Caminhávamos lado a lado pelos campos dourados. A luz da manhã passava pelos girassóis e pintava listras de sombra no chão de terra. O coliseu, sempre imponente, surgia no horizonte. Senti o calor da terra sob meus pés, e o som lento dos nossos passos era abafado pelo assobio distante do vento entre os pilares do estádio.

    Segurei a mão de Perséfone. Não precisei forçar; ela entrelaçou os dedos nos meus de imediato, um encaixe tão natural que parecia ser o único lugar deles. Após um silêncio confortável, respirei fundo, virando-me para ela.

    — Amor, por que você não me deixa te amar por completo?

    Ela manteve o olhar fixo na imensidão à frente, mas senti seus dedos apertarem os meus.

    — Amar por completo? — Ela repetiu, a voz quase um sussurro quebrado.

    — Quero dizer… por que você hesita em avançar para a próxima etapa do nosso relacionamento?

    O silêncio nos envolveu como um tecido pesado, longo e denso.

    Finalmente, Pers parou. Ainda sem me encarar, ela soltou a mão, devagar.

    — Eu só vou me entregar a você de corpo quando você tiver visto quem eu realmente sou. Por inteira.

    Franzi a testa e me aproximei. Minha voz saiu suave, cheia de carinho.

    — Eu já te vi. Você é maravilhosa. Eu te amo. Se você fosse uma minhoca, eu ainda te amaria. Ia… te colocar numa caixinha de terra fofa e te proteger de tudo.

    Ela soltou um riso genuíno, aquele som cristalino e adorável que fazia o mundo parecer menos caótico. Mas, mesmo rindo, balançou a cabeça em negativa.

    — Não se trata disso. Não é sobre ser bonita ou feia. Não é sobre a forma. Não é físico. É… algo mais profundo.

    Ela finalmente me encarou. Seus olhos, profundos e escuros como lagos noturnos, eram brutalmente francos.

    — Quando você vier aprender o Quarto Aspecto comigo, você vai entender. Vai me ver como ninguém jamais viu. Nem mesmo as outras deusas.

    — O Quarto Aspecto… — murmurei, absorvendo o peso das palavras.

    Ela assentiu.

    — A Morte é profunda, amor. E nem todos que a tocam voltam os mesmos. Quando você me vir ali, nua de alma, se ainda me quiser… então eu saberei que é de verdade.

    Fiquei em silêncio por um instante, digerindo a revelação. Um sorriso lento surgiu em meus lábios. Eu a puxei pela cintura e encostei minha testa na dela.

    — Eu já sei quem você é de verdade. Mas tudo bem. Quando chegar a hora, eu estarei pronto. E vou te amar mesmo que o mundo inteiro diga que não deveria.

    Ela fechou os olhos e soltou um suspiro morno contra meus lábios.

    — Eu sei. É por isso que eu te escolhi.

    Seguimos para o coliseu. A batalha nos aguardava, mas ali, no fundo da alma, nós já estávamos lutando por algo muito maior.


    Cruzamos os imensos portões de bronze. O som dos nossos passos se perdeu rapidamente entre as colunas de mármore e os corredores vazios. O sol batia nas arquibancadas douradas, e uma lufada de vento quente chicoteou a areia da arena, como se o lugar estivesse despertando para a guerra.

    Maximus já nos esperava no centro, braços cruzados e o olhar duro de sempre. Mas hoje, havia um brilho diferente em seus olhos e um sorriso malicioso brincava em seus lábios. Assim que me aproximei, ele soltou uma risada grave.

    — Pela barba de Augusto, garoto! — Apontou um dedo calejado por cicatrizes para o lado do meu pescoço. — Essa marca aí… ou você teve um encontro com uma súcubo faminta ou sua deusa está mais possessiva do que pensei.

    Pers abriu a boca, numa mistura rápida de indignação e embaraço. Eu apenas passei a mão no pescoço e sorri.

    — Não posso negar nem confirmar, Imperador.

    Maximus soltou outra gargalhada profunda.

    — Isso explica o passo mais leve. O amor é uma fornalha melhor do que qualquer treino. Mas aproveite enquanto pode, porque hoje não vamos quebrar só seus ossos. Vamos quebrar suas memórias.

    Seu olhar se voltou para Pers, que cruzava os braços com a típica desconfiança de quem conviveu tempo demais com homens imperiais.

