Capítulo 17 - Traidor
Senti meu corpo estremecer, mesmo imóvel. O chão abaixo de mim, se é que aquilo podia ser chamado de chão, pulsava com a mesma energia que me atravessava, como se eu estivesse sentado sobre um coração gigantesco e moribundo. A mana aqui não era apenas selvagem. Era caótica. Era bruta. Era primitiva.
Por vezes, ela gritava.
Não com som, mas com forma. As partículas dançavam ao meu redor como espectros, assumindo breves silhuetas do que já fui e do que poderia ser. Em um momento, vi minha mãe ajoelhada, mãos ensanguentadas tentando fechar um ferimento que nunca cicatrizaria.
No segundo seguinte, vi Perséfone, parada em silêncio, observando-me com uma tristeza insondável, como se soubesse que a cada batida daquele coração oculto eu me afastava mais do que já fui.
A dor havia deixado de ser física e agora era espiritual.
Era como se todas as minhas vidas estivessem comprimidas dentro de mim ao mesmo tempo. Soldado. Filho. Apóstolo. Cobaia. Amante. Todos lutando por espaço dentro de uma alma que estava tentando se tornar algo maior.
Respirar era difícil, não porque faltava ar, mas porque tudo em mim resistia à permanência.
“Não há volta”, sussurrou algo dentro da minha mente. “Ou você se refaz ou quebra.”
Minhas veias tremiam. Eu podia vê-las sob a pele: finas linhas negras, iluminadas de dentro por um brilho opaco, como rachaduras numa rocha de obsidiana viva.
Sentindo uma dor dilacerante e entre lapsos de consciência, eu só podia me perguntar uma coisa:
O que é dor?
Uma pergunta estúpida, mas aqui, dentro do Coração do Vazio, parecia a única coisa que eu podia me perguntar.
Dor é o som das muralhas da sua alma cedendo.
Dor é a lembrança de tudo que você perdeu, reunida em um instante eterno.
Dor é o preço de mudar.
Os dias, se é que eles existiam aqui, se acumulavam. Às vezes, a dor me deixava imóvel por horas, talvez dias. Outras vezes, ela era tão insuportável que eu saía do meu corpo. Viajava como um espectro sem nome, revendo mortes que já morri, mortes que ainda morreria.
Perséfone apareceu uma vez.
Não fisicamente, o que quer que fosse seu corpo ali, seria desfeito, mas com sua presença.
Um sussurro. Um toque mental. Uma brisa onde não havia vento.
“Você ainda é você?”, ela perguntou.
Eu quis responder. Mas não tinha certeza.
Eu era um corpo composto por dor, cercado por fragmentos de passado, memória e expectativa, tudo em mim tentava desesperadamente não quebrar.
Oliver, do lado de fora, me observava por um espelho feito de mana. Ele comentou com Pers, ou talvez só com ele mesmo:
— Ele não vai sair igual. Isso se conseguir sair.
Não era maldade. Era constatação.
Era essa a verdade.
Para alcançar o sétimo grau de pureza, eu teria que morrer mais uma vez, só que dessa vez, por dentro.
Tornar-me não alguém mais forte… Mas outro alguém.
Eu não sairia do caos, eu teria que renascer nele.
Meus olhos estavam fechados. Mas mesmo assim, eu via.
Dentro do caos, visão e pensamento se misturavam como tinta negra em um rio. E foi nesse rio de distorção que uma forma começou a emergir, não com a clareza de um sonho, mas com a brutalidade de um pesadelo antigo, ancestral.
Primeiro, ouvi os passos.
Trovejantes. Impossíveis.
Cada um soava como um mundo sendo esmagado.
Depois, veio uma silhueta imensa, além de qualquer proporção mortal. Um colosso feito de aço, carne fossilizada e ossos de eras esquecidas. Seus olhos eram buracos escuros de onde jorrava uma luz prateada, fria, alienígena.
Era uma máquina. Mas também era um corpo. Era um deus. Mas também era uma ruína.
Um Titã
Um nome ecoou na minha mente como se alguém o soprasse dentro de um sino: “Oss-Dan’ir.”
Não sabia de onde vinha esse nome. Não sabia se era o nome da criatura ou do mundo que ela havia destruído. Mas ele vibrou em mim como uma lembrança esquecida.
