No dia seguinte, chegamos ao coliseu. Maximus estava parado ao meu lado, com os braços cruzados, observando Pers com uma reverência que se dedica apenas a um fenômeno inevitável.

    — Leve-nos para o campo — pediu ele, em um tom que era quase um desafio cerimonial.

    Pers sorriu e estalou os dedos.

    O mundo girou numa espiral de pétalas negras. Quando meus olhos pararam de arder, estávamos em um vasto campo. O horizonte era cortado por montes suaves e por um rio que serpenteava pelo terreno como uma cicatriz prateada. Nos extremos, dois castelos se erguiam: um de pedra escura e ossos secos, o outro forjado em magma endurecido, escarlate como uma fornalha. Estávamos nos domínios da guerra.

    Maximus já estava de pé sobre a muralha do castelo oposto, braços erguidos como um maestro. Eu podia ver seu exército surgindo: espectros em armaduras flamejantes, montados em bestas espirituais, e arqueiros feitos de brasas vivas. O estandarte dele tremulava ao vento, mostrando uma águia dourada envolta por chamas e com os olhos de rubis.

    Do meu lado, uma multidão de espectros tomava forma, conjurados da minha mana morta. Homens e mulheres de guerra, armaduras de ossos, montarias de sombras densas. Todos tinham olhos vazios, mas fixos em mim, esperando o comando de um novo imperador.

    No alto do céu, sentada sobre uma nuvem de véus escuros, estava Pers. Pernas cruzadas, um pequeno girassol preso ao cabelo branco. Ela nos observava com um misto de carinho e fascínio.

    Abri um mapa tático sobre uma mesa de pedra que conjurava à minha frente. Tracei com fumaça negra a formação inicial, planejei flanqueios, linhas de arqueiros e reforços pelas laterais. Estava prestes a dar a ordem para avançar quando o chão tremeu e ouvi o rugido.

    — Já?! — exclamei.

    Maximus havia ordenado o ataque sem esperar. Seu exército avançava como uma onda incandescente, uma torrente de instinto e velocidade. Eles cruzavam o campo como labaredas em um campo de trigo seco.

    — Maldito seja você, Maximus — murmurei, cerrando os dentes.

    Dei dois passos à frente, ergui o braço e canalizei minha voz com mana morta para que ecoasse pelo espaço.

    — Escudos erguidos! Primeira linha, mantenha! Segunda, prepare as lanças! Arqueiros, flecha, fogo cruzado, agora!

    Como engrenagens, meus espectros se moveram com precisão. Um muro de escudos se formou como uma muralha. Lâminas brilharam em tons escuros. As primeiras flechas, envoltas em chamas negras, cruzaram o céu e caíram como chuva.

    Mas o exército de Maximus não parava. Eles se jogavam contra os escudos, sem temer a morte. Era como lutar contra a lava: você pode resistir por alguns segundos, mas uma hora, ela engole tudo.

    Recuei dois passos e gritei:

    — Liberem as sombras montadas, flanco direito! Sigam a curva do rio e peguem os arqueiros de Maximus por trás!

    Cavaleiros de fumaça emergiram do meu lado direito, rasgando o campo em velocidade absurda. Maximus viu, é claro. E sorriu.

    — Isso — murmurou, do outro lado. — Pense, adapte e sobreviva.


    A batalha havia começado com a elegância da estratégia, mas agora era um massacre.

    Meus olhos percorriam o campo enquanto a fumaça das flechas negras se dissipava no ar espesso. Meus soldados, feitos de mana morta, estavam sendo esmagados um por um. Manobras táticas se transformaram em um pesadelo de aço e sombras dilaceradas.

    Vi o primeiro colapso quando a linha de escudos foi partida por uma criatura flamejante: um centauro esquelético em chamas, conjurado por Maximus, que galopou sobre meus soldados esmagando crânios e espalhando fragmentos de ossos como poeira. A fumaça que saía de seu corpo queimava até espectros.

    — Mantenham a linha! — gritei.

    Mas não havia linha.

    Um dos meus espadachins espectrais tentou enfrentar a criatura. Ele saltou, com a espada envolta em energia escura, mas foi agarrado pelo pescoço por um dos cavaleiros de Maximus, um guerreiro de ossos enegrecidos com um elmo cravado de chamas. Ele ergueu o espectro do chão e o esmagou como um boneco.

