O primeiro soco dela me quebrou.

    Não metaforicamente. Literalmente.

    O punho de Moradina, envolto em pedra viva e brilhando em dourado, atravessou minha defesa mágica como se fosse papel queimado. Senti minhas costelas se estilhaçarem. O ar saiu dos meus pulmões. Fui arremessado para trás como uma marionete sem cordas, rasgando o solo com o impacto.

    O mundo girou. A dor explodiu. E então… veio o silêncio.

    Me vi deitado, imóvel, olhando para o céu que já nem parecia o mesmo. Não havia mais som, nem cheiro, nem toque. Só a leve brisa e aquela sensação. Aquela velha conhecida sensação.

    A morte.

    Era igual à da Terra. Aquela sensação de se afastar do corpo. A mesma que senti quando o sangue jorrou da minha garganta, quando os estilhaços arrancaram a vida da minha mãe, quando segurei a mão da minha irmã e a vi sumir em fumaça. Uma leveza gélida e inevitável.

    Mas… algo mudou.

    Desta vez, a morte não foi o fim. Ela foi chamada.

    Uma presença me puxou, calorosa e fria ao mesmo tempo. E quando meus olhos abriram, senti os dedos macios acariciando meu cabelo, um aroma doce, familiar.

    — Você morreu — disse Pers com um sorriso suave, sentada sob a árvore que eu havia criado para ela. — Mas dessa vez, só um pouquinho.

    — Estou inteiro?

    — Inteiro o suficiente pra tentar de novo.

    Suspirei, rindo entre o cansaço e o alívio.

    — Então… vamos voltar.

    De volta à torre mágica, a fumaça púrpura me envolvia. A mão de Pers apertou a minha com força antes que eu sumisse. A próxima imagem foi o campo destruído. Moradina ainda estava lá, imutável, esperando. Como se o tempo fosse irrelevante para ela.

    Oliver cruzou os braços e comentou, impassível:

    — Primeira morte registrada. Vamos ver quantas serão necessárias até que você aprenda a conjurar sem hesitação.

    Moradina ergueu a cabeça e seus olhos brilharam. Ela sabia que eu tinha voltado. E isso parecia agradá-la.

    — Você voltou rápido — disse ela, quase com um resquício de respeito na voz.

    — Eu sempre volto — respondi, conjurando novamente os trovões negros em volta do corpo.

    A mana queimava. Meu corpo doía. Mas eu tinha aprendido algo na morte.

    Ela não era o fim. Ela era a estrada.

    Meus olhos se fecharam por um instante. Em vez de temer, abracei a dor. Deixei que ela guiasse a magia, deixei que as memórias da derrota alimentassem minha fome por superação. Vi novamente os caminhos etéreos, mas dessa vez, usei-os com precisão mortal. Surgi atrás dela, um relâmpago da escuridão.

    Ela girou, tentando reagir, mas eu já estava conjurando Ignis Mortem direto no solo, criando uma onda explosiva que levantou poeira e pedras como um inferno ascendente.

    Ela saltou, flutuando com elegância, mas as serpentes de trovão já estavam no ar. Uma a acertou de raspão.

    Ela sorriu.

    — Agora sim, Apóstolo. Mostre-me quem você é.

    A segunda rodada havia começado.

    E eu estava só começando a viver.

    A minha segunda morte foi por esmagamento. Tentei me aproximar demais e conjurar uma lança de mana escura direto no abdômen de Moradina. Ela respondeu criando uma muralha de pedra com espinhos dourados que se ergueu sob meus pés e me atravessou. A dor foi rápida e a surpresa maior. Morri antes de perceber o erro.

    Na terceira, tentei usar os caminhos etéreos em sequência para confundir sua visão. Funcionou por um tempo. Mas quando conjurei o segundo feitiço, meu controle falhou. Exigi demais do meu corpo e colapsei por exaustão, desidratado, envenenado pela própria mana impura.

    Na quarta vez, Moradina usou o chão contra mim. Fez crescer do solo estalagmites de pedra cobertas por runas douradas. Quando tentei voar, ela lançou uma onda de terra que me cortou as asas de mana. Caí. Morri com o impacto, ouvindo meu próprio pescoço quebrar.

    A quinta morte foi mágica. Ela conjurou um feitiço que transformou meu sangue em pó de ouro. Meu corpo inteiro petrificou por dentro. Oliver aplaudiu a criatividade. Pers chorou em silêncio.

