

    — Sabe… como moscas. Você não sai exterminando todas as moscas que vê, não é? — disse, olhando para mim com olhos faiscantes. — Elas incomodam, zunem no ouvido das verdadeiras divindades… mas raramente são perigosas de fato.

    — Então… elas são ignoradas?

    — Na maior parte do tempo, sim. Exceto quando fazem barulho demais — respondeu, cruzando os braços. — Ou quando ameaçam o delicado equilíbrio. Aí eles são esmagados.

    Pers baixou os olhos ao ouvir essa palavra. Equilíbrio. Era o nome mais suave para o conceito mais cruel de Ao.

    — A diferença, Hades — continuou Oliver, aproximando-se — é que você não está sozinho. Você tem a mim, um dos magos mais brilhantes da história, e tem ela, a própria Deusa da Morte. Isso muda tudo. Se você subir além do oitavo grau… você não será uma mosca. Será uma nova estrela no firmamento. E estrelas, mesmo para os deuses… são difíceis de apagar.

    Fiquei em silêncio. As implicações martelavam dentro da minha cabeça como tambores de guerra. Eu poderia ser o primeiro apóstolo a deixar de ser sombra, servo, eco. Poderia ser mais que um instrumento divino. Poderia ser… igual a ela.

    Pers apertou minha mão. Seu olhar dizia o que palavras não podiam. Não era ambição. Não era sede de poder. Era necessidade. Destino. Promessa.

    E eu, Hades, entendi que a morte não me queria como servo, ela me queria como par.

    Treinar com aquele pensamento mudou tudo.

    Não era mais apenas um exercício. Nem uma aula. Nem mesmo uma guerra.

    A cada conjuração, a cada feitiço, a cada partícula de mana que fluía pelas minhas veias, eu não sentia que estava controlando algo externo. Eu não estava “usando” a morte. Eu era ela.

    Na primeira vez que concentrei mana para usar o Ignis Mortem, não forcei a energia sombria a se dobrar à minha vontade. Apenas respirei, como se estivesse estendendo a mão para ela. Como se estivesse… segurando a mão de Pers.

    E ela estava lá.

    Mesmo que estivesse ao longe, conversando com Oliver ou sentada na beira dos campos de treinamento mágicos daquela torre etérea, eu a sentia. Como se nossa conexão não fosse apenas mágica ou espiritual, mas física. Tátil. Quase humana.

    A chama negra não saiu violenta. Ela não explodiu, não gritou. Ela deslizou. Serpenteou pelo ar como uma lembrança, e tocou a rocha com doçura mortal. A pedra se desfez em silêncio, não por impacto… mas por rendição.

    Oliver parou de andar. A fumaça do cachimbo ficou suspensa no ar, congelada por um instante. Seus olhos se estreitaram como os de um velho que acabara de encontrar um manuscrito proibido escondido dentro de outro livro proibido.

    — Pela barba das sete… — murmurou ele, como se esquecesse que costumava dizer isso só para fazer graça. — Você está se tornando parte do Aspecto. Não só o manifestando. Isso… isso é novo.

    Pers, por sua vez, não disse nada de imediato. Caminhou até mim, em silêncio, e ficou ali parada por um tempo. Seus olhos vermelhos ardiam de maneira estranha, um brilho que não era apenas orgulho. Era algo ancestral. Como se estivesse vendo um milagre que nem os deuses ousavam esperar.

    — Você está segurando minha mão… mesmo quando não estou oferecendo ela — disse ela, com voz baixa, quase sussurrada. — A magia… não é algo que você domina. É algo que você compartilha comigo. Você não invoca a morte. Você dança com ela.

    Continuei treinando.

    Lancei feitiços de quinto círculo com a fluidez de quem recita um poema. Recriei esqueletos com detalhes anatômicos tão perfeitos que pareciam vivos. Toquei o chão e uma videira sombria cresceu, serpenteando com flores que brilhavam com ecos das almas passadas.

    Em outro exercício, canalizei energia para um Cântico Fúnebre, uma magia que antes exigia uma concentração de quase dez minutos. Concluí em cinco segundos. A melodia da morte ecoou pela torre e silenciou até os ecos mágicos da própria construção.