    — E antes que comece a protestar, deusa, essa história é verdadeira. E nem você sabe dela.

    — Regis nunca gostou de falar muito do passado — comentou ela. — Principalmente da época de Emberfell.

    — E com razão — disse Maximus, caminhando lentamente em círculos pela arena. — Mas há certas coisas que merecem ser lembradas, nem que seja uma única vez, por aquele que vai carregar o legado.

    Meu coração começou a bater mais rápido.

    — Que tipo de história?

    Maximus parou e cravou os olhos em mim. Seu semblante endureceu.

    — Uma história de sangue. De escolha. De traição e redenção. Regis era muito mais do que o primeiro vampiro. Muito mais do que o aliado silencioso na fundação de Emberfell.

    Ele fez uma pausa dramática, girando uma adaga antiga nos dedos. A lâmina refletia a luz do sol como um pedaço de sombra.

    — Regis era meu amigo. Meu irmão de guerra. E um dia… ele foi meu inimigo.

    Pers franziu a testa, surpresa.

    — Regis? Contra você?

    Maximus assentiu, mas seus olhos estavam distantes, olhando através do tempo.

    — Sim. Contra mim… contra tudo que eu acreditava. E talvez, só talvez… ele estivesse certo.

    Um silêncio pesado tomou conta. A própria areia da arena pareceu prender a respiração.

    — Se estão prontos — disse ele, voltando à postura e cruzando os braços —, hoje vou lhes contar a noite em que Regis traiu Emberfell… e a noite em que eu poupei sua vida.

    O peso daquela frase fez meu sangue congelar. Em todo o tempo que conheci Oliver, ele jamais mencionou isso. Até Pers parecia paralisada.

    — Não esperem que seja uma história bonita — disse Maximus, olhando para nós dois com uma expressão sombria. — Porque nenhuma verdade é.

    E assim ele começou.

    Maximus caminhava em círculos, parecendo um leão antigo revisitando as cinzas de um passado inesquecível. A poeira fina da arena se levantava suavemente a cada passo, como se o próprio chão estivesse curvando-se. Ele parou diante de nós. Seus olhos dourados ardiam, e sua voz não tinha o fervor do imperador, mas o tom cru de um homem… um homem que ainda sentia a dor das memórias.

    — Como vocês sabem — começou ele, firme —, foi Perséfone quem julgou Ao, o Deus criador, como indigno. Foi ela quem levantou a primeira voz, e esse ato dividiu os céus. A criação se partiu em silêncio. Mas mesmo uma deusa… mesmo você, minha Senhora, não conseguiu sustentar o peso de julgar seu próprio criador.

    Pers baixou os olhos. Pela primeira vez naquele continente, eu vi nela não a deusa, mas a mulher. Uma alma milenar marcada por decisões que nenhuma criatura deveria ter que tomar.

    Maximus continuou, a voz ganhando força.

    — Depois disso, Perséfone se escondeu. De tudo. De todos. Até de si mesma. Mas Regis…

    Ele fechou os olhos por um instante. Seu punho tremeu levemente.

    — Regis não se escondeu. Ele fez o impensável. Ele… manteve contato com Ao. Ele falava com aquele que moldou tudo… e mesmo sabendo o que Perséfone havia decidido, ele permaneceu ao lado dele. Não por servidão, mas por uma fé que nem hoje eu entendo.

    Pers o encarou, a voz baixa.

    — Ele nunca me contou.

    — Não contou a ninguém. Exceto a mim. — Maximus se virou para mim. — Naquela noite, quando descobri, algo em mim quebrou. Regis era o último irmão que me restava. O vampiro que estava na fundação de Emberfell. O homem que me salvou em batalhas sem nome… e lá estava ele, em segredo, trilhando um caminho oposto ao meu.

    Ele apertou os olhos, como se visse o sangue daquela noite escorrendo em suas mãos.

    — Nós lutamos. O mundo inteiro pareceu menor naquele momento. As chamas da minha mana queimaram o céu. O sangue dele evaporava antes de tocar o chão. A arena sagrada de Emberfell foi moldada no eco daquela batalha.

    Ele inspirou fundo.

    — Eu venci. Era óbvio. Mas… eu não consegui matá-lo. Não por fraqueza. Não por honra. Mas porque, no fundo, eu amava aquele bastardo como um irmão. Então… deixei ele ir.

