Os dias se desfaziam, estilhaços de um tempo que se recusava a deixar de ferir.

    Toda manhã, ou o que fosse o tempo naquele lugar, eu retornava. Morria. Retornava. E com o passar das horas, não era mais estranho.

    Voltar já não era apenas um presente ou uma segunda chance. Era uma necessidade. Como respirar, como fechar os olhos por um segundo e sentir que algo dentro de mim estava no lugar.

    Isso me assustava.

    Eu caía de novo sob o punho de Maximus. De novo o estalo dos ossos. De novo a visão se apagava. De novo eu me via entre o vazio e uma luz sem nome.

    E de novo eu sorria.

    Eu não lutava apenas para vencer. Não voltava apenas por orgulho.

    A morte me completava.

    Ela entrava em mim como um vinho amargo e antigo. Como o abraço de algo que eu passara a vida inteira evitando e agora aceitava.

    Foi numa dessas mortes que voltei, rindo sozinho, os olhos úmidos.

    Pers me olhava de longe, os braços cruzados, a testa franzida. Maximus riu como se visse a aurora nascer no meio da guerra.

    — Você está rindo — ela disse, a voz quase inaudível.

    — Eu… estou feliz, amor — respondi, os dedos apertando o peito. — Não sei por quê. Talvez por ter voltado. Talvez por ter morrido de novo.

    — Você sabe que isso não é normal, né?

    Eu sabia. Eu sabia muito bem.

    A alegria que me invadia a cada morte me preenchia como se eu estivesse reencontrando uma parte de mim há muito perdida. Naquele espaço entre a vida e o fim, minha alma finalmente parecia respirar. A pergunta me assaltava: eu estava enlouquecendo? Ou a morte só estava me mostrando quem eu realmente era?

    Minha luta já não era descontrolada. Era uma força antiga, afiada. Eu me movia como uma criatura nascida apenas para matar. Meus músculos não hesitavam. Cada passo era uma dança cortando o ar, cada soco uma oração da carne.

    Eu era o ciclo: nascia em cada golpe, morria em cada queda, e voltava mais forte. Meu corpo inteiro fora forjado para um único propósito: matar sem ódio, matar sem medo. Matar como a lua eclipsa o sol: inevitável, silencioso e belo.

    Meus pés tinham a cadência de uma marcha silenciosa, meus punhos o peso de um soco abafado, e meus olhos ganharam uma clareza. Não de luz, mas de propósito. Maximus me observava e eu sabia que ele entendia. Ele via em mim o que ele havia sido um dia: um imperador entre os cadáveres, um homem que enxergava vida na guerra.

    Eu renascia mais forte, mais letal, mais próximo do que nasci para ser: o apóstolo da morte. A ponta da foice que cortaria o destino. Minha personalidade mudava, não como uma perda, mas como a abertura dos olhos pela primeira vez. O riso fácil, a hesitação. Tudo se dissolvia. Matar se tornava tão natural quanto respirar.

    Eu já não via Maximus como um mestre, mas como um obstáculo. Ele era o martelo que forjaria meu espírito. Para superá-lo, eu teria que me destruir por dentro. Refinar cada pensamento. Apagar o que fosse humano e manter apenas o que servisse a ela.

    A ela. Perséfone. Minha deusa, minha causa, minha amante, minha morte.

    Eu precisava ser o reflexo da vontade dela, uma lâmina em suas mãos. Um olhar que não oferece julgamento nem misericórdia, só o fim. Eu me tornava um ser que matava com um suspiro. Com um sussurro. Com um simples olhar.

    Em transe, a areia da arena subia como poeira sagrada. Meus socos abriam crateras, e o Coliseu estremecia. Meus olhos ardiam de uma ausência, como se eu estivesse vazio, mas preenchido por algo que não era mais eu. A luta era selvagem. Maximus ria. Eu, uma besta sagrada, rasgava o mundo em nome de um nome. “Por ela”, eu repetia em pensamento, como uma oração suja de sangue.

    Foi então que a vi. Ela desceu os degraus do trono. Os girassóis dos corredores pareciam secar à medida que ela passava.