O monstro caminhava por um campo de cadáveres. Gigantes mortos. Deuses partidos ao meio. Planícies onde o chão era feito de espadas e lanças enraizadas. E por onde passava, Oss-Dan’ir absorvia.
Cada osso, cada fragmento de alma, cada centelha de mana morta, tudo era sugado para dentro de seu corpo mecânico como se ele fosse um poço sem fundo.
E então ele me viu.
Seus olhos, dois faróis de luz espectral, giraram como lâminas em minha direção.
E eu… eu senti que ele me reconheceu.
Não como um inimigo. Não como um aliado. Mas como um sucessor.
— Eu não quero ser você… — sussurrei, sem som, sem boca.
O Titã se aproximou, seus ombros eram muralhas, seu peito era um altar e em sua testa, vi símbolos que pareciam mais velhos do que qualquer língua de Chaia. Um deles… era o símbolo de Perséfone.
Meu coração parou por um momento.
Ela conheceu essa coisa. Talvez… ela a criou.
Uma lembrança me atravessou como um raio. Uma memória que não era minha. Vi uma mulher de olhos de rubi, de pé diante de uma fornalha cósmica. Ela moldava uma forma com mãos nuas, derramando parte de sua essência ali. Não era uma criação. Era um fardo.
— Para quando nem mesmo os deuses forem o bastante.
A voz era parecida com a dela. Pers. Mas velha. Crua. Cruel.
O Titã ergueu o braço, e no seu punho, havia um sino forjado em ossos e prata. Quando ele soou, tudo tremeu, não o caos ao meu redor, mas dentro de mim.
O sino tocava minha alma.
Meus joelhos cederam. Meus ossos se curvaram por dentro e então, a máquina se virou e caminhou para longe, seu corpo se desmanchando em partículas etéreas. Não destruída. Apenas… adormecida.
— Você viu, não foi? — disse a voz daquela versão da Pers, baixa, como uma lembrança sussurrada.
— Sim. — respondi, mesmo sem saber como ela falava comigo.
— Eu não queria que você soubesse agora… Mas parece que o caos te considera digno.
— Aquilo foi real?
— Foi. Será. Talvez ainda esteja por vir. As visões do caos… nem mesmo os deuses as compreendem completamente. Mas tudo ali carrega verdade. Uma verdade sombria. Uma verdade sua.
O chão pulsava de novo e meus ossos ardiam.
— Ele vai acordar algum dia?
— Se você morrer sem terminar sua jornada… talvez.
Engoli seco.
E então… sorri.
Porque mesmo que fosse feita de destruição e pranto, mesmo que fosse o som do fim do mundo, o Titã me reconheceu.
E isso significava que eu também podia me tornar algo inquebrável.
A dor do caos já não queimava como antes. Ela latejava profundamente, constante, quase silenciosa.
Eu me mantive firme na meditação, mas então algo mudou.
O mundo ao meu redor se partiu como um espelho trincado, minhas veias de mana pulsaram em agonia.
E a realidade se desfez.
Fui arrastado para um plano que eu não compreendia. Não era Chaia, não era o Além, era algo de muito antes. Antes de qualquer uma dessas palavras fazer sentido.
Ali, diante de mim, estava um campo de guerra suspenso sobre um vazio infinito. Estrelas mortas ardiam como brasas ao redor. E no centro… um exército de horrores.
Gigantes que não obedeciam à lógica. Um deles era feito de areia e relógios partidos, outro, um colosso feito de espirais infinitas, seus olhos giravam como galáxias.
E do outro lado… Seres de pura luz. Mas não a luz que aquece. A luz que devora. Todos portavam símbolos que não reconhecia. Nem da religião, nem da história.
Coroas de cinzas.
Línguas de cristal.
Asas feitas de palavras esquecidas.
Não eram as Sete Deusas.
Eram… algo mais antigo. Mais distante. Deuses de outro mundo? De outro tempo? Não sei.
Um deles, alto como a própria existência, trazia marcas em espiral no peito e chorava chamas azuis enquanto combatia com uma espada de aurora.
O outro, um ser com o rosto escondido por um véu de ossos, falava palavras que faziam o tempo correr para trás. Vi florestas crescerem e apodrecerem em segundos ao seu redor.
E ainda assim… mesmo com todo aquele poder, eles estavam morrendo.
Era uma guerra perdida, talvez por orgulho, talvez por equilíbrio.