    A sexta aconteceu quando decidi usar tudo desde o início. Trovões, teleporte, fogo negro, ilusões. Me esforcei tanto que desmaiei no meio do campo, mancando e ofegante, apenas para ser esmagado por uma marreta de pedra.

    Sétima: Moradina me cegou com uma explosão de luz dourada e me finalizou com um soco no coração.

    Oitava: uma armadilha mágica me drenou toda a mana. Morrendo sem poder me defender.

    Nona: confiei em minha velocidade, tentei um golpe direto. Ela previu, deu um passo pro lado e cravou uma lâmina de rocha em meu peito.

    Décima: minha defesa falhou. Esqueci de conjurar a barreira solar, e o próprio calor da mana de Moradina me desfez como neve negra.

    E assim os dias foram passando…

    13. Perfurado por pilares dourados.

    21. Queimado vivo por magia de terra vulcânica.

    25. Morrendo de exaustão no meio de uma conjuração incompleta.

    30. Puxado pelas pernas por raízes vivas de rocha que me esmagaram no subsolo.

    32. Suicídio tático. Preferi me destruir a ser capturado. Oliver comentou que foi ‘inspirador e idiota’.

    41. Morri enquanto ria. Moradina elogiou meu estilo de combate antes de me desintegrar com um toque.

    52. Morri tentando proteger um esqueleto invocado por Pers. “Você é bobo”, ela disse. Eu apenas sorri.

    68. Morrendo congelado, mas espera, ela controlava gelo também? Oliver disse que era adaptação. Maravilhoso.

    72. Errei o feitiço. Ele ricocheteou. Me matei. Oliver deu risada. Pers quase me matou de verdade.

    84. Espancado com punhos de rocha. Morrendo com honra.

    93. Morri duas vezes no mesmo dia. Um recorde.

    111. Tentativa de usar um novo tipo de conjuração rápida. Falha total. Corri direto para um feitiço.

    138. Me teleportei para dentro de uma armadilha mágica. Oliver disse que a burrice também é letal.

    177. Morri sorrindo. Amei a luta.

    202. Morri gritando. Odiei a luta.

    223. Gritei o nome de Perséfone como feitiço e me tornei uma bola de fogo negra. E morri, claro.

    276. Morri achando que tinha vencido. Olhei pra trás, vi Moradina em pé. Foi a última coisa que vi.

    300. Morri ao tentar voar e bater num meteoro de pedra que ela conjurou no céu.

    312. Morri dormindo. Exausto. Durante o treino. Oliver me chamou de preguiçoso mesmo morto.

    346. Explodi com mana condensada demais. Um erro comum.

    360. Morri rindo com Pers ao meu lado. Ela me trouxe de volta com um beijo na testa.

    367. Morri em silêncio. Caí sem gritar. Apenas aceitei. Pers chorou. Oliver fechou os olhos.

    E quando voltei daquela, com o corpo tremendo, o rosto pálido, me levantei, e disse para ela com a alma em chamas:

    — Na próxima, Pers. Você não vai mais sofrer. Eu prometo. Eu vou vencer.

    E nos olhos dela, entre o amor e o medo, vi a centelha de alguém que acredita em mim.

    A morte não me assusta mais.

    Eu sou o apóstolo da própria.

    A mana corria pelo meu corpo como sangue envenenado de luz negra. Sentia cada batida do meu coração sintonizada com algo maior, algo ancestral. Meus pulmões inflavam… e purificavam. Sem esforço. Como se respirar e refinar fossem uma coisa só. Um fluxo constante, natural. Vivo.

    Desviei de uma lâmina dourada que emergia do chão e, em meio ao salto, senti as veias abrirem mais espaço. Um calor suave percorreu meu peito, subindo até os ombros.

    — Ele… está… purificando… enquanto luta. — disse Oliver, em choque, o cachimbo quase caindo de sua boca.

    — Isso não é normal? — perguntei, girando no ar, conjurando uma rajada negra contra uma muralha que crescia em minha direção.

    — Isso é insano! — gritou ele, rindo como se tivesse visto um milagre ou cometido um crime histórico. — Pela barba das Sete, garoto, se nós dois tivéssemos nascido na mesma época, eu juro que alcançaríamos a divindade juntos antes mesmo de nossos corpos envelhecerem!

    Moradina não esperou a conversa acabar. Um estalo ecoou, e do chão ergueu-se uma coluna imensa de pedra viva tentando me esmagar.

    Mas dessa vez eu não corri.

    Respirei.

    Minhas veias brilharam.

    Toquei a base da coluna com a palma da mão envolta em mana escura e, com um gesto, a magia dela se desfez em partículas douradas. A terra tremeu. O ar ficou denso.