    A morte caminhava entre os vivos. Perséfone.

    Ela entrou na arena sem dizer uma palavra.

    Eu não parei.

    A morte não para.

    — Amor… — ela chamou. A voz cortou o campo. Um sopro de inverno.

    Ignorei.

    Meus punhos estavam cerrados demais. Minha mente longe demais.

    — AMOR! — ela gritou, mais alto. Eu travei.

    Me virei, ofegando. Minha pele estava coberta de suor e mana negra.

    — Eu estou fazendo isso por você! — respondi. A voz estava rouca, esgarçada. — Por nós. Por tudo!

    E então…

    Veio o tapa.

    Não foi forte.

    Não quebrou ossos.

    Não me lançou contra a parede.

    Mas algo dentro de mim se quebrou.

    Minhas pernas fraquejaram.

    Meus olhos se abriram como se eu tivesse acabado de acordar.

    E lá estava ela, chorando.

    — Não vale a pena, amor — ela disse. Os olhos estavam cheios. — Não vale… se eu te perder no processo.

    Ela estendeu a mão. Tocou meu rosto que sangrava e tremia.

    — Eu te amo.

    As palavras atravessaram a barreira de morte que eu mesmo havia construído ao meu redor.

    Foram como flores brotando em um campo queimado.

    Como luz filtrando-se pelas rachaduras de uma caverna esquecida.

    Eu caí de joelhos.

    Não por fraqueza.

    Por rendição.

    Segurei a mão dela com as duas minhas. Era como segurar uma âncora no meio do caos.

    — Me perdoa, amor — sussurrei. — Eu… não queria te assustar.

    Ela se agachou e encostou a testa na minha.

    — Eu só quero você. Inteiro. Vivo. Aqui. — A voz dela era um sussurro entre os mundos.

    Maximus cruzou os braços e resmungou algo como “sentimentalismos”. Mas havia um leve sorriso de respeito no canto dos lábios do velho imperador.

    Naquele momento, pela primeira vez desde que o treinamento começou, eu não senti vontade de morrer.

    Só de viver.

    Com ela.

    Maximus se aproximou devagar. O manto imperial ondulava a cada passo como brasas acesas. O coliseu estava em silêncio. Ele parou diante de nós. Os olhos fixos nos meus. Falou com uma voz que soava mais como um trovão contido. Era pesada, grave e surpreendentemente suave.

    — Ter alguém para se apoiar… é mais importante do que se pensa, garoto.

    Ele fez uma pausa breve, por respeito.

    — Minha esposa, Ana Júlia… — disse, e o tom de sua voz mudou. Uma nostalgia quente percorreu suas palavras. — Era uma política gênio. Fazia diplomatas do mundo inteiro se ajoelharem com uma meia frase e um levantar de sobrancelhas.

    Pers se levantou ao meu lado, agora em silêncio, observando-o com atenção. O nome de Ana Júlia parecia ecoar dentro dela também.

    — E era a mulher mais bela que já pisou nesse continente — completou Maximus. A voz tinha a autoridade de quem sabia que sua palavra ainda moldava lendas mesmo após a morte. — Eu, na minha juventude, queimaria reinos inteiros por ela… e queimei.

    Ele encarou o céu sem nuvens acima da arena. Era como se a visão do passado ainda estivesse ali, dançando entre as estrelas.

    — Mas o que ela mais gostava… não era do imperador. Nem do matador de dragões. Nem do general que dobrava reis como dobrava mapas. — Ele olhou para mim. — Ela amava o homem por trás de tudo. O idiota que ria alto demais, que dançava mal, que esquecia o nome de ministros, mas lembrava de comprar as flores favoritas dela toda primavera.

    Ele fez uma pausa. Deu um leve sorriso, quase imperceptível.

    — Nunca se esqueça disso, Hades. Se for para queimar mundos, que seja por ela. Mas só se ela quiser mesmo ver fogo. Às vezes, elas só querem que a gente volte para casa. Inteiro. Com um sorriso bobo no rosto.

    Ele virou de costas e caminhou alguns passos.

