Sob o céu opaco de Noctavellis, o rugido distante da guerra já fazia vibrar as pedras do castelo. Estávamos nos cômodos altos do palácio real, sentados lado a lado, conversando como marido e mulher. Perséfone repousava sua cabeça em meu ombro, as pernas cruzadas sobre as minhas, enquanto falávamos sobre o chá, a textura dos lençóis novos, a maneira engraçada como um dos ministros dormia nas reuniões. O clima era leve e íntimo, como se o mundo pudesse nos esquecer por alguns instantes.

    Quando nossas bocas se aproximaram, e o beijo parecia inevitável, a realidade que governávamos explodiu em nossos ouvidos. O céu se tingiu de escarlate. Uma explosão reverberou do lado de fora com força suficiente para estilhaçar as janelas da ala oeste. Um som pesado, como um ranger de engrenagens, estourou no ar com a força de um trovão. Saltei do sofá, e Perséfone veio logo atrás. Corri até a varanda principal do palácio, com vista ampla sobre os campos e muralhas da capital.

    O que vi travou minha respiração. Do horizonte rachado pelo vermelho, ondas de criaturas saíam como sombras em brasa. Soldados demoníacos, bestas infernais e espectros cobertos de fuligem mágica. O estandarte do Rei Demônio se erguia sobre os céus. O inimigo avançava com ordem cruel e eficiência, como uma maré que viria engolir tudo.

    — Maldição… — murmurei. Estendi a mão, pronto para conjurar um raio, invocar sombras e levantar os mortos. Mas nada. Nenhum fragmento de mana respondeu ao meu chamado. Senti um vazio. Silêncio absoluto. Como se eu estivesse nu diante da guerra.

    — Maximus! — gritei, certo de que só ele teria a audácia de tirar meu poder num momento como esse.

    Ele respondeu, surgindo magicamente numa janela do torreão oeste como um maestro satisfeito ao fim de um concerto:

    — Isso é um teste, Imperador! — gritou, com sua voz trovejante e zombeteira. — Não para ser um salvador. Para ser um general. Não use seu poder para vencer por eles. Vença com eles.

    — E os de Perséfone? — questionei, descrendo do que ouvia.

    — Lacrados — respondeu. — Vocês são imperador e imperatriz. Confiem no trono. Guie seus soldados. Ganhem sua lealdade. Protejam seu povo com estratégia, não com milagres.

    Então ele desapareceu num estalo.

    Pers olhou para mim, cruzou os braços e fez um muxoxo indignado, mas ela entendia. Depois que o gelo do susto derreteu, só restava a determinação. Havia um reino inteiro me chamando, e talvez era disso que o trono realmente se tratava.

    Fomos juntos à sala de guerra, onde uma grande mesa de pedra exibia um mapa em tempo real do território de Noctavellis. As peças mágicas, miniaturas dos nossos exércitos, moviam-se sozinhas, espelhando a batalha em andamento. Eu não podia usar mana, mas o trono de Noctavellis ainda respondia à minha voz. Consegui ativar o “Arx Vox”, um dispositivo mágico de comunicação à distância.

    — Canal Alfa. Todas as divisões. Aqui é o Imperador Hades.

    Imediatamente, vozes responderam. Graves, tensas. Uma cacofonia de nomes e confirmações:

    — Posso contar com vocês? — perguntei.

    A resposta foi unânime:

    — Até a morte, Amado da Deusa!

    Pers colocou a mão sobre meu ombro. Seu toque era caloroso, firme. Nos olhos dela, vi a certeza. Ela não precisava de magia para estar comigo. Era meu coração. Meu centro. E então o jogo começou.

    O campo se tornou um cenário de dor e fogo. Os espectros eram fortes, mas não infinitos. O inimigo era versátil e imprevisível. Enviei minhas tropas em uma formação de pinça para dividir os inimigos em grupos menores. Funcionou por um tempo. Mas então vi as ruas encherem de sangue e ossos. O mapa mostrava pequenas brasas negras piscando: meus soldados morriam. Centenas.