    Ela me encarou. Seu semblante era sereno, como sempre, mas seus olhos carregavam espanto. E respeito. Pela primeira vez.

    Avancei.

    Meus pés deslizavam como sombras vivas sobre o solo. Ao redor, os campos mágicos que limitavam a arena tremiam com o peso do poder crescente. Moradina golpeava, e eu me movia. Às vezes desviando por caminhos etéreos, outras vezes apenas girando e criando barreiras com a própria mana.

    Em uma brecha, conjurei Ignis Mortem, o fogo negro de Pers, e Moradina ergueu uma cúpula de pedra para se defender. O impacto fez a arena tremer.

    — Você entendeu… o que significa tornar-se um com a morte… — murmurou ela pela primeira vez.

    Não respondi.

    Atrás de mim, senti Pers assistindo em silêncio, de pé com as mãos entrelaçadas à frente do peito, o vestido roxo e preto esvoaçando com a magia que sacudia tudo. Seus olhos diziam mais do que qualquer palavra: orgulho… e esperança.

    Avancei novamente.

    Não haveria morte hoje.

    A luta estava longe de acabar, mas pela primeira vez, eu estava vencendo.

    Seguíamos como um poema escrito em pedra e fogo, uma sinfonia forjada entre os extremos da criação e da ruína.

    Moradina girou a lança de obsidiana que surgira em suas mãos com um movimento tão refinado quanto a precisão de um artesão anão. Seus olhos dourados fitaram os meus. Havia ali algo que não se podia fingir: respeito.

    Ela deu o primeiro passo.

    O chão rachou sob seu calcanhar. O som ressoou como trovão sob catedrais antigas.

    Ergui o braço e invoquei correntes de mana morta, espirais negras entrelaçadas de relâmpagos sombrios e sombras vivas. Mas antes que tocassem seu corpo, ela ergueu o braço esquerdo e com um simples estalar de dedos, fez com que o solo se tornasse vidro reluzente. As correntes explodiram contra a nova superfície, refletidas de volta com o dobro da força.

    — Você está aprendendo rápido demais. — disse ela, caminhando em minha direção com a lança à frente. — Mas ainda é um discípulo da ruína, e eu sou filha da fundação.

    Saltei para trás, mas o salto virou voo. O voo do Aspecto da Morte, sem asas, sem encantamentos. Apenas vontade moldando a mana.

    Com um impulso, desci dos céus como um cometa sombrio, envolto em chamas negras e relâmpagos dançantes. A lança dela me encontrou no ar. No impacto, o mundo congelou por um momento. A energia se dissipou em todas as direções. Oliver foi jogado para trás com a explosão.

    Ela girou o corpo e me atingiu com a parte plana da lança. Fui arremessado por dezenas de metros, rachando as pedras do campo. Mas levantei. Rangi os dentes.

    E sorri.

    — Você não me quebra mais.

    Ela não respondeu. Apenas se aproximou, e ao redor dela o mundo cedeu. A gravidade se dobrou. Era sua técnica de domínio territorial, uma miniatura do poder dos Deuses. Minhas pernas fraquejaram. O ar tornou-se viscoso.

    Mas ao meu redor, os girassóis de Perséfone brotaram do chão, entrelaçando-se em espirais. Minha mana reagia, criando resistência contra o mundo esmagador de Moradina.

    — Ele está… criando uma contraparte… — murmurou Perséfone. — Meu Hades… você é mesmo o meu escolhido.

    Avancei sob pressão. Cada passo era uma negação à morte.

    Com o estalar dos dedos, invoquei Aristi Cthonia, o nome que emergira dos confins da alma. Relâmpagos negros surgiram ao meu redor, em espiral, como serpentes à espera de um comando.

    Moradina criou muralhas, estacas, estalactites e colunas de pedra sagrada, mas as serpentes se desviavam, giravam, perfuravam e rasgavam. Eu não era mais um mago tentando conjurar feitiços.

    Eu era a tempestade.

    Ela finalmente sorriu. Pela primeira vez.

    — Você está quase lá, apóstolo. — murmurou, a voz baixa, antiga como as montanhas.

    Avançamos um contra o outro como dois corpos celestes fadados ao impacto. Magia explodiu em todas as direções. Um inferno de energia engoliu o céu etéreo do campo ilusório.

    Oliver observava tudo em silêncio. As palavras lhe fugiram. O cachimbo, apagado. A barba, chamuscada.

    Mas seu sorriso era maior do que nunca.

    A luta ainda não tinha um vencedor.