    Mais à frente, um dos meus conjuradores, envolto em mantos rotos, erguia feitiços de neblina para cobrir a retirada. Uma flecha incandescente atravessou sua testa. O encantamento se desfez, e os inimigos avançaram como um tsunami.

    As lanças dos meus soldados se quebravam. Seus escudos derretiam. Seus corpos eram rasgados e evaporados.

    Uma das cenas que jamais esquecerei: um arqueiro meu recuava lentamente. Ele tentava fugir, recarregando sua flecha envolta em trevas. Antes que pudesse mirar, uma lança atravessou seu estômago. Ele olhou para baixo, incrédulo, e desfez-se em poeira preta.

    Meus cavaleiros de sombra, que flanqueavam pelo rio, conseguiram derrubar alguns arqueiros de Maximus, mas logo foram cercados por guerreiros com espadas flamejantes. Um deles, maior que os outros, partiu dois cavalos espectrais ao meio com um único giro da arma.

    — Droga… — murmurei, com os punhos cerrados.

    A névoa da mana morta se ergueu enquanto meu comandante espectral, um general de elmo ornamentado, tentava recuar com os últimos soldados. Ele gritou uma ordem, mas uma tempestade de fogo caiu sobre eles. Maximus conjurou um punho flamejante do céu, esmagando todos de uma só vez. Um clarão. Depois, o nada.

    E então, o silêncio.

    O campo estava coberto por cinzas negras, fragmentos de armaduras e espectros de joelhos que se desmanchavam no vento. Nenhum dos meus restava.

    Do lado oposto, o exército de Maximus permanecia quase intacto. A marcha cessou com disciplina militar e as fileiras alinhadas. Eles me encaravam, ou melhor, encaravam o que sobrou de mim.

    — Um bom general, Hades — gritou Maximus do alto de seu castelo. — Aprende com a derrota. Agora… você está pronto para me escutar?

    Eu, sozinho no campo, com as mãos tremendo e o peito pesado como se tivesse enterrado mil almas, fechei os olhos.

    — Sim — respondi.


    Maximus desceu do castelo em passos largos, sua capa vermelha ondulando. O som de suas botas no solo enegrecido ecoava como um passado antigo. Ele parou a poucos metros de mim, com os olhos carregados de uma admiração silenciosa. O guerreiro sorriu com um canto de desprezo misturado com aprovação.

    — Eu admirei uma coisa em você, garoto — disse ele, com a voz firme. — Você não perguntou nada. Nenhuma reclamação. Nenhuma desculpa. Não implorou por respostas. Isso é raro. Até entre reis.

    Me mantive calado, o corpo ainda latejando pela derrota. Ele cruzou os braços, erguendo uma sobrancelha.

    — Então, agora que se provou digno… faça sua pergunta.

    Respirei fundo. Olhei para Perséfone, sentada naquela nuvem que parecia agora mais próxima, os olhos fixos em mim, como se já soubesse minha dúvida. Voltei meus olhos para Maximus.

    — Oliver me disse que você já me conhecia.

    Maximus não respondeu de imediato. A brisa agitou suas vestes. Seus olhos, tão escuros quanto brasas, se perderam brevemente no horizonte, em lembranças ou cicatrizes.

    — Sim — respondeu por fim, num sussurro grave. — Eu li sobre você.

    — Como assim?

    — Achei anotações no quarto de Regis — disse ele com simplicidade. — Páginas amareladas, escritas com a caneta arcana dele. Entre teorias, estratégias de guerra e poesias sobre a morte, havia uma parte dedicada a você. Ao futuro apóstolo da deusa.

    Meus olhos arregalaram. Um sussurro atrás de mim me fez virar. Era Pers, que havia descido silenciosamente da nuvem, os pés tocando o solo com leveza. Seu rosto era puro espanto.

    — Isso não é possível — ela disse, olhando para Maximus. — Como Regis poderia saber disso? Isso não faz sentido. Eu nem sequer… eu nem sequer havia te escolhido naquela época.

    Maximus deu de ombros.

    — Eu também não entendi. Ninguém entendeu. Ele nunca disse nada. Só deixou as anotações. Um aviso, talvez. Um presságio. Ninguém sabe, Perséfone.

    Ela deu um passo para trás, os olhos perdidos, processando.