    Oliver, impressionado, nem tentou esconder.

    — Você não está apenas aprendendo magia — murmurou — você está traduzindo um idioma proibido para uma poesia nova. Você está escrevendo uma nova gramática para o mundo espiritual.

    — E tudo isso… porque ele confia em mim — disse Pers, os olhos marejados, um sorriso pequeno e frágil em seu rosto. — Eu não sabia que confiar em alguém podia dar tanto poder.

    — Não é só confiança. — respondi, limpando o suor da testa. — É… presença. Quando uso a mana da morte, é como… se eu sentisse seu toque. Como se meu corpo fosse só um fio entre nós dois. Um canal. E eu… não sou mais eu sozinho.

    Oliver estalou os dedos e o chão de pedra sumiu, revelando uma plataforma etérea com runas antigas que giravam sob nossos pés.

    — Muito bem. Vamos ver até onde essa dança pode ir. Que tal coreografarmos a próxima etapa, meu jovem quase-deus?

    E então a torre tremeu, não de perigo, mas de expectativa, a morte já não era um fim, ela era minha parceira, minha música e meu lar.

    O novo campo de treino parecia flutuar no vazio, sustentado apenas pelas runas que giravam embaixo de nós. Era como se a própria realidade tivesse sido dobrada para formar aquele palco. A torre desaparecera ao nosso redor, substituída por um espaço crepuscular, onde as estrelas morriam e nasciam com cada passo que dávamos.

    Oliver abriu os braços e falou com solenidade teatral:

    — Bem-vindo à Sala de Harmonia Rúnica dos Três Mil Ciclos, uma cópia fiel de uma das últimas construções da Era do Aço Vivo. Aqui, a mana responde não apenas à vontade… mas à coerência. À música. À verdade da alma.

    Pers, ao meu lado, observava em silêncio. Vestia-se de maneira simples agora, um vestido de mangas longas, cor vinho profundo, com bordas prateadas que lembravam raízes. Seu olhar estava calmo, mas atento. Não era apenas observadora: ela era a testemunha silenciosa do meu processo, a inspiração de cada chama escura.

    — Certo — disse Oliver, caminhando lentamente enquanto seu cachimbo soltava notas musicais em vez de fumaça — hoje vamos começar o treino mais delicado que você já enfrentou. A harmonia.

    Ergui uma sobrancelha.

    — Harmonia?

    Ele assentiu.

    — A maior parte dos magos aprende feitiços como um soldado aprende movimentos de espada. Um. Dois. Três. Mas os grandes magos não repetem feitiços. Eles os criam. E para isso, precisam entender que mana é som, vibração e significado. Você já passou da metade do caminho. Agora precisa aprender a dançar com a magia, não apenas empurrá-la como um carro ladeira acima.

    — E como se dança com a magia? — perguntei, sentando-me na plataforma.

    — Sentindo — respondeu Pers, com um sorriso pequeno. — Feche os olhos. Não pense nos feitiços. Não pense nas runas. Apenas respire. E ouça.

    Fechei os olhos.

    No início, havia silêncio.

    Mas aos poucos… a mana sussurrava.

    As runas vibravam numa frequência tênue, quase como o eco de um sino de cristal. Cada partícula de energia parecia cantar em notas invisíveis, dissonantes e complexas. Me concentrei. Mergulhei. A mana morta dentro de mim… não cantava. Ela murmurava lamentos. Versos de perda. Memórias de fim.

    E ainda assim, havia beleza.

    Transformei o Ignis Mortem em música. Literalmente.

    Com um estalo dos dedos, conjurei uma chama negra que girava em espiral rítmica. Ao invés de destruir, ela dançava. Rodopiava ao redor de mim como uma bailarina feita de cinzas.

    Oliver aplaudiu, surpreso.

    — Pela barba de Galgalith! Você sincronizou sua mana com a frequência da plataforma. Está criando feitiços harmônicos. Isso… isso é raro. Raríssimo!

    Ele apontou com a bengala mágica para uma das runas flutuantes no ar.