    Mas naquele momento, no cruzar de feitiços, raios e vontade, o mundo inteiro parecia conter a respiração.

    As chamas negras lambiam os céus. O chão pulsava com a tensão acumulada de duas forças opostas, mas estranhamente complementares. O campo de batalha já não lembrava uma torre mágica, agora era um altar entre mundos, onde o mármore do sagrado era lascado pelo cinzel da morte.

    Moradina avançou.

    Cada passo dela moldava o terreno ao redor: pilares se erguiam, escudos de terra se formavam, espinhos rompiam o solo com precisão quase artística. Ela não conjurava, ela esculpia o mundo.

    Eu avancei.

    Meus pés mal tocavam o chão. Flutuava como se minha própria vontade fosse um vento que me sustentava. A mana morta me circulava, viva e sensível. Cada pensamento era um comando, cada emoção, um disparo.

    Estendi a mão e os relâmpagos negros reagiram como serpentes à minha ordem, estalaram, gritaram e rasgaram o ar.

    Ela se defendeu com um domo de rocha viva, mas eu não parei. Teci magia com as mãos nuas como um maestro obcecado, invoquei uma corrente flamejante feita do mesmo poder que forjava minha alma: Ignis Mortem.

    Ela se contorceu como um dragão negro nascido do submundo, abrindo caminho até o centro da muralha. Moradina recuou, surpresa com o avanço. Na brecha criada, mergulhei.

    Corpos se chocaram.

    Manoplas de terra contra punhos revestidos com energia morta. O som dos impactos ecoava como sinos funerários tocando no abismo. Cada golpe era uma sentença. Cada bloqueio, um poema não dito.

    — Você é forte demais para um mortal. — ela disse, arfando, ainda com dignidade.

    — E você é forte demais para uma ilusão. — respondi, com sangue escorrendo da boca, mas com os olhos ainda ardendo.

    Saltamos para trás ao mesmo tempo, deslizando, preparando mais magia.

    Foi então que algo novo surgiu dentro de mim. Não era poder. Era clareza.

    Era como se eu conseguisse ouvir todas as almas ao meu redor. Vidas antigas, fantasmas esquecidos, memórias de batalhas travadas há séculos, cada uma delas ecoava em minha mana. Elas não me assombravam. Elas me guiavam.

    Estendi os braços e os girassóis de Pers começaram a brotar ao meu redor, não reais, mas feitos de mana, como se minha alma estivesse florindo no campo da batalha.

    Moradina hesitou.

    — Você está… tentando criar um domínio divino dentro de mim?

    — Não tentando. — respondi. — Apenas dançando com a morte.

    E dancei.

    Cada passo no ar era uma prece, cada giro era uma memória, cada soco era uma alma gritando em mim.

    Ela voltou a sorrir. E por um segundo, parecia até emocionada.

    — Você… vai mesmo alcançar o grau oito. Talvez até o dez…

    Ela recuou e então bateu a ponta da lança no chão. O mundo mudou.

    O campo de batalha se despedaçou como um espelho, e agora lutávamos sobre uma tapeçaria de rochas flutuantes girando no vazio. O céu acima era um redemoinho dourado, como se estivéssemos em uma fornalha divina.

    Ali, naquele santuário entre a vida e a morte, a última dança começava. Mas eu não morreria.

    Não mais.

    Eu era Hades. O primeiro e último apóstolo da Deusa da Morte. E, naquele momento, nenhuma sombra ousaria me engolir.

    As pedras flutuantes giravam ao redor de nós como luas ao redor de deuses esquecidos. A gravidade era uma sugestão, a realidade, apenas um palco frágil sobre o qual dançávamos. A aura de Moradina oscilava como magma sólido: densa, quente, inquebrantável. Mas havia algo novo em mim. Um fogo sombrio e paciente.

    Ela ergueu os braços. Colunas inteiras de pedra subiram do nada, como espadas de um exército lendário se preparando para o ataque final. Mas meus olhos já não viam como antes.

    Eu via… as linhas do mundo.

    As linhas onde a mana circulava. Os fios invisíveis que uniam o tempo, o espaço, o calor, a morte. E vi onde sua magia nascia.

    Perséfone… — sussurrei.

    Ela não respondeu, mas soube que havia me ouvido. Ela sempre ouvia.

    Abracei a mana, não a conjurei, não a forcei. Eu a entendi.

    Dei um passo no ar e o mundo reagiu, estava entre os pilares dela antes mesmo que eles caíssem. Reverso. Avanço. Voo. Trovão.