    Pers, em silêncio, segurava minha mão. Eu nunca a vi tão quieta.

    — Regis desapareceu. Sumiu como fumaça. Até que…

    Maximus olhou para o céu como se o momento tivesse voltado.

    — Até que Astarot, a Deusa dos Dragões, o Terror dos Céus, desceu sobre mim depois que arranquei a asa do Imperador Dragão de Thaldrakos. Eu estava sangrando. Quebrado. Meus ossos eram gravetos. A única coisa que me mantinha de pé era a fé.

    Ele se virou para mim, os olhos faiscando em um misto de raiva e reverência.

    — Foi Regis quem apareceu. Com sua capa rasgada e olhos de um milênio. Ele enfrentou Astarot. Ganhou tempo. Não para vencer… mas para que eu fugisse. Eu, o maior guerreiro da história de Emberfell, só sobrevivi aquele dia por causa do homem que devia ser meu inimigo.

    O silêncio reinou.

    Maximus se virou, apoiando as mãos na mureta da arena.

    — Depois disso… nunca mais o vi. Nunca mais ouvi sua voz. Só sei que ele morreu naquela luta.

    Ele se virou novamente, o olhar antigo pousando em nós.

    — E agora, o mundo gira. E você, Hades… é treinado por mim. Escolhido por ela. E herdeiro de uma história que nem a própria história teve coragem de contar.

    Eu não soube o que dizer.

    Pers tinha os olhos marejados, mas não chorava. Ela apenas murmurou, com um sussurro quase infantil.

    — Essa história… transformaria qualquer um num vilão.

    — É… — completei, sentindo um nó na garganta.

    Maximus apenas sorriu. Uma dor antiga estava ali, misturada com uma admiração que o tempo jamais apagaria.

    Maximus caminhou para o centro da arena com a gravidade de um imperador e o silêncio de um coveiro. Seus olhos ainda brilhavam com as brasas da lembrança, mas sua voz agora era firme, instrutora.

    — Mas como Oliver me instruiu — ele disse, parando diante de mim —, chegou a hora de algo diferente. Lutamos. Morrermos. Voltamos. E faremos isso de novo. Mas agora, você precisa ouvir os mortos. Entender seus sussurros. Sentir seus rastros. Aprender as técnicas de necromancia que Regis usava.

    Pers arregalou levemente os olhos, como se ele tivesse cruzado um limite sagrado. Ela não falou nada, apenas me olhou. Em seu olhar, porém, havia aprovação e confiança.

    — Não as habilidades de vampiro — ele continuou, com um meio sorriso. — Isso é outro capítulo da sua história. Quando reencarnar, esse papel caberá ao Duque Drácula, seu pai. Você será o primogênito de sua linhagem e se der sorte, herdará o gosto por vinho e sarcasmo.

    Eu sorri, ainda tentando processar o fato de ser filho do lendário Drácula. Cômico. E épico.

    Maximus ergueu a mão e a mana no chão tremeu. Pétalas secas de girassóis se ergueram como cinzas, e então vieram vozes. Fracas. Como sopros numa caverna antiga.

    — A primeira coisa que você precisa entender é que os mortos não mentem. Mas também não falam como os vivos. — Ele se agachou, tocando a terra. — Eles ecoam. São sombras de sentimentos, fragmentos de verdades que se recusam a partir.

    Eu me aproximei, sentindo os pelos do braço se arrepiarem.

    — Essa é a Arte do Eco. Uma técnica que Regis dominava. Ele não apenas falava com os mortos — ele ouvia o mundo. O verdadeiro mundo. Aquele que fica nos intervalos da realidade. Os ecos do mundo de Chaia.

    Ele fechou os olhos.

    E então, ouvimos.

    Risos. Sussurros. Uma mulher cantando. Um velho pedindo perdão. Uma criança chorando. Tudo ao mesmo tempo. Caótico. Fragmentado. Mas real.

    Maximus abriu os olhos e disse com voz baixa:

    — Os mortos ainda caminham entre nós, Hades. Não como fantasmas, mas como verdades que ninguém teve coragem de enterrar.

    Olhei para Pers. Ela estava séria, mas com os olhos brilhando. O que eu estava prestes a aprender parecia ser parte do próprio domínio dela.