    — E quando encontrar alguém que te aceite até nos teus dias sombrios, quando você estiver quebrado e irreconhecível… segure firme. Isso é mais raro que qualquer dragão.

    Silêncio.

    Eu respirei fundo.

    Pers apertou minha mão.

    E por um instante… todos os títulos, os graus de pureza, as mortes, os feitos, os feitiços…

    Tudo pareceu pequeno diante daquele momento simples.

    Maximus havia mostrado que mesmo os monstros e imperadores amam. E são amados.

    Com a cabeça no lugar, algo mudou em mim.

    Não foi um estalo mágico. Nem uma nova habilidade. Nem um feitiço secreto sussurrado por deuses antigos. Foi experiência. Um instinto refinado até virar aço. Olhei ao redor da arena. Era a mesma onde morri incontáveis vezes, onde meu sangue já se tornara parte do solo. E percebi que ela parecia menor, mais estreita. Não em tamanho, mas em propósito.

    Era como se os caminhos invisíveis que eu percorria antes estivessem mais claros agora.

    Menos voltas, menos desvios.

    Meu corpo se movia de forma mais natural, como se cada passo já soubesse para onde ir antes mesmo de eu ordenar.

    Aquela era a dança de um guerreiro que dançou demais com a morte.

    Eu me movia sem pensar. Não por reflexo, mas por compreensão.

    Cada soco de Maximus já não era um castigo, mas um compasso.

    Cada esquiva minha era medida, precisa.

    Meus braços não voavam cegamente. Eles desenhavam trajetórias com propósito.

    Era como se finalmente meus músculos entendessem que lutar não era um ato de fúria.

    Era linguagem.

    Os passos largos e barulhentos de outrora haviam se tornado leves, silenciosos, certeiros.

    Cortar o ar. Desviar. Contra-atacar.

    Pisar com o pé esquerdo meio segundo antes.

    Inclinar o tronco dois centímetros para dentro.

    Rotacionar os quadris. Não os ombros.

    Era como se a arena fosse um campo de possibilidades, e eu agora enxergasse as respostas corretas que antes passavam despercebidas.

    Pela primeira vez em todas aquelas mortes… Maximus sorriu antes de atacar.

    Ele também percebeu.

    Eu não estava apenas sobrevivendo.

    Eu estava entendendo.

    E naquele instante, tudo dentro de mim dizia: “Continue.”

    No intervalo da luta, ainda ofegando e com os punhos em brasa, vi Pers descer os degraus do trono imperial. O coliseu inteiro pareceu silenciar. O sol atravessava os arcos de pedra e se derramava sobre os cabelos prateados dela. Eles dançavam com a brisa quente como se o próprio mundo a reverenciasse.

    Ela não disse nada de imediato. Apenas me ofereceu um copo de água, fresco como a sombra sob uma árvore antiga. Aceitei com um sorriso cansado, bebi em goles curtos. Quando olhei para ela, os olhos dela estavam lá. Firmes, mas suaves. Como se estivessem carregando o mundo e, ainda assim, olhassem só para mim.

    — Amor… como você conseguiu se ressuscitar? — ela perguntou. A voz estava baixa, quase como quem teme a resposta.

    Abaixei o olhar por um instante, recordando o mar escuro, o vazio, o fio vermelho que brilhava como sangue sagrado cortando as trevas. Suspirei.

    — Eu vi um fio. Vermelho. Saía do meu peito e ia em direção a uma luz… E eu puxei. — Levantei os olhos e encarei os dela. — Eu me mantive consciente mesmo depois da morte. Como se minha alma tivesse aprendido o caminho de volta… sozinha.

    Ela ficou em silêncio. Seus olhos brilharam. Mas havia algo mais, uma pontinha de melancolia.

    — Você não precisa mais de mim para voltar — ela murmurou. — Eu… sinto falta de quando deitava no meu colo. De ouvir sua respiração mudando quando acordava…

    Toquei a mão dela, firme.

    — Amor, você me trouxe de volta tantas vezes… — sorri. Sem dor, apenas com ternura. — Agora é minha vez de ficar ao seu lado. Eu adoraria dormir todo dia contigo. Acordar ali, com a sua mão no meu cabelo… isso nunca foi sobre voltar da morte. Sempre foi sobre voltar para você.