    Ela tentou prever meu movimento, mas a minha morte estava escrita em linhas que só eu agora lia.

    — Você não é mais o mesmo que me enfrentou nas outras vezes. — disse ela, com os olhos apertados.

    — Não. Não sou mais um homem tentando vencer a morte. Sou um homem que fez as pazes com ela. — respondi.

    O embate recomeçou.

    A lança dela era um raio de sol petrificado, capaz de destruir montanhas com um único toque. Meus braços, envoltos em uma aura escura, seguravam-na como se fosse apenas mais um argumento num debate entre divindades.

    A cada golpe dela, eu perdia pele, carne, tempo.

    A cada contra-ataque meu, ela recuava um passo, mas com um sorriso.

    — Você entende, agora? Por que divindades não temem mortais comuns? — ela perguntou.

    Respondi com silêncio e com um disparo de Ignis Mortem concentrado num único ponto, como um suspiro do fim do mundo.

    Ela desviou, mas o impacto fez a tapeçaria de pedras tremer.
    Saltamos, lutamos no ar, em quedas e voos, nos abraçamos como sombras que se digladiam, As serpentes de relâmpago negro já não eram invocadas por mim, elas surgiam por conta própria, como se tivessem vida própria em minha aura.

    Ela bateu com a ponta da lança no chão flutuante. Um terremoto se espalhou pelas ilhas de pedra. Eu fui arremessado. Rolei no ar, estabilizei, e a vi correr para mim com a lança girando em velocidade absurda.

    Sorri.

    Estava com medo?

    Sim. Mas não de morrer, de decepcionar Pers, de decepcionar Oliver. E, acima de tudo, a mim mesmo.

    Por isso, parei de pensar e apenas deixei meu corpo agir com a dança da morte.

    Desviei de um golpe impossível. Lancei um feitiço que nem sabia o nome. Girei, toquei o chão e, com um soco, desintegrei uma das pedras flutuantes para criar uma cortina de poeira mágica.

    Moradina irrompeu da cortina. E por um segundo, ela estava ao meu alcance.

    Toquei seu rosto com dois dedos e sussurrei:

    Aristi Cthonia.

    O tempo pareceu parar, ela recuou, aquela palavra, aquela invocação sussurrada em língua antiga, tinha peso. Significado.

    Moradina reagiu com a fúria de uma montanha se partindo.

    A luta não havia terminado ainda, mas o mundo já estava diferente e pela primeira vez, eu sentia que podia realmente vencê-la…

    …ou transcender com ela.

    Moradina saltou com fúria, sua lança girando como um redemoinho de pedra viva, os olhos brilhando com um orgulho ferido. Mas naquele instante, eu já não lutava com esforço, lutava com clareza. Com domínio.

    A magia fluía de mim como um rio sombrio, silencioso, cheio de morte e verdade.

    Eu não precisava mais pensar para conjurar. Meus dedos traçavam símbolos no ar, não como um feiticeiro inseguro, mas como um escultor tocando sua obra final. Tudo ao meu redor era meu domínio.

    — Hades… você está… — murmurou Pers, os olhos arregalados. Mas ela não completou. As palavras a traíam. E Oliver, pela primeira vez em toda a minha vida, ficou em silêncio absoluto.

    Ignis Mortem. Ignis Mortem. Ignis Mortem.

    Não eram feitiços, eram batidas de um coração sintonizado com o além.

    A cada passo, um trovão negro caía do céu. A cada gesto, pedras derretiam em ouro negro. A cada olhar, Moradina era empurrada para trás, sufocada por uma aura de escuridão que não era apenas mana. Era a própria morte, mansa e presente, como a mão de Perséfone segurando a minha.

    — Como… você pode estar tão acima…? — perguntou Moradina, ofegante, pela primeira vez hesitando.

    — Você é uma Deusa… mas eu sou o Apóstolo dela. — respondi, a voz firme, mas não arrogante. Não havia necessidade.

    As serpentes de raio dançavam ao meu redor como filhos felizes. A terra se abria sob meus pés, mas não me engolia. O céu trovejava quando eu erguia a mão.

    Ignis Cthonia. — murmurei.

    Uma nova variação da chama da morte. Um pilar de energia negra ascendeu como uma flor flamejante, pegando Moradina desprevenida. Ela se defendeu mal. Voou longe, batendo numa ilha de pedra e rachando-a inteira com o impacto.

    Ela se levantou devagar. Sua roupa cerimonial rasgada, a lança lascada, pela primeira vez… ela sangrava. O sangue dourado de uma Deusa.