Mas por que estavam lutando?
No centro do campo, uma esfera girava. Negra como o vazio, mas cercada de vozes. Voando ao redor como moscas feitas de memória.
Aquilo… Aquilo era o prêmio.
A fonte.
A origem da morte.
Senti uma presença atrás de mim.
— Você não deveria estar vendo isso — disse uma voz que reconheceria mesmo no silêncio absoluto.
Perséfone? Mas espera, era mesmo a Pers?.
Me virei. Ela estava ali, mas… mais velha. Mais poderosa. Mais distante.
— Quem são eles?
Ela olhou para a batalha, com pesar.
— Eles foram os primeiros a tocar o caos. A extrair dele uma centelha de vida. De limite. Criaram a Morte… e se amaldiçoaram com ela.
— Então… eles criaram você?
Ela sorriu. Um sorriso triste.
— Algo assim. Sou o resultado de uma ideia que jamais deveria ter existido.
A guerra avançava. Um deus de escamas douradas foi partido ao meio por um relâmpago de anti-luz. Outro, que parecia um peixe gigantesco com olhos de criança, caiu gritando em milhares de línguas.
E então…
Tudo silenciou.
A esfera negra foi absorvida por uma sombra. Não… por um vazio consciente, algo que não tinha forma, nome ou som. A própria ausência.
Essa versão da Perséfone tocou meu ombro.
— Você viu demais. Vai esquecer quando acordar.
— Não.
— Vai esquecer, Hades. Mas ficará adormecido, dentro de você. Guardado. Como uma cicatriz que ainda não doeu, mas um dia vai sangrar.
A batalha sumiu, as estrelas desapareceram e então, o caos voltou a girar ao meu redor como uma espiral furiosa.
Mas dentro de mim, algo novo nasceu, uma memória que não era memória, uma verdade que não podia ser escrita.
E uma certeza:
Existem deuses além dos deuses. E alguns deles… ainda vivem.
Então eu vi.
No meio do caos, quando minha mente deveria ter sido engolida pela dor, algo se abriu diante de mim. Não uma porta. Nem um abismo. Era como se o próprio mundo estivesse… rachando. Não, mais do que isso.
Uma fissura entre planos, entre realidades. Um rasgo onde o tempo e o espaço pareciam não ter mais compromisso com lógica alguma. Eu não sabia se estava vendo o passado de um universo ou o fim de outro. Só sabia que aquilo estava ali. E só eu podia ver.
Mundos colidiam como pedras lançadas por deuses furiosos. Vi civilizações inteiras nascendo e morrendo em segundos. Cidades surgindo em meio à explosão de outras. Estrelas congeladas chorando fogo negro.
E o tempo… O tempo se rasgava como carne, o futuro quebrava no passado, o presente gritava em silêncio, eu via versões de mim mesmo morrendo, outras matando. Algumas se ajoelhavam. Outras erguiam espadas para o céu.
No centro disso tudo, não havia medo. Havia uma estranha… familiaridade, como se aquela rachadura, aquele apocalipse entre mundos, estivesse me chamando pelo nome.
Eu não sabia o que era aquilo. Um aviso? Uma lembrança? Um destino?
Mas eu soube, com a clareza que só a morte traz: Aquilo ainda não aconteceu. Mas vai.
E quando acontecer… Eu estarei lá.
Acordei.
Mas não foi um despertar como os outros.
Abri os olhos e vi estrelas. Não a luz do amanhecer ou o brilho de feitiços. Estrelas.
Minhas mãos flutuavam diante de mim, envoltas em uma grossa luva branca. Meu corpo, contido num traje… de astronauta. Era silencioso. Absolutamente silencioso.
Eu estava… no espaço.
Não havia chão. Não havia céu. Não havia mana. Só o vazio infinito, as nebulosas distantes e planetas que pareciam pulsares imóveis. Vaguei sem direção, sem saber se estava flutuando ou caindo. Minha mente não gritava mais. Ela sussurrava.
E então vi dois seres… maiores do que qualquer coisa que eu já tinha imaginado. Não eram feitos de carne. Um parecia ter sido moldado com as linhas da realidade. O outro… o outro era feito de culpa. De dor. De fogo e julgamento.
O primeiro falou:
— Ele não é o culpado.
O segundo, com uma voz que tremia meu próprio nome:
— TRAIDOR. PROFANADOR. VOCÊ OS MATOU.
