Após nos despedirmos de Oliver com direito a uma última nuvem de fumaça roxa em formato de “adeus” e uma recomendação absurda sobre nunca confiar em magos que usam chapéus pontudos, caminhamos até o portão da torre mágica em silêncio.

    Era um daqueles silêncios confortáveis, que não precisavam ser quebrados. Ainda assim, senti o olhar de Pers sobre mim.

    — Então… — ela começou, com a voz suave e sem pressa — vamos direto para o próximo mestre ou…?

    — …ficar um tempo a sós. — completei, quase no mesmo instante, com um pequeno sorriso.

    Nossos olhos se encontraram e houve aquela faísca. Aquela que não vinha de manas ancestrais ou feitiços milenares, mas do simples fato de estarmos juntos. De estarmos vivos, mesmo que em corpos mortos.

    — Acho que um dia só nosso seria… justo. — ela disse, olhando para o céu que já se tingia de dourado. — Afinal, o mundo não vai acabar por causa de um dia. Né?

    — E se acabar, que pelo menos tenhamos vivido esse dia como quisermos. — respondi, oferecendo minha mão.

    Ela a pegou com uma leveza que contrastava com a imensidão de tudo que carregávamos. E então, sem portais grandiosos, sem convocações, sem armaduras ou feitiços… apenas dois seres, um apóstolo e uma Deusa, caminhamos para longe da torre. O mundo podia esperar. Hoje, éramos só nós.

    O sol pendia no céu como um girassol preguiçoso, dourando o mundo ao nosso redor enquanto seguíamos por uma trilha estreita entre colinas de grama alta. Não dissemos para onde íamos. Não precisávamos. O destino era irrelevante quando o caminho era ao lado dela.

    Caminhamos por muito tempo. A noção de tempo se dissolvia quando ela sorria. Quando ela olhava para mim com aqueles olhos vermelhos que, apesar de mortos, pareciam mais vivos do que qualquer coisa que eu já conheci.

    — Hades — disse ela, parando e tirando os sapatos. — Tem algo de sagrado em andar descalça num dia assim. A terra parece… mais verdadeira.

    Tirei os meus também. E a terra era quente, cheirosa e viva, de um jeito estranho, considerando que estávamos em um reino dos mortos.

    — Se fosse uma memória, esse dia teria cheiro de grama e chá de jasmim. — falei, só para ver o sorriso dela aparecer.

    — E o gosto é de quê? — ela perguntou, inclinando a cabeça.

    — De biscoito amanteigado roubado de alguma cozinha por aí.

    Rimos. E continuamos andando até encontrarmos uma colina solitária com a vista perfeita para o nada. E, mesmo assim, parecia o centro do mundo.

    Nos sentamos lado a lado, os ombros se tocando, e eu peguei o violino que eu havia ganhado de presente do Oliver, mas que nunca usei. Toquei mal, desafinado, mas com alma. Pers fechou os olhos e balançou a cabeça no ritmo, como se aquela música imperfeita fosse sua sinfonia favorita.

    — Quando eu era criança… — ela começou, depois de um tempo — …eu queria ser o Sol. Queria brilhar tanto que ninguém mais tivesse medo da morte. Engraçado, não é? A Deusa da Morte querendo ser o sol.

    — Talvez você tenha conseguido. — falei, baixando o violino. — Porque desde que você entrou na minha vida… eu parei de ter medo.

    Ela me encarou por longos segundos. O vento levou uma mecha branca do seu cabelo até meus lábios. E antes que qualquer um de nós dissesse algo, ela se deitou de lado, com a cabeça no meu colo.

    — Promete que vai continuar lembrando que você é mais do que um apóstolo? — sussurrou como se tivesse medo da resposta.

    — Prometo. E você promete que vai continuar sendo o Sol, mesmo sendo a deusa da morte?

    Ela fechou os olhos. Sorriu.

    — Prometo.

    E ali ficamos.. Apenas dois tolos, um renascido e uma deusa, guardando o mundo inteiro entre mãos entrelaçadas e silêncios confortáveis.

    O tempo parecia ter adormecido conosco, recostado na mesma colina. Os minutos se esticavam preguiçosamente como se o próprio mundo nos oferecesse essa trégua, onde o destino deixava de existir e tudo que restava era o presente. O agora.