    — Tente uma sinfonia elemental. Um feitiço multielementar composto. Combine sombra com vento.

    Abracei a mana escura dentro de mim, e junto a ela invoquei correntes de ar sibilante. Os dois elementos entraram em atrito. No início, se repeliam. Mas então… lembrei do que Pers me disse. Dance. Soltei o controle rígido. Permiti que as forças se moldassem ao meu sentir, não ao meu comando.

    E então aconteceu.

    Uma serpente de fumaça escura e vento afiado formou-se ao meu redor, girando com velocidade e precisão. Quando estendi a mão, ela se lançou como uma lança etérea, atravessando uma runa de defesa que se partiu em mil partículas douradas.

    Pers sorriu, maravilhada.

    — Você está fazendo o que quase nenhum outro apóstolo fez. Está dando forma à sua conexão. Está tocando minha essência com a sua. Isso é… mais do que magia.

    Cansado, ajoelhei, mas mantive o sorriso.

    — Não quero apenas usar feitiços — disse entre respirações. — Quero criar uma linguagem só nossa.

    Oliver soltou uma gargalhada animada.

    — GENIAL! Genial! E se isso não for o prenúncio de um novo arquétipo mágico, então que me arranquem os pelos da barba com pinça de prata!

    — Por favor, não — comentou Pers, rindo com suavidade. — Sua barba é patrimônio histórico.

    Eu me levantei. E invoquei outro feitiço.

    Desta vez, sem palavras. Sem gesto. Apenas uma emoção.

    Saudade.

    E o ar diante de mim se distorceu, como se o próprio espaço quisesse abraçar alguém que não podia voltar. O feitiço não tinha nome. Mas Oliver o batizou ali, com olhos arregalados:

    Réquiem do Vínculo. Você acabou de criar sua primeira magia única.

    Era só o começo. Eu sentia.

    Eu não queria apenas ser um apóstolo da morte.

    Eu queria ser a nova música da morte. Seu novo idioma.

    E eu estava pronto para compor a próxima nota.

    Oliver ficou em silêncio por mais tempo do que eu esperava. A ponta do cachimbo emitiu apenas uma labareda púrpura tênue. Seus olhos brilharam de excitação contida, não o tipo de alegria barulhenta, mas de quem acabou de ver uma peça rara sendo desenterrada depois de milênios.

    — Você… — murmurou ele. — Você acabou de dar o primeiro passo. Hades, meu garoto, você… compreendeu, sozinho, a primeira chave para a criação de um Reino Além.

    Eu franzi a testa, ainda recuperando o fôlego da conjuração emocional que fora o Réquiem do Vínculo.

    — Reino Além?

    Ele sorriu, e seu sorriso era largo como o de um cientista louco prestes a revelar que havia criado vida num laboratório.

    — Um Reino Além — começou ele, andando em círculos com o cachimbo apontado para o teto — é um plano metafísico, uma extensão da alma de uma divindade. Um espaço espiritual e mágico onde um deus reside e reina. É lá que os deuses vivem. É lá que moram, sonham, sentem. O mundo real é uma cortina. O Reino Além é o palco verdadeiro.

    Foi Pers quem se adiantou, aproximando-se de mim. Ela estendeu a mão e segurou a minha, como quem conecta dois mundos.

    — Meus campos de girassóis… aquele lugar que você pisou… — ela disse com suavidade — é o meu Reino Além. Só os que tocam meu âmago conseguem vê-lo.

    Arregalei os olhos.

    — Você me levou até lá logo que nos conhecemos…?

    Ela assentiu, sorrindo.

    — Você foi o primeiro mortal a pisar lá.

    Oliver pigarreou, como se sentisse ciúmes acadêmico por não ter sido convidado.

    — Cada divindade molda seu Reino Além com base em seu arquétipo. A Deusa da Vida criou um paraíso eterno onde almas boas renascem. A Deusa da Guerra criou um campo de trigo onde guerreiros que morreram podem continuar lutando. A Deusa da Magia tem uma torre que se eleva por cima das estrelas.

    — E a Deusa da Morte… criou um campo de flores — completei, sentindo o calor na palma da mão de Pers.