    Eu senti uma vertigem estranha. Mais uma vez, meu destino parecia traçado por mãos que não eram minhas. Minha história era a repetição de algo escrito antes mesmo da minha primeira morte. E o nome dele… Regis, ainda ecoava como um segredo.

    — Maximus — chamei, com a respiração irregular. — Por que você ainda não me ensinou a solidificar mana de forma mais efetiva?

    Ele parou o movimento de virar as costas e se voltou devagar. O silêncio pareceu pesar mais do que qualquer feitiço. Ele soltou um leve grunhido de riso pelo nariz e respondeu:

    — Porque ainda não é hora.

    — Você já viu o que eu consegui fazer até agora — insisti. — Solidifiquei o suficiente para formar uma espada, para fazer mãos de mana surgirem do chão… Por que não?

    Maximus caminhou até mim, parando tão perto que pude sentir o calor residual de sua aura.

    — Porque você conseguiu, Hades. Você entendeu. Sozinho. E esse tipo de entendimento é raro. Eu poderia ensinar técnicas, moldes, doutrinas militares inteiras, mas tudo isso… — ele apontou para minha testa. — Não vale nada se não vier daqui. Você precisa querer mais do que controlar a mana. Precisa querer dar propósito a ela.

    Ele olhou para a minha espada negra presa à cintura, a Vontade da Deusa.

    — Você está quase lá. Só que ainda não entendeu o que é realmente solidificar mana. Não é sobre firmeza, ou dureza… é sobre vontade. Quando você souber exatamente o que está lutando para proteger, então, e só então, a sua mana será tão sólida quanto a sua decisão.

    Virou as costas novamente e, antes de partir, lançou por sobre o ombro:

    — Eu vou te ensinar. Mas não agora. Porque há coisas que precisam ser conquistadas, não dadas.

    Ele se foi. E eu fiquei, com a espada ao lado e o peso da dúvida no peito. Mas algo nele me dizia que, quando o momento chegasse, eu estaria pronto.


    Após o treino, fui aos aposentos de Pers para tomar banho e comer.

    Ao sair do banho, a neblina quente ainda subia do meu corpo quando cruzei a soleira do quarto. Um aroma envolvente, quase hipnótico, tomou meu olfato. Não vinha dos perfumes florais, mas sim de comida.

    Franzi o cenho e olhei em volta.

    O quarto havia mudado. O espaço mágico da deusa, sempre fluido, havia se expandido. As cortinas translúcidas foram empurradas, revelando uma nova porta de arco curvo, talhada em mármore branco. O aroma vinha dali.

    Atravessei o portal e me vi dentro de uma cozinha que jamais existira.

    O cômodo pulsava com uma aura branda e acolhedora. Panelas de cobre flutuavam sozinhas, remexendo caldos com colheres encantadas. As paredes tinham azulejos que mudavam de tom entre cremoso e lavanda. Frutas cintilantes repousavam em tigelas. Um forno se abria e fechava sozinho, exalando um cheiro celestial.

    E no meio de tudo, estava ela.

    Pers usava um avental branco com bordados prateados que combinavam com os fios do cabelo preso em um coque frouxo. Estava de costas, concentrada em uma bancada, misturando algo em uma tigela de pedra negra flutuante. Um halo de vapor envolvia seus ombros.

    Aproximando-me silenciosamente, abracei-a por trás.

    — Aaaah! — ela gritou, dando um pequeno salto. Depois riu e me deu um tapinha no peito. — Amor! Você quer me matar do coração?

    — Amor — sorri, beijando seu pescoço. — O que você está fazendo? Desde quando você cozinha?

    — Desde agora — disse, com um sorrisinho travesso. — Estou fazendo o jantar.

    — E por quê? Achei que isso fosse trabalho dos garçons esqueletos.

    Ela se virou levemente no meu abraço, com o rosto brilhando com ternura.

    — Porque hoje é especial — respondeu, os olhos presos nos meus. — Você passou no teste do Maximus. Ele te aceitou definitivamente. Eu vi. Eu senti. E eu queria comemorar isso com algo… nosso.

    O silêncio suave dizia mais do que qualquer elogio. Eu apenas a beijei, com gosto de gratidão.

    — Agora, vá se sentar — ela disse, se soltando com um último beijo. — Ou você vai estragar a surpresa.