    Pers ainda estava deitada com a cabeça no meu colo. Seus dedos desenhavam círculos lentos em meu braço, como se cada gesto fosse uma runa secreta entalhada na minha pele.

    Olhei para ela, para aquele rosto que já contemplara o fim de impérios e a queda de estrelas, e ainda assim era o rosto de alguém que podia rir de uma piada ruim ou se emocionar com uma flor brotando no meio do nada.

    — Se você pudesse escolher, onde reencarnaria? — perguntei.

    Ela abriu os olhos devagar, vermelhos como vinho sob o pôr do sol, e demorou alguns segundos antes de responder.

    — Num lugar simples. Uma vila pequena, talvez. Com girassóis no quintal. E uma janela que desse para o nascer do sol.

    — Soa bastante parecido com aqui. — comentei.

    — Talvez seja. Talvez eu já tenha escolhido. — disse, com aquele sorrisinho de canto que sempre parecia esconder segredos demais.

    — E você? — devolveu ela, virando-se para encarar melhor meu rosto.

    — Não sei. Acho que só queria poder te encontrar de novo. Onde quer que fosse. Mesmo que eu não me lembrasse de quem você é, acho que saberia. — Falei mais baixo. — Tipo quando você vê uma estrela e sabe que ela é importante, mesmo sem saber o nome dela.

    O silêncio que se seguiu não foi desconfortável. Pers ergueu a mão e tocou meu rosto. Seu toque era frio como mármore e quente como um lar ao mesmo tempo.

    — Você fala como alguém que está prestes a fazer uma promessa impossível. — disse ela.

    — Talvez eu esteja. — respondi. — Talvez eu esteja prometendo que vou te amar até mesmo nos mundos em que eu não sou eu.

    Ela se sentou devagar, como se não quisesse quebrar a magia daquele instante, e ficou de joelhos diante de mim. Seus cabelos estavam desarrumados, o vestido roxo e preto ondulava como névoa ao vento, e seus olhos… seus olhos diziam que ela sentia tudo aquilo também, mesmo sem palavras.

    — Hades… — disse ela, firme, mas suave. — Eu não escolhi você por acaso. Entre todos os que morreram, entre todos os que eu toquei, foi você. Sempre foi você. Mesmo quando você era só silêncio. Mesmo quando você era só dor.

    — E agora? — perguntei.

    Ela se aproximou, os rostos a centímetros, e disse quase como um sussurro de vento:

    — Agora você é o som que me impede de afundar no silêncio.

    Por um momento pensei que ela fosse me beijar. Mas ao invés disso, ela encostou a testa na minha e fechou os olhos. E ali, senti como se estivéssemos gravando promessas nas estrelas.

    O céu escurecia lentamente. Um esqueleto passou à distância com um lampião aceso, como se estivesse nos abençoando com luz. Eu ri. Ela riu também.

    — Estamos perdendo a janta.

    — Estamos ganhando algo melhor. — respondeu ela.

    E então ficamos mais um pouco. Apenas nós dois. Entre o fim do dia e o início da eternidade.

    — Está com fome? — perguntei, com a mão ainda entrelaçada à dela.

    Pers arqueou uma sobrancelha e riu de leve, como se tentasse parecer indiferente, mas o som do estômago dela a traiu.

    — Sim… — admitiu, derrotada. — Mas é melhor vermos o Monsieur Ossain antes, não acha? Eu gostaria de trocar de roupa. Um encontro merece mais do que um vestido amarrotado de fim de tarde.

    — Concordo. Quero ver o que ele vai aprontar dessa vez com seus tecidos mágicos. — sorri.

    — Hades, querido… Monsieur Ossain não “apronta”. Ele “cria”. — disse ela, erguendo o queixo com teatralidade. — E você está falando do alfaiate que fez um véu de neblina para uma noiva banshee. A peça durava só até o último choro.

    — Ele me deu um casaco que congelava as costas se você mentisse usando ele. — comentei, rindo.

    Ela apertou minha mão, satisfeita, e começamos a caminhar. O céu já assumia um tom púrpura profundo, e as lanternas bruxuleantes da vila começavam a acender sozinhas. Os esqueletos organizavam as bancas, como se soubessem que algo especial estava prestes a acontecer. E estavam certos.