    Maximus se afastou e apontou para uma cripta de pedra que surgiu magicamente no meio da arena, envolta em uma névoa escura.

    — Entre. Escute. E aprenda. O que você descobrir lá dentro será só seu. Nenhum eco é igual para todos. E talvez, se você escutar bem… ouça até a voz de Regis.

    Meu coração disparou.

    Caminhei até a entrada da cripta. O silêncio ali era mais pesado que a morte.

    — De onde surgiu essa cripta? — perguntei, encarando a boca que exalava uma névoa densa e fria.

    Maximus cruzou os braços e soltou um leve sorriso.

    — Eu a conjurei. Uma construção feita para te isolar dos sons dos vivos e facilitar sua meditação. Regis preferia lugares assim. Dizem que o silêncio absoluto é o único idioma universal que os mortos ainda compreendem.

    Assenti, engolindo seco, e entrei.

    A escuridão era acolhedora e úmida. Sentei-me no centro da câmara, no chão de pedra lisa, cruzei as pernas e respirei devagar. Tentei esvaziar a mente e ouvir.

    Nada. Nem mesmo meus batimentos.

    O vazio se estendia.

    — Está tentando ouvir os mortos com ouvidos de vivo — disse Maximus, parado na entrada como uma estátua na névoa. — Esse é o erro de quase todos os iniciantes. Você precisa usar os seus sentidos como ferramentas, não como limites.

    Ele caminhou lentamente até mim, agachou-se ao meu lado e apontou para o meu peito.

    — A mana corre em você, certo? Canalize. Reforce os seus sentidos. Comece pela audição. Foque o fluxo para os ouvidos, como se sua mana fosse um rio escavando as margens de um canal.

    Fechei os olhos. Respirei fundo.

    Lentamente, comecei a sentir. Como se estivesse girando as engrenagens do próprio corpo com chaves feitas de mana.

    Meus ouvidos ardiam levemente com a concentração, mas nada.

    Maximus colocou a mão em meu ombro.

    — Leva tempo. Mas você está no caminho certo. Continue.

    Continuei.

    A névoa parecia dançar ao redor, como se esperasse que eu finalmente estivesse pronto para escutar.

    Demorou. A dor no ouvido já era quase física, como se a mana tentasse rasgar a carne para escavar os tímpanos.

    Mas continuei. Reforcei. Estabilizei.

    E então, o mundo tremeu.

    Foi um sopro.

    Depois, um lamento.

    E, por fim, uma voz.

    — P-por que…? — chorava um homem. A voz era grave, idosa, carregada de angústia. — Por que fizeram isso com a minha filhinha…?

    Vi uma casa de madeira dilacerada pelas chamas. Um corpo pequeno no chão, braços abertos, olhos que jamais veriam o sol de novo. O pai ajoelhado, coberto de fuligem, sacudindo a filha na tentativa desesperada de que ela só estivesse dormindo.

    — POR QUE?! — ele berrou uma última vez, e então o eco se cortou.

    Silêncio. Frio.

    Depois, outro eco.

    Pés descalços. Muitos. Pequenos. Crianças famintas.

    — Senhor… por favor… temos fome… — uma delas pediu, a voz trêmula.

    Um cavaleiro apareceu entre as ruínas de um vilarejo. Sua armadura dourada e opaca estava suja de sangue seco. Ele as encarou por um momento, um instante que pesou milênios.

    E então…

    O som de espadas.

    Nenhuma palavra. Nenhuma justificativa. Apenas a morte.

    O grito de uma das crianças cortou o eco como uma faca corta carne. Eu estremeci. Senti a garganta travar, mas sabia que aqueles ecos não podiam ser respondidos. Apenas escutados.

    O que eles estavam tentando me mostrar? Ou seria melhor perguntar, o que eles queriam que eu sentisse?

    A pergunta ainda ecoava quando outra voz veio. Não um grito. Não um lamento.

    Eram passos tênues, leves, frágeis. Perninhas pequenas caminhando com dificuldade sobre pedras e restos queimados. O som de um pano sendo arrastado. O estalo de um botão de plástico. Era um brinquedo. Um urso de pelúcia.

    A menina falava sozinha, como se o ursinho fosse um talismã.