    Cada erro meu cobrava um preço irreversível. Mesmo de cima da torre, mesmo sem poder conjurar um mísero feitiço, eu lutava. Cada ordem. Cada escolha. Cada soldado que caía era um fantasma que ficava atrás de mim. Testemunha do que eu escolheria ser. Imperador? Ou apenas um outro espectro com uma coroa? Ainda não sabíamos. O terceiro dia havia apenas começado.

    A noite ainda cobria o horizonte com seu manto sombrio, e as primeiras estrelas eram ofuscadas pelas labaredas que subiam no céu como colunas de fogo. A fumaça vinha do sul. Não era apenas um incêndio: era uma invasão. Silhuetas distorcidas dançavam entre as chamas. Vi estandartes negros e criaturas que não pertenciam a esse mundo marchando entre os portões quebrados, devorando tudo em seu caminho. Os exércitos do Rei Demônio tinham retornado.

    — Os portões do sul caíram — informei. — O Rei Demônio envia uma mensagem com sangue, e não responderemos com silêncio.

    Olhei para os mapas flutuando no centro da sala. Torres de mana mostravam a movimentação inimiga. Eram numerosos. Incontáveis. Mas não invencíveis.

    — Primeira Legião, fiquem com o General Luthar. Concentrem-se em evacuar os vilarejos ao redor de Noctavellis. Ninguém será deixado para trás. Nenhuma criança morrerá enquanto eu usar essa coroa.

    O general espectral assentiu, seus olhos flamejantes brilharam com respeito.

    — Segunda Legião — continuei. — Atacaremos pelas montanhas negras. Um exército espectral pode caminhar por onde os vivos não podem. Quero emboscadas. Quero medo. Quero que os filhos do Rei Demônio duvidem da própria existência.

    Maximus soltou uma risada rouca ao meu lado.

    — E você, amor? — me virei para Perséfone. — Como imperatriz, suas ordens são as minhas.

    Ela sorriu de leve.

    — Que o céu chore sangue. Libero a Cavalaria do Crepúsculo. Quero que eles avancem pelos campos devastados, cortando as rotas de suprimento. Sem suprimento, sem vitória.

    Concordei. Me aproximei do mapa mágico e conjurei minha espada negra, Vontade da Deusa, e a cravei na posição do palácio real de Noctavellis.

    — Esse será o ponto final da campanha. O Rei Demônio achou que poderia me arrancar de meus dias com ela, destruir aquilo que construí. Ele não enfrentará só um imperador. Enfrentará o apóstolo da morte. E eu não recuarei.

    Todos se levantaram. O salão tremeu com a energia negra que liberamos.

    — Que se preparem — disse Maximus. — O Império Sombrio de Noctavellis despertou para a guerra.

    Assim, enquanto os portões do palácio se abriram e exércitos de espectros se preparavam para marchar, eu me virei uma última vez para Perséfone. Ela tocou meu rosto com delicadeza e sussurrou:

    — Volte vivo, amor.

    Marchei com meu povo, sentindo o coração acelerado. A noite seria longa. Mas o mundo ouviria falar da fúria do Império de Noctavellis.

    As trombetas soavam aos quatro ventos, um chamado sombrio e poderoso que ressoava pelas muralhas do império fictício, onde meu estandarte recém-criado, negro com o símbolo prateado de uma rosa murcha envolta em chamas, tremulava com orgulho. A calma havia sido rasgada pela realidade da guerra. Agora eu marchava. A armadura imperial feita de ébano temperado com mana morta se ajustava ao meu corpo. Cada passo que eu dava fazia o solo tremer com o poder canalizado por minha aura.

    Ao meu lado, meus generais espectrais cavalgavam montarias feitas de ossos e sombras, seus olhos vazios brilhando com obediência absoluta. Os soldados marchavam em silêncio, em disciplina impecável. O céu sobre Noctavellis se tingia de vermelho. Colunas de fumaça subiam entre os vales que nos separavam do reino sombrio e estalidos mágicos ecoavam como relâmpagos negros. De longe, vi o símbolo do Rei Demônio Azur, o mesmo que matou Oliver na sua segunda vida. E agora ele marchava contra mim.

    — General Mornel, relatório — ordenei, sem tirar os olhos do horizonte.