    Ao nos aproximarmos da alfaiataria, a porta se abriu sozinha com um rangido elegante. Dentro, o cheiro de perfume antigo e couro polido nos envolveu.

    Ah, la passion! — exclamou Monsieur Ossain, seu bigode espectral se contorcendo como se tivesse vontade própria. — Vocês têm cheiro de romance… e de luar. Entrem, entrem!

    Ele nem esperou que disséssemos o que queríamos. Observou Pers por um segundo e então desapareceu entre as araras e rolos de tecidos encantados, soltando frases como “drama etérico” e “linhas que dançam no tempo”.

    Enquanto isso, ela se virou para mim com um brilho travesso nos olhos.

    — Acha que ele vai colocar você em outro terno sombrio e ameaçador?

    — Não duvido que sim. Ele parece achar que eu já sou um lorde vampiro.

    Monsieur Ossain voltou com dois conjuntos nas mãos, como um maestro prestes a reger a ópera mais importante de sua vida.

    Pour vous, mon jeune roi… — disse ele, estendendo-me um terno de corte perfeito: o tecido negro como o abismo entre estrelas, detalhes de prata nos punhos e na lapela em forma de ossos entrelaçados. A gravata era púrpura escura e vibrava com um leve toque de mana.

    — E para vous, ma déesse… — ele ofereceu a Pers um vestido que parecia ter sido costurado com o próprio crepúsculo. Tons de preto e roxo se misturavam como fumaça, com detalhes prateados nos ombros e um decote elegante, mas não vulgar. A saia fluía como névoa encantada. Um colar de obsidiana em formato de lua minguante vinha junto, como assinatura final.

    Ela tocou o tecido com um sorriso encantado.

    — É perfeito.

    Monsieur Ossain fez uma reverência tão dramática que seus ossos quase desmontaram.

    — Naturalmente.

    Vestidos e prontos, trocamos olhares cúmplices diante do espelho encantado que refletia não só nossos corpos, mas nossas intenções.

    — Então? — ela perguntou.

    — Agora, sim. Estamos prontos para o nosso encontro. — disse, estendendo o braço.

    Ela o aceitou com um sorriso discreto e um brilho nos olhos que fazia parecer que todo o continente de Chaia havia desaparecido por um instante. Só havia nós dois e a promessa de uma noite perfeita.

    Seguimos para um restaurante que parecia ter saído de um sonho gótico. Cortinas de veludo negro, candelabros flutuantes, mesas de pedra polida cobertas por toalhas bordadas com fios de prata encantada. Um esqueleto elegante nos conduziu até uma mesa próxima ao pequeno palco onde outro esqueleto, de cartola e olhos de safira mágica, afinava um violino.

    Sentei de frente para Pers, que observava o ambiente com um sorriso discreto e encantado, o vestido crepitando com magia a cada movimento dela. Era a encarnação do crepúsculo e mesmo assim, sorriu para mim como se fosse o sol nascente.

    Depois que pedimos o jantar, um prato especial de flores cristalizadas para ela e algo que lembrava carne encantada para mim, me inclinei um pouco sobre a mesa, curioso.

    — Posso fazer uma pergunta?

    — Sempre — disse ela, brincando com o cálice cheio de um vinho púrpura que parecia brilhar por dentro.

    — Por que a gente sempre acaba passando pela alfaiataria do Monsieur Ossain no começo dos nossos encontros? Você já reparou nisso? — perguntei. — Ele é algum tipo de… cupido?

    Ela riu.

    — Você acha mesmo que Monsieur Ossain é só um alfaiate?

    — Estou começando a duvidar disso — comentei. — Ele sempre aparece do nada, entrega a roupa perfeita, como se já soubesse o que vai acontecer. E ainda chama a gente de “meu casal”. Isso não é normal.

    — Ele tem milhares de anos — disse ela, recostando-se na cadeira. — Quando era nova, ouvi boatos de que Ossain costurava os fios do destino. Que, se você usasse uma roupa feita por ele, o que quer que estivesse destinado a acontecer… aconteceria com mais estilo.

    — Isso é incrível. Mas ainda não responde se ele é um cupido.

    — Hades… — ela se inclinou para frente, com um sorriso misterioso. — Em todos os nossos encontros, desde o primeiro até agora, você percebeu que, depois de vestir uma roupa feita por ele, algo marcante sempre acontece?