    Ela não negou. Só disse:

    — Um lugar simples… bonito… e melancólico. Como eu.

    Voltei o olhar para Oliver.

    — Mas… como assim eu comecei a criar um Reino Além?

    Ele girou o cachimbo nos dedos e apontou direto para o feitiço ainda vibrando nas runas atrás de mim. A sombra daquela conjuração, o Réquiem do Vínculo, ainda reverberava no ar como uma nota deixada em eco por um piano místico.

    — Esse feitiço não é só uma expressão de poder. É um alicerce. Uma base estável, pessoal, construída com emoção, memória, e conexão divina. A partir disso, se você continuar a solidificar sua alma e sua identidade mágica… você poderá esculpir seu próprio plano. Um lugar que existirá só para você. Um espaço onde seu poder será absoluto.

    — Um Reino meu…?

    — Um Reino da Morte — sussurrou Perséfone, com reverência. — Mas não o mesmo que o meu. O seu. E se o seu Reino Além for criado… isso significa que, de certa forma, você terá um pé na divindade.

    Fiquei em silêncio, sentindo o peso da revelação.

    Eu, que renasci no mundo de Chaia como um instrumento da morte… agora estava aprendendo a ser algo mais.

    Oliver assentiu, solenemente.

    — O Réquiem do Vínculo foi apenas a primeira nota. Continue compondo. Continue sentindo. Continue morrendo e renascendo, como já fez tantas vezes. Um Reino Além não é criado por vontade. Ele nasce de dentro. É lar. É saudade. É verdade.

    Perséfone encostou a testa na minha, com um sorriso pequeno, como quem reconhece uma promessa feita milênios atrás finalmente tomando forma.

    — Um dia, Hades, você terá seu próprio campo. Mas o seu… não será de flores. Será de lembranças.

    Eu fechei os olhos.

    E naquele momento, eu soube que o próximo passo… seria meu.

    Oliver caminhava em círculos, mais pensativo do que de costume, o cachimbo pendurado entre os dedos e a fumaça roxa formando espirais silenciosas ao redor de sua cabeça. Seus passos ecoavam suavemente pelas pedras da torre mágica, até que ele parou diante de mim e falou com uma expressão sóbria.

    — Eu gostaria de dizer que você já pode começar a moldar seu Reino Além. Que basta fechar os olhos, respirar fundo e deixar a alma tomar forma no tecido do mundo… — Ele girou o cachimbo, soltando uma baforada que tomou a forma de uma balança desequilibrada. — Mas não. Ainda é cedo, Hades.

    Franzi a testa.

    — Cedo? Mas você mesmo disse que dei o primeiro passo.

    Ele assentiu, os olhos fixos nos meus.

    — Sim, e é verdade. Você deu. Mas um Reino Além precisa de estabilidade, e estabilidade mágica só se atinge a partir do grau nove de pureza. — Ele enfatizou o número como se pronunciasse o nome de um antigo titã.

    — Nove…? — murmurei, sentindo o peso dessa distância. — Estou no cinco agora…

    — Um passo de cada vez, garoto. — Ele sorriu, mas havia seriedade em sua voz. — Quando chegar ao grau oito, seu treinamento comigo termina. Não porque eu não tenha mais o que ensinar, mas porque o que vem depois disso… vai além até mesmo de mim.

    Aquilo me atingiu como uma flecha.

    — Mas… e então? Como vou continuar?

    — Ah, é aí que entra o próximo mestre.

    Pers, sentada próxima à borda do campo ilusório de treino, levantou o olhar curiosa.

    — Você já sabe quem é?

    Oliver deu um sorriso, quase orgulhoso de si mesmo.

    — Saí escondido esta semana. Usei um portal de fumaça e fui encontrá-lo.

    — Você… saiu da torre? — Pers pareceu genuinamente surpresa.

    — Claro que sim! Um mago nunca para de se mover, mesmo quando parece estático. — Ele ergueu um dedo, como quem vai contar um segredo. — Ele aceitou treinar Hades. Embora, claro, com suas condições. Disse que já conhecia o menino.

    — Conhecia? — repeti, surpreso.