    Ela desviou o olhar por um segundo. Os cílios longos esconderam as lágrimas que estavam prestes a cair. Mas eu vi. Ela sentia cada palavra.

    Com um passo lento, ela se aproximou mais. Pousou a cabeça no meu ombro e sussurrou:

    — Então prometa que nunca mais vai morrer longe de mim.

    Eu fechei os olhos.

    — Prometo.

    Maximus se aproximou. Seus passos ecoavam com a solenidade de um julgamento divino. Mesmo sem armadura, mesmo sem coroa, ele caminhava como quem ainda carregava um império nos ombros.

    Parou diante de mim e da deusa, cruzando os braços. Seu olhar não era de escárnio. Era respeito. Puro. O tipo de respeito que só um imperador dá a outro guerreiro.

    — Ouvi pelo Oliver — ele começou. A voz grave, como trovão no horizonte. — Que você, em sua vida passada, era um general. Um líder de homens. Um símbolo de resistência.

    Fiquei em silêncio. Pers também. A fala dele era solene demais para ser interrompida.

    — Disseram que lutava contra uma escória. Um império podre que usava raça como justificativa. Mesmo com menos tecnologia, com menos soldados, mesmo sem chances reais de vitória… você escolheu resistir.

    Ele se aproximou um passo. Os olhos ardiam.

    — Isso… isso é o que separa homens de bestas. — Abaixou o tom, como se falasse comigo e apenas comigo. — Estar do lado certo mesmo quando o mundo inteiro caminha na direção oposta. Ser a faísca em meio à escuridão. Isso é o que define um guerreiro. Não força. Não poder. Mas convicção.

    Meu punho, ainda latejando da luta, se fechou. Não por raiva. Algo em mim queimava com aquelas palavras.

    — Você perdeu. Perdeu amigos, perdeu família. Perdeu batalhas. Mas nunca perdeu a honra. E por isso… — ele apontou o indicador, direto para meu peito. — Você é digno de lutar ao lado de deuses. E talvez… de se tornar algo além deles.

    Engoli em seco. A presença dele era avassaladora, mas não esmagadora. Era como estar diante de uma montanha viva que reconhecia minha força e me desafiava a escalar mais alto.

    Pers sorriu ao meu lado. Um sorriso pequeno, carregado de orgulho.

    — Continue, Hades. — Maximus concluiu, girando nos calcanhares. — O mundo não precisa de mais heróis. Precisa de homens que não dobram os joelhos quando os deuses exigem.

    Ele se afastou, deixando no ar a marca de suas palavras, como brasas flutuando no ar.

    Os dias iam passando. Com um objetivo claro em mente, tudo começou a se encaixar.

    O corpo respondia melhor. Os golpes fluíam com mais propósito. Eu respirava com mais consciência, como se até o ar obedecesse meu ritmo. Não era mais apenas treino. Era lapidação. Afiamento. Como se o próprio universo estivesse me preparando para algo que ia além do simples aprendizado.

    Maximus percebeu.

    E, ao perceber, sorriu.

    Um dia, sem aviso, antes mesmo de o sol erguer-se sobre as colunas imponentes do coliseu, ele me chamou ao centro da arena.

    — A partir de hoje, isso será apenas o aquecimento. — a voz firme.

    Ele apontou com o queixo para as muralhas douradas, erguidas como titãs ao redor.

    — Duzentas voltas. Correndo.

    Franzi a testa.

    — Isso tudo?

    Ele ergueu uma sobrancelha. A boca formou um meio sorriso.

    — Duas. Centenas. Amor.

    Pers deu um risinho contido do trono. Maximus continuou:

    — Depois disso… quinhentas flexões. Sem trapaças. Se dobrar os joelhos, começa de novo. E trezentos agachamentos. Rápidos. Controlados. Respiração ritmada.

    — E o treino de verdade? — perguntei. Já massageava o ombro em antecipação.

    Ele estalou os dedos. Uma labareda vermelha envolveu a mão dele até o cotovelo. Os olhos faiscavam.