    Pensei por um instante.

    — Na primeira vez foi nosso passeio pelo teatro encantado. Depois, o barco pelos canais das almas. E agora… isso.

    Ela apontou em volta, com a taça em mãos.

    — Um jantar à luz de velas num restaurante comandado por esqueletos encantados, ao som de um violino fantasmagórico. — Ela ergueu as sobrancelhas. — É ou não é digno de um cupido necromante?

    Ri, sacudindo a cabeça.

    — Não duvido que ele seja o cupido do Submundo.

    Ela olhou para mim, os olhos vermelhos suaves e sinceros.

    — Talvez ele só saiba reconhecer duas pessoas que não nasceram para viver separadas.

    Naquele instante, o esqueleto no palco começou a tocar. Uma melodia lenta, cheia de saudade e ternura. Como se o próprio restaurante sentisse que algo estava nascendo ali, na troca de olhares, no silêncio confortável, no riso contido.

    A música nos envolveu. E por alguns instantes, ninguém falou. Não precisávamos. A conversa mais importante da noite já estava acontecendo no modo como ela segurava minha mão sobre a mesa. Como se dissesse: estou aqui. E não vou a lugar nenhum.

    Levantei-me devagar, sentindo o peso do momento se aproximar como o som grave de um tambor distante. Segurei minha taça e bati nela com o talher, três vezes. O som agudo cortou o ar encantado do restaurante, silenciando o violino no palco, capturando os olhares das dezenas de esqueletos e mais importante, o dela.

    Todos os olhos mágicos, vazios ou encantados, se voltaram para mim.

    — Atenção — disse, a voz firme, clara. — Tenho algo a dizer.

    Pers me olhava sem piscar, olhos vermelhos fixos em mim com uma centelha de dúvida e surpresa. Estendi a mão e, com um passo, me ajoelhei diante dela.

    Na palma da minha mão, a luz do restaurante refletia um anel. Feito de ouro puro, forjado com magia. Criado com a técnica que pedi a Oliver me ensinar, ainda antes da última semana. Um círculo perfeito, com pequenas linhas que lembravam as raízes de uma árvore e o brilho de uma alma.

    — Perséfone. — Meu tom era calmo, sem floreios. Sem poesia. Apenas a verdade. — Quer namorar comigo?

    Ela ficou imóvel por um segundo. Depois, respirou como se não esperasse o próprio coração bater tão rápido. O silêncio do restaurante só aumentava a tensão do momento.

    Ela estendeu a mão.

    — Sim — respondeu, a voz embargada. — Mas… — os olhos fixos nos meus — será que eu mereço tanta felicidade?

    Levantei-me devagar e segurei sua mão com firmeza.

    — Não sei se o mundo vai merecer. — Coloquei o anel em seu dedo. — Mas eu prometo: vou te fazer feliz. Mesmo que, para isso, eu tenha que matar todos os deuses deste universo.

    Não havia risos. Só a força crua de uma promessa feita diante do mundo e do além. O silêncio respeitoso que veio depois, como se até os mortos entendessem que testemunhavam algo maior que a eternidade.

    — Agora que estamos namorando… — disse Pers com um sorriso tímido, os olhos semicerrados e curiosos. — Qual o próximo passo, amor?

    Havia uma doçura nova naquela palavra. Amor. Ela a pronunciou como se experimentasse um vinho raro, uma pérola em sua língua. Um nome que antes era só uma ideia e agora era real.

    Meu coração respondeu antes da minha mente. Peguei sua mão, envolvendo seus dedos com os meus, com a firmeza de quem segura o que não quer perder.

    — Se lembra quando Oliver falou sobre as danças da Cidade de Valéria, amor? — repeti a palavra como ela, com reverência e leveza. — Você parecia curiosa. Então é isso que faremos agora.

    Os olhos dela brilharam.

    Dei um passo para trás, ainda segurando sua mão, e a conduzi comigo. Saímos do restaurante envoltos em uma aura de expectativa. Os esqueletos nos desejaram sorte com acenos silenciosos e um violino continuou tocando à distância, como se a própria noite soubesse o que estávamos prestes a viver.

    Ao ar livre, a vila dos mortos estava estranhamente viva. As lamparinas flutuantes dançavam no vento. As casas feitas de ossos e sombra pareciam rir, como cúmplices de uma travessura romântica. Mas era mais do que isso. Era uma celebração.