    — Eu entendo agora por que Oliver apostou todas as fichas em você. — disse, com um sorriso tenso.

    — Não foi só ele.

    E olhei para Perséfone.

    Ela estava em pé. De olhos marejados. Mãos juntas ao peito. Sorria com o coração em cada músculo do rosto.

    Moradina avançou de novo, mas agora, cada feitiço que ela conjurava, eu desfazia com um gesto, cada ataque, eu desviava com um movimento de ombro, era como lutar com uma tempestade sabendo onde cada raio cairia.

    A maré da guerra era minha. O ritmo, meu.

    Com um salto, atravessei o campo, os pés deixando rastros de fumaça púrpura e prata no ar. Cheguei até ela antes que pudesse reagir, e com o punho envolto em sombras silenciosas, golpeei seu estômago.

    O som foi seco. Ela tossiu sangue divino.

    — É assim que se sente… perder? — ela murmurou, caindo de joelhos.

    — Não. Isso é como é lutar contra alguém que morreu mais vezes do que você consegue contar. — respondi.

    A luta ainda não havia terminado, mas Moradina já sabia.

    E lá de cima, Oliver cochichou, ainda boquiaberto:

    — Pela barba… da sétima Deusa… ele já não é mais só um Apóstolo.

    O chão tremeu como se temesse o que estava por vir. A atmosfera ao redor de Moradina oscilava entre a realidade e algo além do tangível, como se o mundo estivesse prestes a se desfazer por não conseguir conter duas forças divinas em colisão.

    Mesmo sendo uma ilusão controlada por Oliver, ela já era mais que um simples reflexo: era um eco da verdadeira divindade, alimentado pelas memórias do próprio mundo.

    Mas eu não hesitei.

    A cada passo, meu corpo parecia mais leve. Não porque eu estava descansado, mas porque estava em comunhão com algo maior do que eu mesmo. Minha mana se movia sozinha, respondendo a pensamentos ainda não pensados, antecipando movimentos não realizados. Eu não a controlava. Ela me compreendia.

    — Você… está se tornando algo perigoso. — rosnou Moradina, limpando os lábios com as costas da mão, ainda ajoelhada.

    — Sou só a consequência daquilo que vocês criaram. — respondi.

    — “Vocês”?

    — Os Deuses. Suas apostas. Seus descuidos. Suas guerras de poder travadas com soldados que nunca pediram por isso.

    — Você não entende. — ela se levantou. Sua aura se inflamou. As runas em sua pele começaram a brilhar como lava sob pedra. — O poder divino é um peso que vocês, humanos, não foram feitos para carregar.

    Dei um passo à frente.

    — Então por que foi deixado tão perto de nós?

    Moradina cerrou os dentes, e num movimento súbito, a lança estalou no ar. Mas desta vez, ela não me atingiu. No instante em que o golpe cortou o espaço, teleportei para trás dela usando os caminhos etéreos do Aspecto do Anjo da Morte.

    — Atrás de você.

    Girei com o cotovelo envolto em mana morta, acertando-a na base da coluna. Um grito baixo escapou dos seus lábios, mas ela não caiu. Girou o corpo num impulso felino e tentou me atingir com a haste da lança, mas bloqueei com o antebraço envolto em rocha negra conjurada no último instante. O impacto me empurrou para trás, ela ainda era uma Deusa.

    Mas mesmo ferida, ela sorriu.

    — Você está me forçando a ultrapassar os limites dessa ilusão…

    — É isso que sempre fiz, não é? Fazer vocês ultrapassarem os próprios limites. — disse, girando os ombros.

    No alto da torre, Oliver se levantou. Sua silhueta iluminada pela luz roxa do fogo mágico.

    — Isso está ultrapassando os parâmetros da ilusão. Ela vai começar a…

    — Deixa. — interrompeu Pers, com os olhos fixos em mim. — Eu quero ver. Ele precisa disso.

    Moradina saltou mais uma vez e eu a recebi.

    O mundo se converteu num campo de trovões e sombras.

    Chamas negras. Estacas douradas. Serpentes de relâmpagos. Lâminas feitas de poeira e silêncio.

    Cada segundo, um universo de feitiços, cada gesto, uma orquestra de destruição, cada olhar, uma sentença.

    Mas o que antes era equilíbrio… agora era superioridade.

    Moradina já não me seguia com os olhos. Já não reagia com perfeição, eu a vencia, e ela sabia disso.

    Mas mesmo assim, ela resistia, não por orgulho, mas porque ela queria ver até onde eu podia ir.

    E eu queria mostrar.