    Sentei-me à mesa mágica que se estendeu do chão, moldada de uma madeira escura. Cadeiras macias se formaram ao meu redor. E o jantar começou.

    Pers trouxe os pratos com um orgulho tímido, mas radiante. Eu soube, ali, que não era só o meu poder que crescia. Meu coração também crescia, para caber ela. Para caber nós.

    Comemos de mãos dadas, os dedos entrelaçados repousando na mesa. A comida estava quente, perfumada e surpreendentemente saborosa.

    — Amor… — ela disse, com a bochecha levemente inflada por um pedaço de cogumelo caramelizado. — Você percebeu que o sal dessa comida é feito de pó lunar?

    — É mesmo? — perguntei. — Então é por isso que brilha.

    Ela assentiu.

    — O sal lunar intensifica as memórias de sabor. Por isso você vai lembrar desse prato para sempre. Magia básica de cozinha, amor — piscou com charme.

    Sorri.

    — E qual o nome da receita?

    Ela pensou por um instante, limpando os lábios.

    — Hmmm… talvez… Estrela ao Creme de Orvalho com Lascas de Aurora?

    — Isso soa bem mais sofisticado do que “risoto com cogumelo doce”.

    — Mas risoto é um nome tão mundano… — ela fingiu fazer uma careta. — E esse é um jantar digno de reis da noite.

    — Rei da noite, hein? — brinquei, erguendo a sobrancelha. — Eu poderia me acostumar com esse título.

    — Pois acostume-se — respondeu, erguendo o queixo. — A Deusa da Morte precisa de um consorte à altura. E, pelo visto, eu escolhi bem.

    Segurei a mão dela com mais firmeza.

    — Você escolheu perfeitamente — disse.

    Ficamos alguns segundos em silêncio, quebrado apenas pelo crepitar da lareira mágica e o tilintar suave das colheres.

    — Amor, me conta uma coisa — ela disse de repente. — Como eram os cafés da manhã na sua outra vida? Lá no seu mundo antigo?

    — Hmmm… — encostei as costas na cadeira. — Acordar cedo, sair meio atrasado, pão amanhecido, café quente demais, e um rádio velho falando de trânsito. Era uma rotina bem menos encantada do que essa.

    — E você gostava?

    — Às vezes. Mas agora… — olhei ao redor — agora eu entendo que não era o pão, nem o café, nem o rádio. Era a ausência. A falta de alguém para dividir.

    Ela me encarou com aqueles olhos vermelhos que pareciam conter todo o amor do mundo.

    — Amor… — ela murmurou. — Eu queria ter estado lá. Nem que fosse para reclamar do café amargo com você.

    — Se você estivesse lá, o mundo teria parado só para olhar para você. E provavelmente derretido no processo — brinquei.

    Ela riu, inclinando-se sobre a mesa até seu nariz quase encostar no meu.

    — Está dizendo que eu sou perigosa?

    — Estou dizendo que você é… inevitável. Como o tempo. Como a morte.

    Ela sorriu largo, satisfeita.

    — Isso foi bonito. Mas eu prefiro quando você me chama de “amor” mesmo.

    — Então, amor… — murmurei, beijando os dedos dela. — Me conta você agora. Quando você está entediada, sozinha nesse reino, o que faz?

    Ela fez uma careta pensativa.

    — Às vezes fico horas desenhando constelações novas no céu. Outras vezes assisto aos esqueletos encenando peças antigas. E de vez em quando… eu apenas fico sentada nos campos. Sozinha. Esperando. Sem saber o que exatamente estou esperando.

    — E agora?

    — Agora eu espero que esse jantar nunca acabe.

    Eu sorri, e nossos pratos começaram a se esvaziar magicamente.

    — Amor… — ela disse, quase sussurrando. — Você tem medo de quando tudo isso acabar?

    — Que tudo isso acabe? Como… a morte?

    — Não — ela respondeu. — De quando você completar seu treinamento. E tiver que… partir. Ou renascer. Ou… seguir seu destino.

    Fiquei em silêncio.

    — Eu não tenho medo de seguir meu destino. Eu só tenho medo que ele me leve para longe de você.

    Ela apertou minha mão.

    — Então vamos fazer o seguinte — ela disse. — Quando o destino bater na porta… a gente atende juntos. Com uma faca na mão.