    As ruas estavam desertas, mas o som distante de uma música começou a ecoar, como se Valéria enviasse seu espírito até ali, como se as canções do Festival do Vento Livre atravessassem os planos e chegassem até nós.

    As pedras da rua se aqueceram, o ar ganhou perfume de lavanda e vinho escuro, e o céu, um roxo profundo, se abriu em estrelas que giravam devagar, como se dançassem também.

    Eu a puxei para mais perto, uma mão em sua cintura, a outra ainda segurando a sua. Ela riu, surpresa.

    — Você sabe dançar, Hades?

    — Aprendi com fantasmas, esqueceu? Eles são excelentes dançarinos.

    E então começamos.

    Não era uma dança ensaiada. Não uma valsa nobre ou uma dança popular. Algo entre os dois. Um movimento fluido, como se nossos corpos estivessem apenas lembrando passos que nunca aprendemos.

    Como se fôssemos feitos para isso, para girar um em torno do outro sob as estrelas, no centro de um mundo que só existia porque estávamos nele.

    Os pés dela deslizavam com graça quase sobrenatural, o vestido preto e roxo girando como névoa colorida. Eu a girava com cuidado, com paixão, e a puxava de volta com segurança. Cada toque, cada olhar, cada passo era uma confissão silenciosa: você é minha. Eu sou seu.

    O tempo se dissolveu ali. Como se aquele instante estivesse suspenso fora da história, longe das guerras, longe das dores, longe até das divindades. Apenas dois amantes, dançando num mundo que aceitaram construir juntos.

    A música aumentava no fundo, invisível, feita talvez da própria magia que fluía entre nós. Os olhos de Pers estavam marejados quando ela se aproximou e descansou a testa na minha, ofegante e feliz.

    — Isso é… — sussurrou ela. — Isso é tudo.

    — E ainda é só o começo. — respondi, com um sorriso que eu não sabia que existia em mim até aquele momento.

    Dancei novamente, desta vez mais próximos. O tempo parou. O mundo também. E naquele instante, entendi o que significava amar uma Deusa.

    Significava dançar. Mesmo que o chão sob os pés não existisse mais. Significava cair e saber que ela me seguraria. Significava chamá-la de amor… e sentir que o universo inteiro me respondia de volta.

    Ainda entrelaçados, com a respiração ofegante e os corpos colados como se o universo tivesse decidido que não deveríamos mais nos separar, nossos olhos se encontraram.

    Havia silêncio.

    Mas não o silêncio vazio de ausência, e sim aquele que precede um acontecimento sagrado. Como se o tempo prendesse o fôlego. Como se as estrelas, em sua coreografia eterna, parassem apenas para nos observar.

    Os dedos de Perséfone estavam enlaçados na minha nuca, os meus pousavam firmes em sua cintura. O mundo havia se tornado pequeno. Só existia ela. Só existia eu.

    E então, como se nossos corpos soubessem o que fazer antes mesmo da alma pedir permissão, nos aproximamos devagar. Nossas bocas se encontraram pela segunda vez.

    Mas dessa vez foi diferente. Foi mais doce. Tinha gosto de chocolate derretido ao sol. De vinho aquecido em noite de tempestade. Tinha o gosto da primeira risada compartilhada no escuro, da promessa silenciosa de que a solidão havia acabado. 

    Tinha o gosto da eternidade dita sem palavras, e da paixão escondida em cada batida de coração que gritava: é você.

    Nossos lábios se moldaram como se nunca tivessem pertencido a outro lugar. E havia ali calor, ternura, e uma pequena explosão de algo que eu não tinha como nomear, mas que reconheci na ponta da língua.

    Amor.

    Era amor.

    Não o amor idealizado das tragédias e nem o amor pesado das guerras. Era o amor simples, silencioso, aquele que se eterniza num beijo. Era um pacto. Uma oração feita com a boca, selada com suspiros.

    Ela sorriu contra meus lábios.

    E eu soube com uma certeza que nem mesmo deuses poderiam tirar de mim: que eu viveria mil vidas se cada uma delas me levasse de volta àquele instante. Àquela dança. Àquele beijo. Àquela deusa. À minha deusa.