    Com um gesto, uma rajada de energia cortou a distância e atingiu Moradina no peito. Ela caiu, rolando pelas pedras, a pele dourada agora manchada de negro.

    Levantou-se cambaleante, e sorriu.

    — Você já ultrapassou muitos dos que vieram antes.

    — Não me compare com os outros. — respondi, flutuando no ar com os olhos ardendo. — Eu não luto por poder. Eu luto por ela.

    E apontei para Perse.

    — Que lindo. — murmurou Moradina, levantando a lança uma última vez. — Então… venha, Hades. Me mostre o que é morrer pela milésima vez.

    E a luta continuou.

    Como um último poema escrito com sangue e fumaça.

    Moradina recuou, arrastando os pés na pedra enegrecida, o corpo trêmulo coberto por rachaduras douradas, vestígios da magia que agora começava a se despedaçar. Cada respiração dela soava como o estalar de um cristal prestes a se partir.

    E eu desci.

    Não como uma flecha vingativa.

    Mas como um fardo inevitável.

    Com o punho fechado, cercado por chamas negras que giravam como serpentes, toquei o chão com leveza e então caminhei em sua direção. Cada passo meu fazia a terra chorar cinzas. O campo vibrava. A ilusão ruía. Mas ela não fugia.

    — Terminou, Moradina.

    Ela sorriu. Pela primeira vez, um sorriso gentil.

    — Você venceu. Não apenas essa luta… mas o teste inteiro. Você já não é o mesmo que começou isso.

    Fechei os olhos por um instante. Uma lufada de vento soprou meus cabelos e apagou as brasas em volta.

    — Então… acabou?

    E então ela sumiu, com a leveza de uma vela se apagando.

    A ilusão ruiu como vidro se estilhaçando. Tudo desapareceu.

    E eu caí de joelhos.

    Respiração presa. Mãos trêmulas. A exaustão colidiu comigo como um martelo divino, mas antes que minha testa encostasse no chão, braços me seguraram.

    — Você venceu. — disse Pers, a voz sussurrando em meu ouvido como música antiga.

    Me apoiei nela, arfando.

    E então…

    — BLÉÉÉÉRGH! — ecoou a voz de Oliver, aparecendo no alto da escadaria da torre como um diretor teatral revoltado.

    — Lutar por amor? Isso é um insulto à tradição bélica de Chaia! — exclamou ele, acendendo o cachimbo com um estalo de dedos. — Você teve a vitória mais épica, destruiu uma Deusa ilusória moldada pelos segredos do plano etéreo, usou o Aspecto da Morte, teleportou como se fosse respiração, conjurou feitiços do quinto círculo como se fosse seu idioma nativo…

    Ele apontou a bengala dramática em minha direção.

    — E ainda teve a audácia de dizer: “Eu luto por ela”?

    Deu uma tragada e soprou uma nuvem em forma de coração.

    — Vergonhoso! Um guerreiro da morte sendo um amante? O que vem depois? Um poema?

    Perséfone estreitou os olhos.

    — Oliver…

    — Oh, desculpe, querida Perséfone. Estou apenas tentando manter a dignidade deste enredo!

    — Você perdeu a aposta, Oliver. Duas vezes. — disse ela, sorrindo vitoriosa.

    Ele revirou os olhos.

    — Sim, sim. Mas eu tinha esperança. Esperança de que ele dissesse algo como “pelo poder ancestral da Morte” ou “por vingança do sangue dos caídos”. Mas não. “Luto por ela”. Patético. — murmurou, cruzando os braços e soltando uma baforada ainda mais dramática.

    Eu me deitei no colo de Perséfone, o coração enfim desacelerando.

    — E mesmo assim, ganhei. — murmurei.

    — É isso que me irrita. — resmungou Oliver, apontando com a bengala. — Ganhou. Sem bravata. Sem arrogância. Só… paixão. Isso arruina meus discursos acadêmicos!

    Pers riu, os dedos deslizando pelos meus cabelos.

    — Você pode escrever um novo capítulo, Oliver. Um onde o amor também mata Deuses.

    — Bah. Se tiver que escrever isso, quero no mínimo o título: “A Lâmina que Beija o Crepúsculo: a Saga de Hades, o Bobo Romântico da Morte“.

    E assim terminou aquela noite.

    Com risos, com alívio e com um futuro ainda mais sombrio, talvez brilhante, se abrindo à nossa frente.