Eles discutiam. Mas não com palavras. Com verdades. Cada som era uma revelação.
Cada palavra me arrancava memórias que eu nunca vivi.
— Ele causará o retorno daquilo que dorme. — disse o que me odiava.
— Ele é a chave, não a lâmina. — respondeu o outro.
E então… o segundo ser, o que me defendia, me tocou no peito. Foi como se todas as estrelas da galáxia se acendessem dentro de mim, a dor cessou. O caos cessou e eu senti.
Minha mana purificou. Transcendeu. Minhas veias brilharam como se a morte tivesse sido transformada em luz. Eu alcancei o grau sete de pureza.
Não houve aviso.
No instante seguinte, fui lançado. Não para baixo. Nem para cima. Mas através do firmamento, jogado como uma flecha viva pelas constelações.
E quando me estabilizei, flutuando diante de um conjunto de estrelas antigas… Um nome ecoou na minha mente.
Orion.
Eu não sabia o que aquilo significava. Nem se era um lugar, uma lembrança ou um destino. Mas soube, do fundo da alma, que essa constelação estava conectada comigo.
E que aqueles dois seres, seja lá o que fossem, tinham me escolhido.
Continuei flutuando no caos.
Não sabia quanto tempo havia passado. Um segundo? Um século? Meu corpo não existia mais ali, ou pelo menos não da forma como conhecia. E então, como se o caos abrisse um véu, as visões começaram.
Na primeira, fui um camponês. Trabalhava a terra com as mãos nuas, sentia o sol em meu rosto, via as estações mudarem como música. Vi minha esposa envelhecer comigo. Vi meus filhos crescerem e partirem. Vi a terra que cultivei ser tomada por senhores que jamais haviam sujado os pés de barro.
Eu morri… velho e em paz. Mas quando fechei os olhos, soube que aquilo não era um sonho. Era eu. Ou ao menos… já fui.
Na segunda, fui um esquilo.
Sim, um pequeno roedor correndo pelas árvores com uma bolota na boca. Senti o cheiro do inverno chegando. Lutei contra predadores. Subi, caí, vivi, morri. Um ciclo simples e selvagem. Uma vida breve, mas vívida. O mundo era enorme. E eu era pequeno. Mas fazia parte dele.
Na terceira, fui uma árvore.
No começo, só raízes. Depois, galhos tímidos. Depois, braços imensos que tocavam o céu. Vi um povoado crescer à minha sombra. Crianças subindo em mim, amantes se beijando encostados ao meu tronco. Vi festas, pragas, guerras, invernos. Vi aquele vilarejo virar cidade. Até que as máquinas vieram, e com um estalo seco de dor, meu corpo caiu. Meu tempo chegou ao fim.
Mas o que mais me impressionou… Eu sentia tudo. Como se todas essas vidas fossem minhas. Cada nascimento. Cada envelhecer. Cada último suspiro.
E mesmo sendo um camponês, um esquilo, uma árvore… havia algo em comum entre elas: Tempo.
O tempo era a linha que costurava todas essas existências. Como se algo, ou alguém, estivesse tentando me mostrar algo, que a morte que eu servia, a deusa a quem amava, não era a única força que tocava tudo. Tempo também era uma divindade, ou talvez, algo acima disso.
Não consegui ver seu rosto, mas nas entrelinhas, comecei a compreender: Minhas mortes… minhas vidas… não eram acasos.
Eu estava sendo preparado e tudo o que vivi antes, fosse como homem, animal ou árvore, me trazia até aqui.
Um apóstolo da morte… tocado pelo tempo?
Será que essas duas forças me moldavam para algo maior?
Antes que eu pudesse tentar entender, o caos voltou a me engolir e o silêncio preencheu tudo, mas dentro de mim, algo havia mudado.
Depois das visões do tempo, da vida e da morte, mergulhei mais fundo no caos. Ou talvez ele tenha mergulhado em mim.
Foi aí que tudo se alterou. O vazio se dobrou sobre si mesmo, e me vi diante de um trono partido ao meio, flutuando no que parecia ser o interior de uma estrela moribunda.
Na frente dele, um deus.
Não havia dúvida.
Era uma presença que esmagava a alma, mesmo sem mover um músculo. Seu corpo era feito de constelações despedaçadas, olhos como supernovas se extinguindo, e sua voz era o som que o universo faz quando se rasga.