    O espectro de Mornel, um antigo comandante de Emberfell, aproximou-se, com a voz como o som de pedra sendo esmagada:

    — As forças do rei demônio avançam por três frentes. A primeira rompeu os portões da cidadela ocidental. A segunda tenta contornar nossas defesas pelas passagens montanhosas. E a terceira… está cavando túneis.

    — Malditos — murmurei. — Atacar pelas sombras. Estratégia de covardes.

    — Acha que eles sabem que o Imperador agora é você? — disse Perséfone, surgindo ao meu lado montada em um cavalo negro, seus cabelos prateados ao vento. Usava o uniforme de guerra das esposas imperiais de antigamente. A presença dela me fortalecia.

    — Eles vão saber quando eu chegar.

    Estalei os dedos e Vontade da Deusa, minha espada de mana morta, surgiu em minha mão. A lâmina pulsava, faminta. Dei um passo à frente e usei magia para me projetar sobre a muralha oeste. O que vi era um mar de demônios. Dezenas de raças misturadas. Um deles me viu e soltou uma gargalhada que reverberou:

    — O imperadorzinho saiu da toca!

    Levantei a mão. Todos os meus soldados pararam. Então apontei minha espada para frente.

    — AVANCEM!

    E o inferno começou.

    Meus espectros investiram primeiro, passando pelas flechas e magias como se fossem vapor. Depois vieram os necrocriados, guerreiros reanimados que mantinham sua técnica e fúria de vida. Perséfone surgiu acima do campo, flutuando como uma divindade julgadora. Ela moveu os dedos e uma tempestade de pétalas negras caiu sobre o exército inimigo, que começou a apodrecer onde fosse tocado.

    Eu saltei da muralha direto para o campo de batalha. Três demônios avançaram sobre mim. Um me atacou com uma clava flamejante. Desviei e o parti ao meio com um único corte. Outro tentou me perfurar com uma lança feita de ossos. Segurei a lança, quebrei-a com o cotovelo e empalei o dono com sua própria arma. O terceiro tentou fugir, mas a Vontade da Deusa o alcançou.

    A batalha era desigual. Para nós. Eu estava transformando aquela guerra em um recado. Do alto, escutei a risada de Maximus, que observava tudo de uma das torres do castelo com um cálice na mão.

    — Agora sim! Um imperador de verdade!

    Mas as forças do rei demônio ainda não haviam recuado. Um clarão azul no centro do campo chamou minha atenção. Quatro demônios alados segurando lanças negras de titânio desceram como meteoros.

    — Recuem! — gritei. — Deixem eles comigo!

    Usei aura para fortalecer meus músculos e mana sólida nos pés para impulsionar meu corpo. O primeiro demônio me atacou com a lança. Girei o corpo, desviei e cortei-lhe as asas. O segundo tentou perfurar meu flanco. Convoquei uma parede de mana morta sólida e a lança se quebrou. O terceiro me atingiu no abdômen, me lançando contra a parede de pedra. Perséfone gritou meu nome. Mas eu levantei. Com sangue na boca, sorrindo.

    — Amor… — murmurei, olhando para o céu. — Isso está ficando divertido.

    Fui para cima dos quatro ao mesmo tempo. Um a um, eles tombaram. E a segunda batalha do dia começou. Aquele era só o segundo dia como imperador, e o mundo já começava a tremer com o som do meu nome.

    Maximus havia restaurado parte dos nossos poderes, não tudo, apenas o suficiente para que lutássemos, não o bastante para que dominássemos. Liderar sem depender do próprio poder era parte do teste. Perséfone estava ao meu lado. Sua presença dava confiança, mas, mesmo com seu poder limitado, eu via o esforço em manter-se imponente.

    — Escudo curvo na retaguarda! — bradei. — Arqueiros, fogo mágico ao segundo toque!

    Do alto de uma torre improvisada, uma legião de conjuradores mortais disparava feitiços de fogo. Perséfone, mesmo com parte de seu poder lacrado, invocava fios espectrais que cortavam o campo de batalha em ziguezagues caóticos. Enquanto isso, eu me teleportava em curtas rajadas de mana sólida, encurtando a distância entre mim e os generais secundários do inimigo. Cada corte que fazia com a Vontade da Deusa era certeiro.