    — Metáfora?

    — …ou não — ela sorriu.

    Seguimos comendo, rindo e trocando histórias triviais, como se o amanhã não carregasse o peso de um continente condenado ou de um apóstolo destinado a ser mais do que um homem. Naquela noite, éramos só nós dois. E aquilo, no fim das contas, era tudo.


    Terminamos de comer sem pressa. Ela se levantou, ajeitando a cadeira com aquele jeito leve. Caminhou até a pia da nova cozinha mágica, puxando as mangas do vestido e prendendo os cabelos com um movimento suave.

    — Você seca, eu lavo — disse, me lançando um olhar que misturava doçura com autoridade.

    — Suas ordens são leis, amor — respondi, pegando o pano mágico que flutuava em minha direção.

    A água da torneira corria cristalina, refletindo as estrelas. Os pratos mergulhavam e saíam limpos, cintilando.

    — Amor… — disse ela, enquanto esfregava um dos talheres. — Você acha que se esquece mais rápido das guerras ou dos jantares?

    — Das guerras — respondi sem pensar. — A dor costuma passar. O gosto do vinho daquela noite que tomamos no barco… aquilo ainda está aqui — bati levemente no peito.

    Ela sorriu.

    — O que é estranho, né? Nós somos criaturas tão resilientes para a guerra, mas tão frágeis quando amamos.

    — Amor, você acabou de resumir toda a história de Chaia em uma frase.

    Rimos juntos, e ela me passou mais um prato. Peguei-o no ar, o sequei, e ele voou sozinho até o armário, encaixando-se.

    — E se a gente parasse tudo? — ela perguntou de repente. — Se largássemos essa coisa de ser apóstolo, de alcançar pureza, grau, reencarnação… e simplesmente fôssemos abrir uma padaria numa vila esquecida?

    — Só se tiver pão de girassol — respondi.

    — E croissant de trevas com geleia de lótus — completou, com uma risada baixa.

    — E só tocaríamos músicas tristes na vitrola.

    — E venderíamos sonhos em potes.

    — Isso soou perigoso.

    — É por isso que você faria o caixa, amor.

    A pia foi se esvaziando.

    — Sabia que, na Grécia antiga, as famílias costumavam lavar a louça juntas porque acreditavam que isso purificava as almas? — comentei.

    — Mesmo? — ela arqueou as sobrancelhas. — E pensar que tem gente que lava com raiva.

    — A raiva purifica também. Mas a nossa louça está limpa demais para isso.

    Ela riu. Um riso verdadeiro.

    — Amor — ela disse, com mais leveza. — Isso aqui é quase tão bom quanto nossas aventuras.

    — Quase? — fingi ofensa.

    — É que… não tem explosões. Nem ilusões de Deuses tentando te matar. Nem você morrendo vinte vezes por dia. Você me entendeu. Mas sabe do que mais? Eu acho que… mesmo depois que tudo acabar, eu ainda vou querer lavar pratos com você. E tomar chá. E ouvir você falando que o pão está muito assado.

    — Eu nunca falei isso.

    — Vai falar. Um dia — disse ela.

    Naquela noite, o que importava mesmo era o agora.


    Fomos deitar, lado a lado. Ela se enroscou no meu braço esquerdo, a cabeça repousando suavemente no meu bíceps. As luzes da cozinha mágica se apagaram, e a penumbra do quarto era suavemente prateada. O silêncio era a presença da paz.

    Nos encarávamos de perto, nossos narizes quase se tocando. Os olhos dela pesavam de sono, mas ainda tentavam me observar.

    — Amor… — ela sussurrou, a voz arrastada como seda. — Você acha que um dia… vai parar de me amar?

    A pergunta veio como o tipo de dúvida que se lança à eternidade. Um arrepio gelado subiu pela espinha, mas não deixei transparecer.

    — Nunca — respondi, firme, como se cada letra fosse uma promessa ancestral. — Nem que o tempo me apague ou que o universo reescreva as leis do amor. Mesmo se eu perder minhas memórias, meu corpo ou meu nome… de algum jeito, eu ainda vou te procurar, amor.

    Ela piscou devagar. Seus lábios esboçaram um sorriso pequeno, satisfeito, mas havia um pequeno cansaço em sua respiração.