    — Depois disso, é que a gente começa a brincar.

    Os primeiros dias foram um martírio. Vomitei após a volta número cento e quarenta. Caí no chão depois da centésima flexão. Desabei após os primeiros cem agachamentos. Maximus me fez começar do zero.

    Não por crueldade.

    Mas porque ele via algo em mim que eu ainda não via completamente. Algo que me conectava ao trono da morte… e talvez, um dia, ao trono dos céus.

    O suor virou rotina. A dor, companheira. E, estranhamente, tudo parecia mais leve.

    Eu tinha um propósito. Uma promessa. Uma deusa que me amava. Um nome que precisava honrar. O coliseu que antes me esmagava agora parecia ser o berço da minha ascensão.

    Com cada flexão, eu erguia não só meu corpo, mas meu espírito.

    Com cada agachamento, enterrava um pedaço do humano que eu fora.

    E com cada volta, eu corria rumo ao impossível.

    Maximus avançava como uma tempestade contida. Os pés mal tocavam a areia da arena, os punhos flamejavam em um vermelho mais antigo que o próprio fogo. E os olhos dele analisavam tudo. Cada inclinação do meu quadril. Cada oscilação do meu ombro. Cada sutil trincar de dentes. Ele era um predador. Eu era um aluno ainda longe de morder o rastro que ele deixava.

    — Vamos lá, amor. — ele provocou, imitando o jeito carinhoso de Pers. — Mostre o que aprendeu em sua vidinha passada.

    Avancei com um direto de esquerda, seguido de um cruzado. Tentei uma rasteira. Ele desviou como se fosse feito de névoa. Contornou meu golpe e bateu levemente com o punho fechado no centro do meu peito. Não doeu. Mas a vergonha queimou.

    — Mais baixo com os quadris. — disse ele. — Está perdendo força na base. Quer derrubar um imperador com joelhos moles?

    Recuei. Inspirei. Lembrei. Eu já tivera treinamento militar em minha outra vida. Já liderara pelotões em emboscadas. Já segurei o fôlego entre ruínas esperando o momento certo de disparar. Mas ali, a guerra era outra. Maximus era um exército sozinho.

    Ele girou no ar com uma pirueta. Desferiu um chute lateral que só não me atingiu porque rolei para o lado.

    — Esse movimento é da Legião Carmesim. Eu mesmo o desenvolvi para quebrar escudos de adamantina. — falou enquanto pousava. — Você é um general, não é? Aprenda com isso. Soldado inteligente estuda o inimigo enquanto apanha dele.

    Levantei. Adotei uma postura de boxe. Testei o peso do meu corpo nos calcanhares. Maximus ergueu uma sobrancelha.

    — Hmmm… pugilismo? Uma boa base. Mas ainda está pensando como um soldado humano. Você quer ser um deus. Os deuses não recuam. Eles colapsam o mundo ao redor.

    Avancei com uma sequência mais rápida: dois jabs no rosto, passo lateral, gancho no fígado. Ele deu um giro para trás e me desferiu um contragolpe com o cotovelo. Bloqueei, mas o impacto me fez recuar. Na Terra, aquele seria um golpe fatal. Aqui… era só uma terça-feira comum.

    — Melhor. Muito melhor. — ele comentou, limpando a areia do ombro. — Agora me ouça com atenção. Três princípios marciais para quem quer matar dragões e deuses:

    Ele veio andando em minha direção. Cada palavra era marcada por uma batida do coração.

    — Primeiro: ataque com intenção. Não com medo. Quem hesita, morre.

    Disparei na direção dele, tentando uma joelhada. Ele segurou meu joelho com uma mão só e me girou no ar, jogando-me de volta no chão.

    — Segundo: use o ambiente. Areia cansa as pernas. O vento distorce a percepção. Luz engana os olhos. O mundo é sua arma.

    Levantei, ofegante. O peito queimava.

    — Terceiro… — ele fez uma pausa e apontou para minha testa. — …mantenha os olhos no espírito do inimigo, não nos punhos. Os golpes vêm depois. A decisão de te matar já foi tomada antes deles.

    Fechei os olhos. Respirei. Me concentrei.