    Sentamos lado a lado na colina, ainda sentindo o calor suave da dança recente em nossas peles. O céu tingia-se de tons rosados e dourados, e a vila dos esqueletos lá embaixo ganhava contornos nostálgicos sob a luz nascente.

    Nunca tinha reparado nisso antes, mas havia algo naquela vila… no jeito que as sacadas se curvavam, nas janelas de moldura ornamentada, nas pequenas praças de pedra… lembrava muito a França do meu mundo antigo. Talvez fosse só saudade. Ou talvez… uma lembrança distante de quem eu fui um dia.

    Pers encostou a cabeça no meu ombro com aquele jeito sereno e íntimo que só ela tinha. Ficamos um tempo assim, ouvindo os sons do vento e dos primeiros acordes de um esqueleto que arranhava um violino distante como se também estivesse apaixonado.

    Então, sem levantar a cabeça, ela sussurrou com um sorriso na voz:

    — Amor… você está com o livro do Oliver?

    Olhei para ela de canto, surpreso com a pergunta, mas logo sorri.

    — Estou sim… guardado no inventário. Por quê?

    Ela me olhou com aquele brilho travesso nos olhos, o mesmo brilho que me conquistava mais a cada dia.

    — Porque eu estava pensando… devíamos ler um pouco. Vai ver tem alguma tragédia romântica no meio daquilo tudo, com mortes dramáticas e beijos roubados… — disse rindo.

    Ri junto, tirei o tomo imenso do inventário com um gesto, e lá estava ele:

    “Os Anais Dramáticos da História Trágico-Épica do Grandioso Continente de Chaia, como Registrado Pela Caneta Arcana do Último dos von Fell.”

    Abri na primeira página. As letras dançavam no papel como se Oliver as tivesse encantado com uma pitada de teatralidade a mais do que o necessário. Pers deslizou os dedos pelas palavras enquanto lia comigo em voz baixa, e então nos deitamos ali, lado a lado, dividindo as páginas, o silêncio e o amor.

    As letras dançaram com a magia ainda viva de seu autor, e a voz de Oliver tomou o ar com aquele tom teatral e exagerado que ele sempre usava quando queria atenção.

    “Capítulo XXXIV: O dia em que fui confundido com uma divindade da fertilidade anã.”

    Nossos olhos se arregalaram.

    A narração descrevia um Oliver jovem tentando atravessar Kharzak-Tor disfarçado. Usava um manto grosso, mas aparentemente, no meio de um ritual agrícola, os anões viram nele o cumprimento de uma antiga profecia sobre “o homem das sobrancelhas flamejantes que trará fartura às colheitas.”

    Ele tentou argumentar, claro. Tentou fugir. Acabou coroado com um elmo de abóbora e forçado a passar três dias cavando terra com uma pá sagrada… com as próprias mãos.

    Viramos a página.

    “Capítulo XXXV: Como fui preso por invadir o banho termal das magas da Torre Celeste por engano.”

    “Por engano?”, sussurrou Pers com uma sobrancelha arqueada.

    Lá estava ele, descrevendo como confundiu as águas termais com a entrada da biblioteca submersa. Foi recebido com gritos, feitiços e uma explosão que o deixou nu por três cidades.

    As magas exigiram sua execução. O arquimago da torre, no entanto, interveio apenas porque queria saber como ele sobreviveu a um feitiço de petrificação no coração, “aparentemente com muito estilo,” segundo as palavras exatas dele.

    Viramos outra.

    “Capítulo XXXVI: Como perdi um duelo para um pato.”

    A pausa foi longa. Eu e Pers nos olhamos em silêncio antes de cairmos na risada. O pato era mágico. O duelo foi sério. E Oliver perdeu. O pato ainda é considerado um herói nacional em uma ilha remota onde hoje se ergue uma estátua em sua homenagem. Oliver foi banido de lá e chamado de “O Vencido pelo Pato” por décadas.

    Lemos várias histórias de amor, perda, batalhas ferozes e atos inacreditavelmente heroicos. Fechamos o livro, rindo, com lágrimas nos olhos. Eu abracei Pers de lado e ela suspirou, ainda com um sorriso bobo nos lábios.

    — Essa história poderia ter transformado qualquer um num vilão…

    — E mesmo assim… — completei, olhando para o céu que clareava — …agora parece que a gente admira mais ainda aquele velho maluco.