    — Amor… — comecei, tentando entender a origem daquela pergunta. — Por que você…

    Mas ela adormeceu antes que as palavras terminassem. O sono a tomou como uma brisa que se apaga em silêncio. Abracei-a com um pouco mais de força. Inclinei-me e depositei um beijo calmo em sua testa. Um selo de silêncio, um escudo contra dúvidas.

    Fechei os olhos. E dormi também.


    Acordamos com a luz suave invadindo o quarto. O aroma de jasmim ainda pairava no ar. Abri os olhos e a vi ali: ainda nos meus braços.

    Pensei em perguntar sobre sua dúvida da noite anterior, mas não havia clima. Em vez disso, deslizei a mão por seus cabelos.

    — Bom dia, amor.

    Ela sorriu de olhos ainda fechados.

    Nos levantamos sem pressa. No lavabo mágico, nossas escovas apareceram com um estalo e, lado a lado, escovamos os dentes, rindo das caretas um do outro.

    Após escovar, peguei o creme de barbear. Espalhei o creme no rosto e, sem avisar, passei uma pequena camada na pontinha do nariz dela.

    Ela arregalou os olhos, surpresa, e soltou uma risada gostosa.

    — Amor! — exclamou fingindo indignação.

    — Isso é para garantir que você também fique lisinha — retruquei com um sorriso torto.

    Ela então pegou o pote, olhou para mim com um brilho malicioso, colocou um pouco de creme no próprio queixo, inflou as bochechas e fez uma pose de velho guerreiro:

    — “Ora, rapaz… no meu tempo a gente usava espadas de verdade, não essas mana-nhe-nhe-nhas!”

    Imitou minha forma de me barbear, exagerando. Eu ri alto. Ela fazia sons de raspagem falsa com a boca e depois assoprou o ar.

    — A barba está feita — disse com orgulho.

    — Ficou perfeita, amor. Melhor do que a minha — respondi, limpando o rosto e puxando ela para um beijo rápido no nariz.

    — Está vendo? Com talento e charme, até barba mágica se rende a mim — disse ela, limpando o nariz.

    Nos olhamos pelo espelho, lado a lado. Dois amantes que estavam descobrindo o mundo juntos.


    Depois do café da manhã, que consistia em torradas encantadas, chá de jasmim e um beijo lento que durou mais que a refeição, saímos de mãos dadas rumo ao coliseu. Chegando na arena, paramos abruptamente.

    Maximus, o conquistador, o mago de combate mais temido da história de Chaia, usava óculos de aro fino. Sua armadura flamejante havia sumido. Em seu lugar, ele vestia um terno impecável, negro, com detalhes escarlates. A gravata era de veludo rubro. Nas mãos, um livro de capa de couro escurecido.

    Ficamos parados. Até Pers soltou um riso abafado.

    — Eu devo estar sonhando, amor.

    Maximus nos viu. Fechou o livro com um estalo seco, ergueu o queixo e declarou com solenidade:

    — A aula está prestes a começar.

    Olhei para Perséfone.

    — Aula de quê exatamente? — perguntei, franzindo a testa.

    Maximus ergueu um dedo e apontou para o chão como se selasse um decreto.

    — Estratégia, tática, comando, psicologia de guerra e retórica imperial — respondeu com a voz cheia de orgulho. — Hoje, vocês vão aprender o que me tornou um Imperador. Não basta saber matar, tem que saber por que matar. Quando matar. Como convencer os outros a matar por você.

    Perséfone mordeu o lábio para conter o riso.

    — Maximus… isso é uma aula ou um tribunal de guerra?

    Ele ergueu uma sobrancelha atrás dos óculos.

    — É ciência do poder, minha deusa. Ciência e arte. E você, rapaz — disse, virando-se para mim — vai aprender a liderar não com músculos ou magia… mas com presença.

    — E o terno? — perguntei, não resistindo.

    Ele alisou o paletó com uma dignidade quase teatral.

    — Comandar requer elegância. E um general precisa saber quando lutar… e quando impressionar.

    Pers não conseguiu mais segurar e caiu na risada. Eu também ri.

    E assim começou a aula mais estranha da minha vida. Maximus, o Imperador Flamejante, me ensinando a controlar exércitos com palavras. Um novo tipo de inferno, pensei. Só que dessa vez, em terno.

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