    Eu era um soldado. Ele era uma tempestade.

    Mas mesmo assim… eu sentia que estava cada vez mais próximo de acertar o raio.

    Só não hoje.

    Maximus rosnou um sorriso. Era um meio-sorriso feito de granito e sangue de guerra. Ele se afastou três passos e cruzou os braços, me dando tempo de levantar. O gesto não era bondade. Era provocação.

    — Está vivo. De novo. — disse. — Está mais resistente do que a maioria dos nobres que choravam só de ver o campo de batalha. Mas isso não é nem o começo, amor. Vamos. Me dê algo para lembrar.

    Me reposicionei. Ombros relaxados. Joelhos levemente dobrados. O peso nos calcanhares. O olhar fixo no dele, como ele dissera. O espírito. Eu buscava o espírito em seus olhos. Mas tudo o que via era um oceano de vitórias.

    — Respira comigo, amor. — murmurei para mim mesmo, sentindo o calor da voz de Pers. — Você é a morte. Mas a morte é amor. E amor é luta.

    Avancei.

    Não como antes.

    Desta vez, a intenção era pura. Um soco direto, seco, sem adorno. Ele desviou com um giro suave. Antes que eu pudesse reagir, o joelho dele estava prestes a me encontrar no estômago. Lembrei do segundo princípio: use o ambiente. Rolei com a queda, levei areia nos dedos e joguei no rosto dele.

    Ele sorriu enquanto limpava os olhos. Ainda não me acertara, mas eu também ainda não havia tocado nele.

    — Agora sim. Isso foi sujo. — disse, satisfeito. — Eu treinei assassinos que teriam orgulho disso.

    Atacou com um cruzado violento. Bloqueei com os dois antebraços cruzados. A força ainda me empurrou para trás. Mas desta vez eu estava pronto. Girei com o recuo e fui para cima com um chute baixo, tentando desequilibrá-lo.

    Nada.

    Ele deu um passo para o lado como quem dança, e antes que eu percebesse, meu rosto estava encostando na parede da arquibancada novamente.

    Eu não morri. Mas por pouco.

    Caído no chão, tossindo sangue, ri. Ri como um louco.

    — Qual a graça? — Maximus perguntou, caminhando de volta para o centro da arena.

    — A graça, — disse com os dentes sujos de terra — é que mesmo apanhando, eu não quero parar. Porque eu estou entendendo. Um pouco de cada vez. Como se meu corpo estivesse aprendendo à força.

    Ele olhou para mim por um instante longo. O céu acima parecia se curvar sob a autoridade daquele silêncio. Ele estalou os dedos. A aura de cancelamento de mana se desfez.

    — Não chegou a hora de você me acertar ainda. Mas chegou a hora de você aprender algo novo.

    Me levantei, cambaleante. Curioso.

    — Hoje você aprende a usar aura — disse ele. — Técnicas de combate gravadas na alma. Cada golpe é uma sentença de morte. E cada morte, uma oração à sua deusa.

    Seus punhos se incendiaram de novo. Não com magia. Com fé. Era isso. Ele não usava apenas força. Ele usava a devoção à morte como uma arma. Assim como eu.

    — Prepare-se, amor. — disse Maximus, com uma reverência debochada. — Porque agora… agora é a parte divertida.

    E nós nos lançamos de novo um contra o outro, como se o mundo tivesse esquecido o que era paz.

    As chamas dançavam nos punhos de Maximus como se o próprio sol tivesse decidido residir ali. Mas não era magia. Eu sentia isso com clareza. Não era como a mana densa que circulava pelas veias do mundo. Era algo mais cru. Mais íntimo. Mais… humano.

    — Espera. — murmurei, recuando com um salto. O corpo ainda latejava da última troca. — O Campo Nulo ainda está ativo. Como você está usando isso?

    Maximus não respondeu de imediato. Ele apenas abriu os braços, como se fosse abraçar o céu acima do coliseu. As chamas em seus punhos cresceram, vermelhas como sangue fresco.

    — Isso não é magia, Hades. — disse por fim, com a voz carregada de algo antigo. — É Aura.