    Mas a maré estava se revertendo. Eles tinham números infinitamente superiores. Vi minhas fileiras se desfazendo. Comecei a recuar parte das tropas e a reorganizá-las em formações circulares defensivas.

    — Amor — disse Perséfone ao meu lado, com o rosto manchado de fuligem —, não vamos conseguir manter por muito tempo.

    — Mas temos que segurar — retruquei. — Nem que eu precise me erguer com os ossos desses soldados e lutar sozinho.

    Ela sorriu, suja, ferida, cansada. Tocou meu rosto.

    — Então vamos cair juntos. Só que não hoje.

    A batalha continuava. Os demônios traziam aríetes de cristal negro para quebrar nossos portões principais. Reforcei as estruturas com mana sólida. Transformei a entrada num beco sem saída, um labirinto de paredes móveis que criava armadilhas automáticas. Maximus observava de longe, com um sorrisinho satisfeito. Eu havia finalmente deixado de ser um guerreiro apenas para ser um general.

    Tive a ideia de usar a neblina de mana morta. Canalizei uma névoa espessa que cobriu o campo. Dentro dela, as flechas dos espectros cortavam com precisão absurda, guiadas por minha vontade. Começamos a avançar. Recuperamos terreno. Expulsei as bruxas com rajadas de Thanathós Gaze, uma versão fraca, mas suficiente. Cada comando era mais natural. Cada escolha mais letal. Ao fim daquele dia, a cidade estava em ruínas, mas o povo ainda batia no peito. Eu havia sobrevivido ao segundo dia como imperador, a duras penas. Sujo de sangue, exausto, mas ainda estava de pé. E Perséfone segurava minha mão.


    No terceiro dia do meu império fictício, o sol nasceu cinzento, oculto por fumaça distante e o cheiro seco da pólvora mágica. Acordamos cedo, com Perséfone ainda enrolada em meu braço. Por um instante, desejei que o mundo lá fora nos desse paz, mas paz não era feita para imperadores.

    A notícia veio antes mesmo do café da manhã. Um mensageiro espectral surgiu no quarto, translúcido e tremendo.

    — Amor… — Perséfone sussurrou, seus olhos já sérios. — O que houve?

    — Estamos cercados.

    No mapa mágico da sala de guerra, os contornos flamejantes mostravam Noctavellis sufocada em vermelho. Suas tropas agora dominavam todas as rotas comerciais. Nenhum suprimento entrava. A cidade era uma ilha prestes a ser engolida pela fome e pelo medo.

    Chamei Maximus imediatamente. Ele chegou com sua armadura espectral manchada de fuligem.

    — Situação? — perguntei.

    — Eles bloquearam as cinco rotas principais. Se não fizermos algo hoje, amanhã sua população começará a roer o couro das botas por alimento.

    — Alguma sugestão?

    — Claro. Você é o imperador. Faça o que imperadores fazem: escolha quem vive e quem morre.

    Minha garganta secou. Perséfone segurou minha mão.

    — Amor, não esqueça. Essa cidade é reflexo do que você é. Tome a decisão certa. Mesmo que doa.

    Ordenei que a câmara imperial se reunisse. Chamei conselheiros fictícios: Cassandra von Thariel, conselheira econômica; Lucan de Braxus, o Arconte da Guarda; Elder Senn, um velho necromante; Mirabel Ignatius, ministra da moral. Todos falavam ao mesmo tempo, propondo soluções com um preço: fome, medo, caos. Então tive uma ideia.

    — Vamos inverter o cerco.

    Todos me olharam como se eu tivesse enlouquecido.

    — Como assim, meu senhor? — questionou Lucan.

    — Eles acham que estamos sitiados. Então vamos nos comportar como predadores famintos. Quero que as torres do palácio emitam sinais mágicos constantes. Ilusões. Fogos. Música. Quero que eles vejam risos, banquetes, celebrações. Deem a eles a ilusão de que estamos mais fortes do que nunca.

    Maximus arqueou uma sobrancelha e sorriu.

    — Guerra psicológica… Maquiavel teria se orgulhado.