    — Vamos encontrar a mamãe… vamos sim…

    O silêncio respondeu primeiro. Depois, o som.

    Um som grotesco. Molhado e irregular de mastigação.

    Os passos pararam. Um chiado de respiração pesada. Um urro monstruoso.

    E o grito.

    O grito da menina, cortado subitamente, como uma vela apagada pela tempestade.

    O urso caiu. O botão rolou.

    Nada mais.

    Tentei respirar, mas não conseguia. A mana latejava nas minhas veias como agulhas. Mas não podia parar.

    Então veio outro. Um homem correndo. A armadura batia no corpo magro, o escudo tremia no braço. Ele gritava o nome de uma deusa, uma prece de desespero.

    — ATHENA! ATHENA, POR FAVOR!

    E ouvi. Não uma resposta divina. Mas um estalo surdo.

    O som de uma lança perfurando carne. Rasgando garganta.

    O grito virou gargarejo. O corpo caiu de joelhos.

    O silêncio que veio depois parecia zombar de mim. Não havia justiça. Apenas morte.

    Eu, sentado naquela cripta, escutando tudo.

    O som mudou.

    Uma voz feminina. Firme, carregada de uma dor antiga.

    — Eu esperei tanto tempo pra te enfrentar, Edward…

    A voz tremia entre ódio e saudade. Edward. O nome pairou, ecoando nas pedras, como se pertencesse a mim. Foi como olhar para um espelho e não reconhecer o reflexo, mas saber que ele era você.

    Então ela gritou. Um grito cheio de mágoa, fúria e fim. A dor de quem esperou, lutou e morreu.

    O som do corpo caindo. Silêncio.

    Mas não por muito tempo.

    Um barulho. Grave. Ecoando como um trovão abafado.

    O som de um martelo.

    E logo depois, o grito dela. Não de fúria. Puro sofrimento.

    O mesmo grito. De novo. E de novo.

    Setenta e duas vezes.

    A dor voltava. A carne rasgava. O grito se repetia como uma maldição.

    Eu quis tapar os ouvidos. Quis sair dali. Mas não podia.

    Setenta e duas vezes. Cada repetição mais real. Como se eu fosse a espada. Como se eu fosse o motivo.

    E só então o silêncio voltou.

    Não havia julgamento. Apenas a sensação amarga e inquietante de que Edward era mais do que um nome. Talvez, um pedaço meu.

    O som mudou novamente. Uma brisa súbita de luz.

    Risos. Palmas. Sinos. Música suave. Um casamento.

    O som das pessoas celebrando, taças tilintando em brindes e gargalhadas sinceras.

    Então eu vi. A imagem não era sólida, mas nítida. Um campo florido. Folhas douradas caíam das árvores. E no centro, um altar simples.

    Diante dele, um homem de cabelos brancos. Postura firme. Olhos que pareciam carregar mundos. A mulher à sua frente sorria com uma ternura que rasgava a alma. Cabelos vermelhos como labaredas. Pele clara, marcada por sardas suaves.

    Quando se beijaram, o tempo parou.

    Eu senti o beijo. O gosto de vinho envelhecido, o calor do pôr do sol, o som abafado de lágrimas caindo. Não era comigo. Mas foi como se fosse.

    O eco não era mais apenas som. Era um sentimento. E quando o sentimento era forte o bastante, ele criava. Formava imagens. Cenas. Vidas.

    Pensei: talvez o mundo dos ecos fosse uma tapeçaria de memórias, de emoções tão intensas que desafiavam o tempo e a morte.

    Então ouvi. Uma voz.

    Baixa. Quase um sussurro. Mas doce.

    — Como esperado… do primeiro e único Apóstolo dela. Ser capaz de perceber isso sozinho… de tocar ecos tão antigos que o tempo já esqueceu e de vislumbrar até mesmo futuros ainda por nascer.

    A voz era masculina. Jovem, mas antiga. Tinha a serenidade de quem carregava peso demais por tempo demais.

    Quis perguntar quem era, mas fui interrompido.

    Não por palavras. Por uma imagem.

    Uma mão se estendia. Vestia uma luva negra, elegante. Os dedos estavam nus. As unhas longas. No centro da palma, um anel cravado na carne, um círculo dourado que pulsava com luz, ou era sangue?

    A mão se ergueu devagar, como quem segura um juramento.