    — Aura?

    — A força que vem de dentro, não de fora. Um eco da alma. A chama de um sentimento tão poderoso que não precisa de feitiços para existir. Nem runas. Nem encantamentos. É a verdade do espírito convertida em força. Cada guerreiro verdadeiro tem o potencial de despertar. Poucos conseguem. — ele fechou os punhos devagar. As chamas reagiram como serpentes obedientes. — E quem desperta define sua força por isso.

    Dei um passo à frente, atento.

    — E a sua?

    Maximus sorriu. Não foi o sorriso debochado de sempre. Foi algo reverente.

    — Fé. — disse com orgulho. — Eu tinha doze anos quando fui chamado pela primeira vez. Uma caravana de sacerdotes, todos fiéis à deusa Perséfone, estava sendo atacada por orcs do norte. Os guardas foram massacrados. Eu era só um menino, ajudava carregando água e mantimentos. Mas quando vi o estandarte da deusa manchado de sangue… quando ouvi os gritos daqueles que entoavam seu nome… algo despertou. Algo dentro de mim gritou que eu não aceitaria aquilo.

    As chamas cresceram de novo, quase cegando.

    — Eu peguei uma lança. Nem sabia usar. Mas quando a primeira onda veio, eu não lutei com técnica. Lutei com fé. Cada orc que tombava era uma oração. Cada golpe, uma resposta do além. Quando a caravana olhou para mim, já não era mais um menino. Era um servo da Morte. E minha alma havia se incendiado.

    Engoli em seco.

    Não era sobre poder. Era sobre convicção. A Aura era diferente da mana porque era a expressão absoluta de quem você era. Era o reflexo da sua verdade mais íntima. Um espelho da alma.

    — Desde então, — continuou Maximus, — cada batalha que travei, cada dragão que derrotei, cada território que conquistei… tudo foi com a Aura da Fé. Pela Deusa que fundou o Império que eu jurei proteger.

    Fechei os olhos por um instante, tentando sentir algo em mim. Algum traço de uma emoção tão pura. Amor por Perséfone? Sim. Mas… era isso?

    Maximus viu meu silêncio e riu.

    — Você vai encontrar a sua, amor. Mas saiba: Aura não se aprende. Se desperta. E quando vier, será como nascer de novo.

    Com um novo rugido flamejante, ele correu até mim. Não com a velocidade de um homem. Mas com a força de um ideal.

    Eu levantei os punhos e fui ao seu encontro.

    Se ele era fé encarnada…

    Então o que eu era?

    Talvez eu estivesse prestes a descobrir.

    Continuávamos trocando socos como se o mundo tivesse se resumido àquele coliseu. Punhos cortando o ar, impactos que estremeciam as arquibancadas e o céu carregado que começava a formar nuvens negras.

    A cada golpe, eu sentia algo se formando. Uma inquietação que não vinha da dor, mas da dúvida.

    Qual é o meu norte?

    Meu centro era claro como o luar sobre os campos de girassóis: Perséfone. Minha deusa. Meu amor. Mas o centro não é o mesmo que o norte. O norte guia. O norte é a direção. Perséfone era o lar. Mas o que guiava meus passos desde o momento em que pisei nesse mundo?

    Dois mundos.

    Minha mente voou até a Terra. A trincheira. O sangue. Os gritos. O rosto da minha irmã. O corpo da minha mãe enterrado sob os escombros. O silêncio que se seguiu à morte do meu pai, quando a base caiu.

    Eu renasci. Inúmeras vezes. Em inúmeras mortes. Mas eu nunca deixei de lutar.

    Era isso?

    Maximus avançou com um cruzado feroz. Meu corpo se moveu antes mesmo de pensar. Desviei. Respondi. Um, dois, três socos. Ele bloqueou todos.

    Mas então senti.

    Não era só sobre viver ou morrer.

    Era sobre não permitir que ninguém mais fosse arrancado de si como eu fui. Era sobre não deixar que o mundo tomasse de alguém o que lhe era sagrado. Era sobre proteger. Resguardar. Lutar não por glória, mas por justiça. Pela paz. Pelo direito de viver.