    Ela assentiu e deitou a cabeça em meu peito. O livro descansava entre nós, pulsando uma leve fumaça roxa, como se Oliver ainda nos observasse. Talvez estivesse. Talvez rindo. Ou bufando de indignação.

    Mas sem dúvida, orgulhoso.

    Ela me puxou pela mão com aquele sorriso travesso que só ela sabia dar, o tipo de sorriso que me fazia esquecer que já morri centenas de vezes. Fomos andando pelos campos de girassóis, os caules altos sussurrando segredos enquanto passávamos, como se estivessem cúmplices do que viria. Mais fundo do que jamais fomos.

    E então, ela parou.

    Com um gesto suave da mão, quase como quem espanta um pensamento ou abre um livro antigo, o ar diante de nós se curvou. Uma porta de marfim surgiu do nada. Elegante, com entalhes sutis que lembravam constelações e raízes entrelaçadas. Pers segurou a maçaneta e me olhou com olhos faiscantes.

    — Vem, amor.

    Entramos.

    Era o quarto dela.

    E tudo nele gritava quem ela era. Não como deusa, não como símbolo da morte, mas como pessoa.

    O ar cheirava a ela. Um perfume suave, que misturava algo como jasmim adormecido com poeira de estrelas. Na estante repousava uma escova de cabelo com alguns fios prateados ainda presos entre as cerdas.

    Uma flor ressecada entre páginas de um livro. Tudo organizado, limpo, com a precisão de alguém que conhece o caos, mas escolheu a ordem.

    No centro do quarto, ela puxou uma cadeira. De madeira escura, com estofado roxo e detalhes bordados em prata. Apontou para ela com um gesto suave.

    — Senta aqui, amor.

    Obedeci sem pensar. O coração batia rápido. Algo entre curiosidade, nervosismo e uma excitação tranquila que só Pers conseguia provocar. Ela foi até uma pequena gaveta, retirou uma venda preta de cetim e voltou até mim.

    — Você confia em mim? Coloca isso. — Falou sorrindo.

    — Com tudo o que sou. — Respondi.

    Ajustei a venda sobre os olhos.

    Mas no escuro, eu ainda sentia a presença dela. O calor próximo. Os passos leves. O silêncio cheio de intenções. Algo estava prestes a acontecer. E parte de mim sabia que aquilo não era só mais uma surpresa.

    Senti ela apertar com fitas meus pulsos com um cuidado curioso. Nada agressivo, nada que me lembrasse da dor.

    Ela sentou-se no meu colo com uma delicadeza que me fez esquecer o mundo fora daquela porta de marfim. Seus dedos roçaram meu rosto, e mesmo vendado, eu sentia o calor do seu olhar.

    Seus lábios tocaram os meus. Lentamente. Um beijo molhado, como se quisesse me contar cada segredo que havia guardado desde que começamos a dançar na beira da morte.

    Entre um beijo e outro, sua voz sussurrou perto demais do meu ouvido:

    — Amor… você é masoquista?

    A pergunta me pegou desprevenido, e deixei escapar um riso leve.

    — Não — respondi, com a respiração entrecortada.

    Ela se aproximou mais. Seu corpo encostado ao meu, sua mão deslizando pelo meu pescoço.

    — Então você odeia a dor?

    — Também não.

    — Então por que continua?

    Tentei responder, mas o beijo me impediu. Ela me calou com os lábios. Um toque quente, apaixonado, quase faminto e sem pressa. Como se tivesse todo o tempo do mundo para explorar cada silêncio entre nós.

    Beijava-me como quem guarda uma estrela. Como quem segura um coração sem medo de se ferir.

    E mesmo vendado, amarrado, imerso naquela entrega que era mais do que física, entendi: eu não sorria porque gostava da dor. Eu sorria porque havia encontrado um motivo para voltar.

    Ela. Meu amor.

    E enquanto me beijava de novo, senti que nenhuma morte jamais se compararia à vida que existia entre os braços dela.

    Então ela tirou a venda devagar, como quem desvela um segredo antigo. A luz suave do quarto voltou aos poucos aos meus olhos, e o primeiro rosto que vi foi o dela completamente entregue.

    As bochechas coradas, os olhos meio cerrados, a respiração descompassada, os lábios entreabertos ainda colados nos meus. Havia um brilho nos olhos dela, algo entre êxtase e encantamento, uma vulnerabilidade tão rara em alguém como Perséfone… e ainda assim tão bonita.