— Já não basta teres roubado o meu trono, criatura hedionda? — rosnou o deus, cada palavra um trovão que retinia dentro do meu crânio.
— Eu… não sei do que está falando — respondi, ou pensei em responder, mas as palavras saíam como ecos distantes, como se nem minha própria boca me pertencesse.
Atrás dele, surgiu uma deusa.
Ela era uma montanha viva, um jardim eterno, uma deusa feita de todas as florestas e oceanos que já existiram. Quando se moveu, o espaço se curvou como um campo de trigo ao vento. E sua voz era o primeiro canto de um mundo recém-criado.
— Mesmo o maior dos pecadores, se desmemoriado, merece a chance de recomeçar, Urano.
— Você o vê como um inocente… — respondeu Urano. — Mas eu o vejo como o usurpador. Como aquele que desafiou o céu com mãos feitas de escuridão.
Minha alma se agitou.
Usurpador?
Trono?
Estavam dizendo… que eu havia feito algo tão grave que um deus queria me destruir por isso?
Mas… como? Eu não lembrava de nada. E se for verdade? E se o sangue que escorreu entre estrelas foi derramado por minhas mãos?
A deusa se aproximou. Seus olhos eram gentis, mesmo que antigos como o próprio tempo.
— Hades, você ainda não sabe quem é. E é melhor assim. Algumas verdades só podem ser suportadas quando o espírito está pronto.
— Eu já morri tantas vezes… — murmurei, ou sonhei que murmurava.
— E ainda morrerá mais. Mas cada queda te afasta um pouco da sombra que te criou, e te aproxima da luz que você mesmo acendeu.
Urano rugiu, o trono tremeu, e um pedaço do caos se fragmentou como vidro partido.
— Ele verá! Quando as memórias voltarem, quando o sangue dele gritar pelo que perdeu, então entenderá. E desejará nunca ter renascido.
E então tudo se partiu.
O trono. O vazio. A estrela.
E eu caí, não como da última vez, agora era como cair dentro de mim mesmo.
E mesmo sem entender… Mesmo sem lembrar…
Eu temi que Urano estivesse certo.
Flutuando entre as ruínas da última visão, ainda ecoando a raiva de Urano e a compaixão da deusa, fui lançado num espaço que não parecia mais o caos, mas algo ainda mais primitivo. Um vazio antes do tempo. Antes da criação. Antes até mesmo dos deuses.
Ali, emergindo da escuridão opaca, vi um ser colossal.
Ele estava ajoelhado, com os joelhos cravados no que parecia ser um chão de estrelas mortas, a coluna vergada, as mãos apoiadas como pilares em um continente curvo, todo o plano existencial equilibrava-se em seus ombros. E mesmo esmagado pelo peso, ele mantinha os olhos fixos em mim.
Sua pele era feita de pedra cósmica, seus olhos ardiam como brasas ancestrais.
— Meu nome é Atlas. — sua voz era suave, mas retumbava como trovão em câmara fechada. — E carrego Chaia para que ela não despenque no esquecimento.
Tive vontade de perguntar tantas coisas, mas ele me encarou fundo e então, como se enxergasse minha essência, perguntou:
— Você está feliz, Hades?
Fiquei mudo.
A pergunta simples demais.
Profunda demais.
Como poderia dizer que estava feliz, com tantas mortes e renascimentos? Com o peso de um amor tão intenso quanto a própria morte? Com a angústia de saber que talvez eu fosse… algo que ninguém ali ousava dizer em voz alta?
Eu abri a boca, mas não soube responder.
Atlas sorriu. Não um sorriso cruel, nem sábio, apenas um sorriso triste, como quem já fez aquela pergunta a milhares de almas. E viu, em todas, o mesmo silêncio.
Foi nesse instante que o espaço se curvou.
As constelações começaram a girar como se em pânico, e então um novo ser surgiu, caminhando como se dançasse sobre a própria gravidade.
Ele era feito de nebulosas vivas, seu corpo se espraiava em espirais galáticas, e seus olhos continham constelações inteiras que se formavam e morriam a cada piscar.
E em suas mãos… uma lança. Não uma arma como as que conhecemos, essa rasgava o próprio tecido da existência. Onde ela tocava, o universo tremia. E não havia ferida, havia ausência, um buraco que nem a realidade ousava preencher.