    Pela irmã que morreu com medo.

    Pela mãe que não gritou para não assustar os outros.

    Pelo pai que segurou uma arma até o fim.

    Chamas negras explodiram nos meus punhos. Não eram labaredas comuns. Elas tinham formas. Silhuetas. Lobos de fumaça e fogo rodavam ao redor dos meus braços como se tivessem sido forjados nas entranhas do inferno.

    Senti cada fibra do meu corpo estremecer. Cada osso, músculo e pensamento pulsar com a força de uma verdade finalmente descoberta.

    Meu norte… era proteger a esperança com dentes e garras.

    — Maximus! — gritei, avançando com os punhos envoltos pelas bestas negras.

    Ele sorriu. Um sorriso selvagem, surpreso, quase orgulhoso.

    E então eu acertei.

    Meu punho afundou no peito dele com a força de uma avalanche. Os lobos uivaram. O impacto ressoou. Ele deu um passo para trás, cambaleante.

    Pela primeira vez, Maximus não bloqueou. Nem desviou.

    Os olhos dele estavam arregalados. Surpresos. Como os de uma fera que finalmente encontrou algo digno de respeito.

    O silêncio caiu.

    Ele olhou para o próprio peito. Depois para mim.

    E sorriu. Um sorriso grande, orgulhoso. Como o de um mestre que vê o aluno fazer o impossível.

    Mas ele não disse nada ainda.

    E eu não precisei dizer nada também.

    Eu sabia.

    Eu havia despertado.

    Maximus respirava com força. Os músculos ainda vibravam do impacto do meu soco. O sorriso no rosto era largo demais para alguém que tinha acabado de tomar o primeiro golpe de verdade em eras. Ele me olhava como se estivesse diante de uma aberração magnífica. Um milagre de carne e osso. Um guerreiro que rasgou as expectativas do mundo com as próprias mãos.

    Ele se virou lentamente para Pers, que ainda assistia tudo do trono imperial. Os olhos dela estavam um pouco arregalados, mas ela se mantinha elegante. Os dedos entrelaçados sobre o colo, como se tentasse manter a compostura diante do imprevisível.

    Maximus apontou para mim com o queixo, sacudindo a cabeça em incredulidade.

    — Onde, pelos caralhos ardentes de Phlogiston… — ele começou. — você achou ele?

    Pers piscou, surpresa com o tom.

    — O quê?

    — Onde você achou esse desgraçado? — ele repetiu, dando um passo à frente, abrindo os braços. — Ele morreu centenas de vezes para mim. Voltou sorrindo. Treinou como uma besta, aprendeu feitiços de grau seis como se fossem brincadeira, despertou Aura… de primeira! — ele se virou de novo, me encarando com uma mistura de temor e reverência. — De primeira, Perséfone. Até mesmo os melhores dos meus centuriões levaram anos de guerra, de sofrimento, de meditação, de derrotas…

    Ela desceu os degraus do trono com calma. Os cabelos brancos se agitavam levemente com o vento do coliseu.

    — Maximus, eu…

    — E não me venha com essa de “eu o criei”. — ele a interrompeu. O dedo agora apontado diretamente para ela. — Eu conheço seu toque. Você pode guiar, moldar, mas não inventar algo assim do nada. Isso aqui — ele voltou o olhar para mim — é outra coisa. Isso aqui é algo muito maior. Você sabe que é. Então me diz…

    O silêncio caiu como um machado.

    Perséfone não respondeu. Apenas o olhou nos olhos. Firme, mas visivelmente sem resposta.

    Maximus abaixou o braço, bufou e riu sozinho, balançando a cabeça.

    — É… Foi o que pensei. — cruzou os braços. — Tem algo aí que até você não entende.

    Ela desviou o olhar por um instante. Um raro traço de dúvida passou por seu rosto.

    Eu fiquei ali, parado, com os punhos ainda envoltos por ecos da minha aura recém-despertada. Me sentia como uma peça que ainda não sabia onde se encaixava no tabuleiro.

    Mas sabia que, seja qual fosse meu lugar… ele estava cada vez mais próximo de ser revelado.

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