    No dia seguinte, ainda com os resquícios da batalha latejando nos músculos e a lembrança de Pers sorrindo ainda quente no peito, voltei à torre mágica ao lado dela. Oliver já estava nos esperando com o cachimbo aceso e olhos faiscando de expectativa.

    — Diga-me, ó gênio apaixonado, — começou ele, girando a bengala no ar como se fosse uma batuta de maestro — você se lembra de como parou os feitiços de Moradina antes mesmo deles se formarem?

    Franzi o cenho.

    — Não… muito bem. Tudo aconteceu tão rápido. Era como se… eu soubesse onde ela iria conjurar e minha mana apenas reagisse, instintivamente.

    Ele sorriu largo, os dentes mais brancos do que deveriam ser em alguém que fumava tanto.

    — Ah, claro, “instintivamente”. Instinto esse que levou centenas de magos à morte tentando fazer a mesma coisa. — Ele estalou os dedos e uma fina cortina de fumaça púrpura pairou entre nós. — Você, meu querido apóstolo da Morte, acabou de dar os primeiros passos na mais avançada arte mágica: leitura de partículas de mana.

    Dei um passo à frente, intrigado.

    — Partículas de mana?

    Ele acenou com a cabeça, tirando um pequeno espelho de bolso do sobretudo e me mostrando meu reflexo.

    — Tudo ao nosso redor, absolutamente tudo, está saturado com partículas de mana. Invisíveis a olhos comuns, mas reativas aos olhos de um conjurador afiado.

    A fumaça se dissipou, e de repente tudo no ar brilhou. Pontos de luz tênue, azuis, dourados, vermelhos, flutuando como poeira ao sol. Uma dança silenciosa de energia viva.

    — Você não apenas viu isso. — Ele apontou para mim com a bengala. — Você leu isso. Interpretou. Previu o movimento da mana de Moradina antes mesmo que ela moldasse o feitiço. Isso… isso é o ápice do controle mágico.

    — Mas… como eu fiz isso? — perguntei, confuso. — Eu não sabia que estava fazendo.

    — Porque você estava no limiar entre a morte e a consciência. É sempre nesses momentos que a alma brilha mais forte. Mas agora… — Ele se virou e estalou os dedos. A torre mergulhou na escuridão. Apenas os pontos de mana permaneciam visíveis. — Você vai aprender a ver isso em plena vigília. A manipular. A moldar. A destruir feitiços antes que eles existam.

    Pers se sentou num canto, observando com um sorriso leve.

    — Ver o fluxo é mais do que mágica. É como escutar uma melodia que sempre esteve tocando, mas você nunca parou para ouvir. — Ela disse suavemente. — Eu mesma só aprendi a perceber esses fluxos depois de milhares de anos. Hades… você está correndo contra o tempo, e ainda assim, está vencendo.

    Oliver assentiu.

    — Então, vamos treinar isso. Quero que feche os olhos. Respire fundo. Sinta as partículas. Não apenas veja. Ouça. Cheire. Toque. A mana é viva. Ela dança pela sua pele se você deixar.

    Fechei os olhos.

    Um zumbido. Uma vibração tênue. Um calor subindo pelos dedos.

    E então, vi.

    Não com os olhos. Mas com algo dentro de mim, como se meu próprio sangue fosse feito da mesma coisa que aquelas partículas dançantes, eu via o mundo como ele era por trás da cortina, não sólido, não imóvel, mas pulsando, vivo… esperando ser moldado.

    Abri os olhos devagar. Oliver me observava com um olhar estranho.

    — Ele está vendo. — disse, para si mesmo.

    Pers sorriu.

    — É como ver um recém-nascido dar os primeiros passos. Menos fofo. Mais assustador.

    — Assustador mesmo, — resmungou Oliver — é que ele vai ser o primeiro mago da história a conjurar feitiços em tempo real anulando conjurações adversárias antes mesmo delas acontecerem. Estou ficando obsoleto.

    — Velho, talvez. Obsoleto, nunca. — Pers disse com carinho irônico.

    A aula continuou até o crepúsculo, com Oliver lançando feitiços para que eu lesse suas intenções antes mesmo de completá-los. E mesmo errando muitas vezes, algo dentro de mim estava mudando. Despertando.

    Porque agora, eu não apenas usava a mana, eu a compreendia, eu era parte dela e ela… era parte de mim.

    Regras dos Comentários:

    • ‣ Seja respeitoso e gentil com os outros leitores.
    • ‣ Evite spoilers do capítulo ou da história.
    • ‣ Comentários ofensivos serão removidos.
    AVALIE ESTE CONTEÚDO
    Avaliação: 0% (0 votos)

    Nota