    — Sim. E mais do que isso. É um imperador. Um que já cruzou o nosso caminho. Um que vocês dois viram em ação. — Oliver apontou para mim. — E não me peça para revelar mais, porque não darei spoilers.

    Spoilers? — Pers franziu a testa.

    — É uma expressão terrena — expliquei, e Oliver acenou com a cabeça como um professor satisfeito com a resposta certa.

    Ele deu uma última tragada longa no cachimbo antes de apontar para mim, com olhos brilhantes e uma energia renovada.

    — Até o grau oito, Hades, você é meu aluno. E eu vou espremer até a última gota do seu talento antes de passar você adiante. Mas quando esse momento chegar… você estará pronto para algo que nem mesmo eu fui capaz de alcançar.

    Meus olhos se encontraram com os de Perséfone. Havia orgulho ali, mas também uma sombra de saudade antecipada. Ela sabia. Quando meu treinamento com Oliver acabasse, um novo capítulo se abriria. E não sabíamos se o atravessaríamos juntos ou separados.

    Mas por enquanto… ainda havia muito o que aprender.

    Oliver caminhava até uma das prateleiras altas da torre mágica, esticou a bengala, puxou um livro empoeirado com o selo de um olho envolto em correntes e deixou que ele se abrisse sozinho no ar, as páginas folheando em um redemoinho mágico até parar numa que brilhava com tinta prateada.

    — Hoje, caro aprendiz — disse, com o tom de voz cerimonioso que ele só usava quando estava prestes a ensinar algo especial — aprenderemos um feitiço raríssimo. Antigo. Discreto. Quase esquecido. E mais seguro do que qualquer anel mágico, bolsa com runas ou arca ancorada com fios de mana. — Ele girou o cachimbo com os dedos, animado. — Um feitiço de armazenamento dimensional.

    Franzi a testa.

    — Tipo… um inventário?

    Ele lançou um sorriso largo.

    — Exatamente como os dos jogos do seu mundo, Hades. Você se lembra, não lembra? Aqueles com espadas flamejantes e poções de vida? Inventários invisíveis onde o personagem podia carregar tudo: espadas, armaduras, até uma dúzia de pães.

    — Isso é possível?

    — Ah, tudo é possível em Chaia, desde que se tenha talento — disse ele, me lançando um olhar de aprovação.

    Esticando a bengala, ele desenhou no chão um círculo mágico de três camadas, repleto de pequenos hexagramas e inscrições giratórias.

    — Este feitiço cria um bolsão entre os mundos, selado apenas à sua alma. Não é uma dimensão viva, como o Reino Além das divindades. Nem uma dobra espacial como as usadas por ladinos dimensionais. É um cofre abstrato. Etéreo. E, por isso, praticamente impossível de rastrear. Um assassino pode roubar sua bolsa. Um ladrão pode quebrar uma runa de anel. Mas ninguém pode arrancar isso de você — disse, tocando o centro do meu peito com a ponta da bengala. — Porque seu inventário está aqui dentro.

    — Como começo?

    — Concentre-se na sensação de posse. Pense em tudo o que já carregou nas costas: armas, dor, esperança. Crie um espaço interior. E depois, simplesmente… guarde.

    Segui as instruções. Fechei os olhos. Inspirei. Lembrei da mochila pesada que carregava na Terra durante as marchas. Dos cantis. Dos remédios da minha mãe. Das munições do meu pai. E então… algo dentro de mim pareceu ceder.

    Senti um vazio surgir atrás da minha consciência. Não frio. Nem escuro. Mas… silencioso.

    Abri os olhos. Oliver sorriu.

    — Conseguiu. Agora tente guardar isso.

    Ele arremessou um cálice encantado em minha direção. Instintivamente, ergui a mão.

    A mana respondeu e o cálice sumiu no ar, como absorvido por um vórtice invisível.

    — Muito bom! Agora, chame de volta.

    Pensei no cálice. E ele surgiu, cintilante, na palma da minha mão.

    — Isso é… incrível — sussurrei.