    Ela continuava me beijando, como se não houvesse mundo. Como se tudo que ela precisasse estivesse ali, entre nossas bocas. Mas eu via que ela estava aproveitando aquilo mais do que eu.

    Seu corpo colado ao meu, os dedos apertando de leve meu ombro, o jeito como se encaixava com tamanha vontade, como se eu fosse dela desde o princípio dos tempos.

    Então sorri entre um beijo e outro, arqueei a sobrancelha e provoquei com a voz baixa, ainda ofegante:

    — Parece que a masoquista aqui é você, amor…

    Ela parou por um segundo, como se processasse a ousadia da frase. Depois mordeu de leve meu lábio inferior, e um sorriso diabólico nasceu nos seus.

    — Cuidado com as palavras, amor… — murmurou perto demais do meu pescoço — Ou posso te mostrar o quão perigoso é amar uma deusa da morte.

    E voltou a me beijar com ainda mais intensidade, rindo baixinho entre os toques. Naquele momento, eu teria deixado ela me matar cem vezes, só pra viver aquele instante de novo.

    Com um movimento rápido e preciso, desfiz o nó que prendia meus pulsos. Pers arqueou uma sobrancelha, surpresa, mas não resistiu quando a ergui com facilidade no colo. Continuamos nos beijando, seus braços se enlaçando ao redor do meu pescoço, seu corpo leve e quente.

    O caminhar suave virou impulso. A joguei sobre a cama com cuidado, mas firmeza, e subi sobre ela. Estava ofegante. Eu também. Nossos olhos falavam mais do que nossos gestos e, por um instante, tudo parecia inevitável.

    Foi quando ela levou os dedos aos meus lábios, num gesto delicado, e sussurrou com uma honestidade que doeu mais do que qualquer feitiço:

    — Embora eu queira muito, amor… nós só faremos isso quando seu treinamento estiver completo.

    O peso daquelas palavras não era um não. Era um ainda não cheio de promessas. E havia ternura demais no jeito como ela me puxou, encaixando meu corpo contra o dela num abraço apertado.

    — Mas dormir de conchinha pode.

    Sorri. Um sorriso sincero, cansado e rendido.

    Me ajeitei com ela nos braços, sentindo seu coração bater firme contra o meu. E ali, nos lençóis perfumados com o cheiro dela, com a lua dançando sobre os campos de girassóis lá fora, adormecemos juntos. Não como guerreiros ou deuses. Apenas como dois que se amam.

    Acordamos com o suave murmúrio do vento atravessando os campos de girassóis, aquele som que parecia cantar canções antigas só compreendidas por almas que já morreram e voltaram. O sol filtrava-se pelas frestas da porta de marfim, lançando luz dourada sobre a pele de Pers.

    Por um instante, pensei em fingir que ainda dormia só para continuar vendo-a naquele estado sereno, cabelos espalhados, os olhos ainda meio fechados, e aquele meio sorriso que só ela sabia dar.

    Mas ela se espreguiçou com a graça de uma deusa e logo me puxou pela mão, como sempre fazia, me arrastando de volta ao fluxo inevitável do mundo.

    Vestimo-nos em silêncio. Ela colocou um vestido escuro com detalhes roxos, seu toque de realeza silenciosa. Eu vesti a mesma roupa elegante de sempre, mas agora o anel em seu dedo parecia brilhar mais do que qualquer joia.

    De mãos dadas, deixamos os campos.

    A brisa carregava o perfume das flores e o som longínquo dos esqueletos que acordavam para mais um dia de “vida”. O céu, naquele tom quase violáceo que precedia a alvorada, parecia saber que algo estava mudando. Porque estava.

    Caminhávamos não apenas para longe da casa de Pers, mas rumo ao próximo passo. O próximo mestre. A próxima lição. E, inevitavelmente, para mais perto do destino que parecia querer engolir Chaia inteira.

    — Pronto, amor? — ela perguntou, entrelaçando os dedos nos meus.

    — Desde que voltei à vida, estou me preparando pra isso — respondi.

    Com passos firmes e corações entrelaçados, deixamos o quarto dela para trás. A estrada nos aguardava. E com ela, um novo capítulo.

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