— Ele não sabe ainda. — disse o ser nebuloso, olhando para Atlas.
— Não. E é por isso que ainda pode ser salvo. — respondeu Atlas, sem se mover.
— Hades, filho da noite e da ruína. — disse a entidade cósmica. — A ti será oferecida uma escolha. Mas cuidado: todo deus que sangrou uma estrela o fez pensando que era o herói da história.
Tentei perguntar seu nome. Mas ele não respondeu.
Apenas girou a lança no ar. E a realidade ao meu redor se partiu mais uma vez.
Antes que eu pudesse gritar, sonhar ou entender…
Fui engolido pela própria história que ainda não vivi.
Então ouvi gritos. Mas não eram gritos humanos. Nem sequer de criaturas vivas.
Eram gritos de planetas inteiros. Mundos sufocando ao serem engolidos por uma força maior que a própria realidade. Como se as fronteiras entre existência e vazio tivessem colapsado. Como se até o tempo, em desespero, quisesse fugir.
As constelações giravam em pânico, estrelas explodiam como sinapses, e galáxias se desfaziam em pó cósmico.
Foi então que a voz dele retornou.
— Não repita os mesmos erros do passado.
O ser feito de nebulosas caminhou até mim com lentidão solene.
Eu tremia.
Não de medo.
Mas como se meu corpo, minha alma, reconhecesse algo que minha mente ainda não compreendia.
E então, ele cravou a lança no centro do meu peito.
Mas não houve dor.
Nem um gemido. Nem um espasmo. Nada.
A realidade não explodiu. Eu explodi. Não fisicamente. Não em pedaços. Mas em sentido. Como se algo dentro de mim, até então adormecido, se abrisse como uma flor negra ao luar.
E naquele instante, senti meus canais de mana, meu espírito, tudo dentro de mim purificou-se em uma única onda avassaladora.
Grau oito.
Sem esforço nenhum.
— Agora você está pronto. — disse ele. — Mas ouça bem, filho da morte: quando acordar, não conte a ninguém o que viu aqui. Nem àquela que segura teu coração, nem ao mago que te treina. Isso pertence a você. E somente a você.
A névoa cósmica ao redor começou a se dissolver. As estrelas cessaram seu grito. A realidade recostou-se, ferida, mas ainda viva.
E então…
Acordei.
Suando. Respirando com dificuldade. Mas vivo. Em silêncio.
Com o peito quente e o olhar fixo em algo que ninguém mais veria.
Logo que abri os olhos, antes mesmo que pudesse me sentar, fui surpreendido.
Braços finos e desesperados me envolveram com força, tremendo como folhas no vento.
O cheiro de flor seca e mana antiga me invadiu, e quando olhei para baixo vi Pers chorando, o rosto afundado no meu peito, como se temesse que, ao me soltar, eu sumisse de novo.
— Você voltou… você voltou… — repetia como um mantra, entre lágrimas e soluços abafados.
Ainda atordoado, com o peito pesado e a cabeça rodando, olhei para Oliver em busca de explicações.
Ele estava sério, mais do que o habitual, e tragava seu cachimbo sem pressa, a fumaça púrpura desenhando espirais tensas no ar.
— Quinhentos anos. — disse, como quem menciona o tempo que levou para esfriar um café. — Você passou quinhentos anos vagando no caos, garoto. Não se lembra?
Meu olhar se arregalou, mas antes que pudesse surtar, ele ergueu a mão num gesto tranquilizador e completou:
— Mas calma. No continente, se passaram apenas seis meses. É uma daquelas distorções esotéricas do espaço-tempo. Nada que um mago de verdade não conheça.
A cabeça de Pers se ergueu, os olhos vermelhos de chorar, e ali, naquele instante, percebi que nada importava mais do que ela.
A envolvi com os dois braços e sussurrei contra os cabelos prateados:
— Eu nunca mais vou te deixar, tá bem? Nunca mais.
Ela não respondeu com palavras. Apenas apertou ainda mais forte.
Oliver pigarreou, quebrando o silêncio como quem atira uma pedra em um lago calmo:
— Então…? Vai me contar o que viu?
Me afastei um pouco. Olhei para ele. Depois olhei para o céu.
Fechei os olhos, tentei forçar a memória…
Mas não havia nada.
Sombras. Ecos. Uma sensação de vazio e grandiosidade que escapava por entre os dedos da minha mente.