    — Hades, meu caro, bem-vindo ao seu inventário. Organize-o como quiser. Armazene armas, poções, pergaminhos… ou segredos que ninguém jamais encontrará. Só tome cuidado — disse Oliver, com um olhar mais sério. — O espaço é limitado. E se quebrar sua alma com excesso de peso, nem mesmo Pers poderá te costurar de volta.

    Pers, que ouvia sentada sobre uma pilha de livros, riu.

    — Eu costuro almas, não burrices.

    — É, e isso aqui é uma alma equipada com slots mágicos agora — falei, admirando o feitiço. — Isso vai ser útil, muito útil.

    — Claro que vai — disse Oliver, soprando anéis de fumaça satisfeitos. — Um mago que carrega sua biblioteca dentro de si… nunca está desarmado.

    Absolutamente do nada, um lampejo me atravessou como um raio negro cortando os céus antes da tempestade.

    — E se eu… — falei, com os olhos fixos em nada, como se estivesse tentando enxergar o impossível — e se eu lutasse contra a projeção de Moradina enquanto purifico minhas veias de mana?

    O silêncio caiu como uma lâmina. Oliver ergueu as sobrancelhas e, por um breve momento, deixou que a ideia repousasse no ar.

    — Hades… — Pers sussurrou, com uma nota de dor misturada à surpresa.

    Oliver, por outro lado, sorriu como se acabasse de ouvir a mais bela sinfonia de loucura.

    — Pela barba das Sete! Isso é… brilhante! Perigoso, imprudente, autodestrutivo e brilhante! — ele já caminhava até o centro da sala, os passos saltitantes, a capa esvoaçando como um teatro ambulante. — Imaginar, conjurar e executar magia enquanto purifica seus canais internos durante um duelo com uma deusa-projetada criada pela imaginação mais refinada deste continente! É tão perigoso que… eu adoro.

    — Você quer mesmo fazer isso? — perguntou Pers, levantando-se devagar, como se as palavras doíam em sua pele. — Já não basta toda a dor? Já não bastam as trezentas e tantas mortes? — Seus olhos brilhavam com angústia contida. — Você sabe que me rasga por dentro cada vez que te vejo cair.

    Virei-me para ela. Toquei sua mão, firme, mas com ternura.

    — É justamente por isso, Pers… que eu tenho que continuar. Porque cada vez que morro… eu renasço mais perto do que preciso ser. Eu não quero ser só forte. Eu quero ser digno da promessa que te fiz. E da fé que você deposita em mim.

    Ela abaixou os olhos, os cabelos brancos escorrendo pelos ombros como um rio de neve.

    — Eu odeio isso — sussurrou. — Odeio saber que você vai sofrer mais… e que não posso impedir.

    — Mas pode estar comigo. E isso já é tudo.

    Por um instante, ela não disse nada. Depois, soltou um suspiro longo e resignado, como quem assina uma sentença já escrita.

    — Então vá. Queime, morra, purifique-se. Mas volte. Sempre volte para mim.

    Oliver deu um assobio baixo e assoprou uma espiral de fumaça púrpura. A névoa girou, dançou, tomou forma.

    E Moradina estava lá novamente.

    Pequena para uma humana, grande para uma anã. Pele bronzeada. Olhos de rocha viva. Os cabelos escuros se agitavam como se uma força invisível respirasse por ela.

    — Pronto? — perguntou Oliver, ajustando a bengala como quem afina um instrumento antes da batalha.

    Sentei no centro do círculo mágico. Perna cruzada. Pulso calmo. A mana serpenteava sob minha pele como rios de tinta negra.

    “Purifique-se enquanto luta. Enfrente a morte enquanto se funde a ela. Seja como o abismo: imenso, silencioso, invencível.”

    Pers ficou ao lado de fora do círculo, os dedos entrelaçados ao peito, como se rezasse a um Deus que ela mesma um dia foi.

    Eu fechei os olhos.

    E Moradina avançou.

    O primeiro impacto veio como um trovão disfarçado de silêncio.

    Moradina não esperou cerimônias. Como se o mundo já tivesse começado antes de mim, ela veio com um passo firme que fez a terra sob meu corpo tremer. Seus olhos brilhavam com uma fúria ancestral, mas sua expressão era serena, quase maternal, como uma professora disposta a destruir o aluno para que ele renasça melhor.