    — Não repita os mesmos erros do passado, Apóstolo.

    A última palavra ecoou como um martelo em minha alma.

    E antes que eu pudesse dizer algo, o som explodiu. Um trovão engolindo a realidade. Meus ouvidos latejaram. Minha mente foi engolfada por estática, como se o próprio mundo gritasse que não havia mais nada a ouvir.

    Então…

    Um silêncio absoluto e cortante.

    Quando dei por mim, estava de volta à entrada da caverna. Meus passos cambaleavam. O ar parecia mais denso. O coração batia com uma clareza que doía. Havia algo diferente em mim. Como se um novo fio tivesse sido costurado à minha alma.

    Caí de joelhos.

    Mas antes que o mundo me engolisse, senti os braços dela me envolvendo. Pers me segurou com firmeza, e meu rosto afundou no vão entre seu pescoço e ombro, quente, perfumado e familiar.

    — Amor… o que você ouviu lá dentro?

    A voz dela era calma, mas havia um fio de tensão. Ela sabia que não era qualquer eco.

    Respirei fundo. E comecei.

    Contei tudo. O senhor chorando. As crianças famintas. O homem suplicando por Athena.

    Disse sobre a mulher que gritava Edward. Um nome que ecoou como se fosse meu.

    — Eu ouvi ela morrer, amor… setenta e duas vezes.

    — Setenta e duas, Hades? — ela sussurrou, tocando meu rosto. Eu apenas assenti.

    Falei do casamento. Das visões. Dos ecos se tornando imagens. E então, sobre a voz.

    — Um homem… me chamou de “o primeiro e único Apóstolo”.

    — Você viu esse homem? — ela perguntou.

    — Apenas uma mão… luva negra, dedos descobertos. E um anel cravado no centro da palma.

    Os olhos dela se arregalaram por um segundo, mas ela não disse nada. A tensão em seu abraço aumentou.

    — E ele me disse para não repetir os mesmos erros do passado… Apóstolo.

    — E então?

    — E então… um grito.

    Ela me olhou por um longo tempo. Seus dedos acariciavam meu rosto.

    — Amor… obrigada por ter voltado.

    — Sempre voltarei para você.

    Nos abraçamos ali, entre a cripta e os ecos do mundo. Pela primeira vez em muito tempo, senti medo. Não da morte. Mas do que viria a seguir.


    No dia seguinte, Maximus já me aguardava no centro da arena.

    — Hoje é o dia em que você vai forjar sua própria arma, garoto — disse com um sorriso. — Um guerreiro que chega ao grau oito não precisa mais pegar armas de outros. Ele cria a sua.

    Assenti, meus olhos brilhando.

    — Mas não espere que eu te ensine como. Se eu ensinar, ela será minha. A sua precisa vir de dentro. — Ele tocou o próprio peito.

    Comecei a tentar.

    Minha primeira tentativa foi um machado. Pesado, imponente, mas desequilibrado. Rachou com a energia da mana morta, como se não suportasse a intenção.

    — Muito bárbaro — eu disse, jogando-o longe.

    Depois, uma lança. Rápida, elegante. Mas ela perfurava, não cortava.

    — Fina demais. Não carrega minha vontade.

    Tentei um arco. Lindo. Feito de pura névoa sombria. Mas eu nunca fui arqueiro. Era um instrumento distante, frio.

    — Não me sinto conectado.

    Uma foice foi a próxima, por impulso. Pesada demais, lenta, exigia uma postura que não combinava comigo.

    — Isso é dela, não meu.

    Passei a manhã inteira testando. Em um momento de cansaço da alma, fechei os olhos. Pensei nela.

    Na sua risada suave. No sol nascendo atrás dela. No amor dela.

    Minha mana reagiu.

    Quando abri os olhos, a forma começou a se construir sozinha. Meus dedos se moveram por instinto, moldando a própria essência da noite. A mana morta se solidificou em linhas firmes, afiadas e elegantes. Uma espada de uma lâmina só, levemente curva, como as antigas katanas, mas com runas que tremeluziam com uma luz púrpura. Negra como o silêncio entre os mundos.

    Segurei o punho. Era como segurar a mão dela.

    — Qual o nome dela? — Maximus perguntou.

    Respirei fundo e sorri.

    — Vontade da Deusa.