— Eu… não lembro. — disse enfim.
Não foi mentira. Eu queria contar. Queria compartilhar, mas aquilo que vivi lá dentro… Ou se apagou… ou foi trancado.
Oliver me encarou longamente. Depois soltou a fumaça em silêncio.
— Isso é bom. Ou ruim. Vai depender de quem você se tornar.
Pers ainda me abraçava e naquele instante, eu sabia exatamente quem eu queria ser.
No dia seguinte, com a luz da manhã tingindo a torre mágica com tons suaves de âmbar, me aproximei de Oliver com um propósito.
Ele estava organizando pergaminhos com desleixo estudado, soprando a poeira secular como se cada página fosse uma piada antiga prestes a ser contada.
— Então…? — disse ele, antes que eu falasse qualquer coisa. — Você alcançou o grau oito de pureza, não foi? Pela barba das Sete, isso é histórico! Eu devia abrir um vinho para comemorar… ou melhor, conjurar um meteoro pra registrar o momento no céu!
— Não quero feitiços ainda. — interrompi com calma.
Oliver arqueou uma sobrancelha.
— Hm? Vai querer o quê então? Um trono feito de ossos? Uma visita ao meu mausoléu? Um dragão de estimação?
— Me ensine a criar ouro.
Ele piscou. E por um segundo, toda sua tagarelice se calou. Depois, lentamente, um sorriso largo se formou no rosto.
— Ah… entendi.
Disfarçou tossindo no punho, como se tentasse conter o entusiasmo.
— Quer dizer… claro, claro. Transmutação alquímica. Um clássico! Pensando em aplicações práticas da magia, gosto disso. Focado. Objetivo. Romântico.
Fingi que não ouvi a última palavra.
Ele se virou e começou a preparar a demonstração, murmurando para si mesmo:
— Um mago com esse nível de pureza… já deve ser capaz de rearranjar as estruturas atômicas. É só entender as ligações entre os elementos… o que é o mundo, afinal, senão desejo moldado em forma?
Enquanto Oliver traçava círculos com a ponta da bengala no chão, eu apenas observava em silêncio.
Não disse por quê, mas em meu bolso, já guardava o desenho do que eu queria fazer. Nada extravagante. Apenas algo com significado. Algo que brilhasse à sua maneira, como ela.
Oliver, ainda de costas, resmungou:
— E que bom gosto, viu? Qualquer tolo criaria uma coroa, uma estátua… mas um metal puro, maleável, eterno… Isso sim carrega simbolismo.
— Pode me mostrar ou vai ficar filosofando até o sol nascer?
— Estou te preparando para o seu grande momento, seu ingrato.
Ele girou o cachimbo entre os dedos, e a fumaça púrpura desenhou uma rosa dourada no ar, que se abriu lentamente, pétala por pétala, até se desmanchar em pó brilhante.
Um truque visual… mas belo.
— Ouro, Hades, não é só metal. É promessa. É permanência. — Disse ele, virando-se enfim. — Vamos começar. E faça isso direito, garoto… porque algumas coisas merecem durar para sempre.
Mais tarde, a luz suave da manhã já tinha se rendido aos raios mais firmes do sol quando Pers adentrou a torre mágica.
Seus cabelos prateados dançavam ao ritmo de uma brisa inexistente, e o vestido preto cintilava discretamente com o reflexo das runas flutuantes que giravam ao redor da torre como relógios descompassados.
Ela parou na soleira, nos olhando com aquele olhar que misturava espanto, charme e leve ironia.
— Vocês dois madrugaram…?
Oliver estava de costas, afiando linhas arcanas num grimório com um pedaço de carvão flutuante.
Sem olhar, respondeu:
— Madrugar? Minha querida, este jovem apressado resolveu atingir o grau oito de pureza antes mesmo do chá da manhã.
Pers congelou por um instante. Seus olhos se arregalaram e ela girou o rosto para mim com espanto puro, um rubor quase invisível brotando em suas bochechas.
— Você… o grau oito?
Assenti devagar, ainda sentindo um resquício da transformação. Não havia fogos de artifício ou trovões. Apenas um peso novo, uma profundidade nos feitiços e nos pensamentos, como se minha própria alma tivesse aprendido uma nova língua.