    Senti o calor da sua aproximação como uma ameaça viva. Mas não me movi.

    A mana pulsava em mim como um segundo coração. A dor da purificação ainda era uma tempestade dentro das minhas veias, cada célula gritando pela libertação. Era como tentar respirar enquanto me afogava.

    Ela levantou uma mão. A terra respondeu. Estalactites de pedra e ouro brotaram do chão como lanças mortais, convergindo em minha direção.

    Aguente… aguente… — murmurei para mim mesmo, fundido à meditação. Eu não ia fugir. Não ainda.

    Em vez de conjurar defesa, mergulhei mais fundo. A mana estava turva, impura. Mas senti as partículas girando dentro de mim, como poeira negra sendo sugada por um redemoinho interno. Cada espinho de dor era uma lasca do que eu fui sendo arrancada, substituída por uma nova estrutura.

    As lanças estavam a segundos de me perfurar.

    E então, com o mínimo de mana, ergui uma muralha fina como papel, mas densa como obsidiana.

    A terra explodiu ao meu redor, mas o escudo, instável e trêmulo, segurou o primeiro golpe.

    — Já é um avanço — murmurou Oliver ao fundo, braços cruzados, olhos atentos como um cirurgião observando seu paciente numa sala de testes.

    Moradina avançou de novo, agora com o punho fechado. Uma marreta de rocha se formou no ar, puxada do chão como se a própria montanha lhe obedecesse. Com um salto, ela desceu sobre mim como uma queda de meteoro.

    Agora, reaja.

    Liberei a mana de forma instintiva, canalizando a dor como energia crua. Ergui as mãos e invoquei o Ignis Mortem. As chamas negras explodiram dos meus braços em forma de serpentes incandescentes, colidindo com a marreta com um rugido que despedaçou a pedra e me jogou metros para trás.

    Rolei no chão, o corpo latejando.

    Ela pousou suavemente, como se a gravidade lhe pertencesse.

    — Sua magia está mais sólida. Mas seu foco está dividido — disse ela com a voz metálica e imutável. — A purificação cobra um preço.

    — Tudo que vale a pena… custa alguma coisa — murmurei ao me levantar.

    O corpo estava exausto. Cada músculo doía. Mas a mana… fluía melhor. Como se as impurezas estivessem sendo expelidas com cada gota de suor, com cada gota de sangue. E havia muito dos dois.

    Ergui a palma da mão. As serpentes de trovão negro começaram a formar-se novamente, girando em espiral até o céu como se quisessem caçar a própria deusa.

    Ela sorriu.

    Com o pé, golpeou o chão e uma muralha de pedras douradas se ergueu. Mas eu já não era mais o mesmo.

    Fechei os olhos, e o mundo desacelerou.

    Eu vi os caminhos etéreos, as trilhas entre o instante e o próximo. Teleportei-me entre eles, surgindo no alto, acima dela. As serpentes caíram como relâmpagos invertidos, rasgando a muralha em explosões de fumaça negra.

    Ela girou o corpo e conjurou uma cúpula de cristal dourado ao seu redor, mas os feitiços do Aspecto da Morte já estavam além do físico.

    A energia ricocheteou, penetrou, quebrou. Ela recuou pela primeira vez.

    Pousei a poucos metros dela, ofegante, os olhos queimando com a energia que passava pelas minhas veias ainda impuras. Era uma dança entre a dor e o poder.

    — Você mudou — disse ela.

    — Eu abracei a dor. Eu abracei a morte. Não estou usando esse poder. Eu sou ele.

    Ela avançou.

    E eu também.

    O campo estremeceu sob nossos pés, as árvores ilusórias se despedaçando, o chão trincando como vidro sob pressão. Magia contra magia. Punhos contra feitiços. Espírito contra legado.

    E a purificação… continuava, como uma chama que não se apagava mesmo debaixo de uma tempestade.

    A batalha ainda estava longe de acabar.

    Mas pela primeira vez… eu sentia que o impossível estava ao meu alcance.

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