    — Porque esse será o propósito da minha lâmina… seguir a vontade de Perséfone.

    Maximus assentiu. Por um instante, até ele ficou em silêncio.

    Enquanto eu gravava as últimas runas no cabo, senti a presença dela se aproximar. Pers estava radiante, os cabelos esvoaçando. Ela olhou para a lâmina, depois para mim, e então arqueou uma sobrancelha com aquele jeito curioso.

    — Amor… posso te perguntar uma coisa? — Ela girou a ponta do cabelo com os dedos.

    — Sempre.

    — Por que não fez um fuzil? Ou um daqueles rifles que você usava na sua vida passada? Era com isso que você lutava antes, não era?

    Sorri.

    — É melhor te mostrar do que explicar.

    Conjurei um círculo mágico simples. A mana morta tomou forma, fluindo e se cristalizando em linhas retas, cano longo e coronha firme. Uma réplica quase exata do rifle que carreguei até o fim da minha última vida.

    Apontei para Maximus, que estava ao fundo da arena.

    — Maximus! Só um teste!

    Ele apenas olhou de lado, nem se deu ao trabalho de levantar a guarda. Puxei o gatilho.

    A bala de mana cortou o ar como um raio negro, precisa. No entanto, antes que chegasse a um metro dele, Maximus deu um passo para o lado. Sem pressa. A bala passou reto.

    — Isso responde sua pergunta? — perguntei, desfazendo o rifle.

    Pers assentiu após um momento de silêncio.

    — Armas boas para humanos.

    — Exatamente. — Olhei para minhas mãos. — Contra soldados, isso mudava guerras. Contra magos… talvez. Mas contra alguém como Maximus, ou qualquer ser ligado às esferas superiores, é como atirar folhas secas no vento.

    Ela caminhou até mim e segurou minha mão, olhando para a Vontade da Deusa.

    — E essa aqui… pode matar um deus?

    Eu a encarei com serenidade.

    — Pode matar tudo que ousar se opor à vontade da minha Deusa.

    Ela sorriu.

    — Poético.

    — Realista.

    Ao fundo, Maximus gargalhava.

    — Achei que você fosse atirar com aquela bazuca que usou contra os generais da SS! — gritou ele, divertindo-se.

    — Um passo de cada vez, Maximus… um passo de cada vez.

    Maximus então se aproximou, imponente, cada passo ecoando. Ele sorriu, um sorriso orgulhoso e selvagem.

    — Está bonito esse brinquedo novo — disse ele, olhando para minha espada com olhos flamejantes. — Mas espada bonita não vence guerra, soldado. Amanhã, vamos começar a forjar o general que você deve ser.

    Inclinei levemente a cabeça.

    — Com todo respeito, já fui um general. Na minha vida passada, liderei homens em resistência contra forças muito mais poderosas.

    Maximus apenas riu. Aquela risada que parecia um trovão zombeteiro.

    — Justamente por isso. Porque perdeu. Muitas vezes. — Ele apontou o dedo para mim. — Coragem não é o bastante. Amor à causa também não. O que você teve foi bravura. O que eu quero te dar… é vitória.

    O silêncio caiu como uma sombra.

    — Amanhã — continuou ele, cruzando os braços. — Você vai comandar um exército de espectros, e eu o meu. Cada fantasma terá habilidades baseadas em soldados reais que lutei ou liderei. E nós vamos guerrear. Não em turnos. Não em teoria. Em campo aberto.

    — Eu contra você?

    — Você contra a ideia de mim. Um verdadeiro general vence mesmo quando o inimigo é mais forte, mais veloz, mais cruel. — Ele sorriu com os dentes cerrados. — Quero ver se seu passado como líder vale alguma coisa aqui, em Chaia. Ou se você ainda tem que aprender o básico.

    Pers, do alto das arquibancadas, apoiava o queixo na mão. Seus olhos estavam cravados em mim, com um brilho entre orgulho e receio.

    — Boa sorte, amor — disse ela, com um tom brincalhão e encantador. — Se precisar de reforços… me chama. Mas, sinceramente, quero ver se você consegue dar conta sozinho.

    Suspirei. Olhei para minha espada. Depois para Maximus. Depois para o céu que começava a ruborizar-se com o pôr do sol.

    — Tudo bem. — Cerrei os punhos. — Então amanhã, vamos à guerra.

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