Ela se aproximou sem dizer nada por um momento, como se analisasse cada fibra da minha existência. Depois, com a voz doce e cheia de algo que parecia orgulho velado, falou:
— Eu sempre soube que você era especial… mas isso… isso é quase divino.
Oliver, claro, teve que interromper o momento.
— Quase, ela diz. Hah! Se me dessem uma moeda a cada vez que o garoto quebrou um limite mágico eu já teria comprado outro plano existencial.
Pers riu levemente, e se sentou numa das cadeiras da torre, cruzando as pernas com elegância casual.
— E agora? O que faremos, professor gênio?
Oliver virou-se dramaticamente, girando o cachimbo com um floreio exagerado.
— Agora, mais uma semana. Só uma. Uma semana para lhe ensinar tudo que posso em termos de feitiços do oitavo círculo e, talvez, alguns segredos que nem as deusas têm coragem de tocar.
Ele apontou para mim como se invocasse um juramento invisível.
— Depois disso, podem partir para o próximo mestre. Tenho certeza de que ele já está se remoendo de ansiedade… embora não vá admitir.
Pers franziu os lábios.
— Você falou com ele de novo, não é?
Oliver piscou com o cinismo de sempre:
— Quem, eu? Nunca faria algo pelas costas.
Ele soprou uma espiral de fumaça que formou uma sombra de um trono cercado por chamas.
— Agora, vamos trabalhar. Antes que esse poder comece a apodrecer por falta de uso.
A semana passou como um sopro entre as páginas de um grimório antigo.
Entre feitiços do oitavo círculo, teorias arcanas que desafiavam o próprio espaço e tempo, e mais provocações de Oliver do que eu ousaria contar, senti que estávamos nos despedindo em silêncio, mesmo antes de qualquer palavra ser dita.
No último dia, o céu fora da torre parecia mais límpido. Até os campos de girassóis, sempre constantes, pareciam balançar mais devagar, como se quisessem prolongar aquele instante. Oliver me observava em silêncio, sentado em sua poltrona de veludo roxo com braços de ouro fosco, o cachimbo já aceso, como sempre.
— Bem… — disse ele, após um tempo, levantando-se com um suspiro teatral — creio que chegou a hora de dizer adeus. Ou pelo menos um até breve.
Ele caminhou até mim, os passos ecoando no chão mágico da torre.
Em suas mãos estava um livro grosso, encadernado com couro de alguma criatura que, honestamente, eu preferia não perguntar qual era. As bordas eram protegidas por um metal que brilhava com reflexos púrpura, e runas se moviam sobre a capa como se respirassem.
— Esta… — disse ele com solenidade exagerada, colocando o livro em minhas mãos — é minha obra magna. Meu legado. Meu testamento.
Li a capa:
“Os Anais Dramáticos da História Trágico-Épica do Grandioso Continente de Chaia, como Registrado Pela Caneta Arcana do Último dos von Fell.”
— Você precisa mesmo de tudo isso no título? — perguntei, arqueando uma sobrancelha.
— Obviamente. — disse, ofendido — O drama está no título, e o título é o drama. Mas escute com atenção agora, Hades.
O tom dele mudou. Menos brincadeira. Mais peso.
— Guarde este livro em seu inventário. Não o perca. E quando você reencarnar no continente, vá até a Academia Imperial de Emberfell e entregue-o a Reinhard von Emberfell.
Aquele nome soou como trovão abafado em minha mente.
— Reinhard…?
— Sim. — disse Oliver, soltando uma espiral de fumaça que tomou a forma de um homem com uma longa capa e olhos severos — O último estudioso que vale alguma coisa naquele continente perdido. Ele entenderá o valor disso.
Pers se aproximou, ficando ao meu lado. Ela segurou minha mão e me olhou com uma expressão que era ternura e orgulho.
Oliver sorriu.
— Agora vá, apóstolo da morte. O próximo mestre te espera. E se algum dia duvidarem da sua trajetória… diga que aprendeu com Oliver von Fell, o último mago digno do título de gênio.
Ele piscou.
— Ah… e se ele estiver dando uma palestra quando você chegar, interrompa. É mais divertido assim.
Eu ri, mesmo com o coração apertado. Guardei o livro em meu inventário com cuidado, como se segurasse não só uma história… mas parte de uma amizade.
Então, com o coração em brasas e Pers ao meu lado, demos o primeiro passo rumo ao próximo capítulo.
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