    — E depois? — Perséfone perguntou.

    — Depois… quando eles hesitarem… a gente corta a garganta deles.

    Passamos o resto do dia em estado de alerta. Eu caminhava pelos corredores do palácio tentando manter a postura imperial, mas por dentro sentia a tensão. Perséfone organizava com Mirabel a ilusão de festividades. Distribuímos doces falsos, vinho feito de glamour, e canções que ecoavam. No fim da noite, o inimigo hesitou. Na muralha, vi soldados do rei demônio recuando alguns metros. Era uma pequena vitória, mas a fome ainda espreitava nossas portas.

    A lua ainda pairava pálida no céu quando vesti meu uniforme negro. No espelho, vi meu reflexo: olhos esverdeados, exaustos. Cabelos escuros desalinhados pela insônia e tensão. Perséfone apareceu atrás de mim, já desperta. Seus dedos gelados tocaram minha nuca.

    — Amor… o teatro vai começar.

    — E se a plateia perceber que a peça é uma mentira?

    Ela sorriu.

    — Então a gente reescreve o roteiro.

    Logo cedo, os sentinelas relataram confusão nos acampamentos inimigos. Os soldados do rei demônio estavam inquietos, temendo que estivéssemos preparando uma arma secreta ou um pacto divino. Ambos os medos funcionavam a nosso favor. Aproveitei o momento de hesitação para reunir os conselheiros, mas algo estava errado. Cassandra von Thariel não apareceu.

    Esperei por longos minutos até que Lucan de Braxus entrou, o rosto sombrio.

    — Encontramos o corpo dela. Assassinada. Envenenamento mágico.

    Perséfone fechou os olhos.

    — Isso muda tudo — ela murmurou. — Se estão nos atacando por dentro, não basta sobreviver. Precisamos purgar.

    Ordenei que Elder Senn, com seus mortos-vivos silenciosos, revistasse todas as torres. Perséfone assumiu o controle direto do palácio, e Maximus convocou a guarda para vigília contínua.

    — Vamos transformar esse cerco em uma caça — eu disse. — E nós seremos os predadores.

    À tarde, fui até o grande mercado central. Havia sido transformado em uma imitação de feira. A população ainda caminhava entre as barracas vazias, fingindo que havia frutas. Crianças comiam maçãs ilusórias que sumiam ao tocar os dentes.

    Um velho me abordou. Seus olhos fundos brilhavam com raiva e esperança.

    — Imperador… o senhor prometeu que venceríamos. Ainda acredita nisso?

    Engoli em seco.

    — Não posso prometer a vitória. Mas prometo que, se cairmos, será com dignidade. E que até o último segundo, lutaremos como se fôssemos eternos.

    Ele assentiu. E então sorriu.

    — Então lutaremos com você.

    Naquele momento, senti o coração da cidade pulsar comigo. À noite, o traidor atacou novamente. Elder Senn foi encontrado gravemente ferido em sua torre. Seus mortos-vivos haviam sido reprogramados. Três guardas foram mortos antes que Perséfone os neutralizasse com um gesto seco.

    — Estão nos estudando — disse Maximus. — Alguém do lado de fora está coordenando os movimentos do lado de dentro.

    — Um comandante. Um estrategista.

    Fui até o topo da torre da sentinela leste. Lá, sob a luz pálida das estrelas, contemplei o acampamento inimigo. Havia um novo estandarte hasteado. Negro, com chamas verdes. O brasão do General Abaddon, um estrategista lendário.

    — Perséfone… você o conhece? — perguntei.

    Ela apareceu do meu lado.

    — Abaddon foi um mortal escolhido. Um dos poucos que venceu a própria morte e se aliou a ela. Ele usa medo como lâmina. E culpa como veneno.

    — Como se derrota alguém assim?

    Ela entrelaçou os dedos nos meus.

    — Fazendo o que ele não espera. Mostrando que há algo mais forte que medo e culpa.

    — E o que seria isso?

    Ela me puxou e sussurrou no meu ouvido:

    — Amor.

    Mais tarde, Maximus me trouxe um plano ousado.

    — Se conseguirmos infiltrar um pequeno grupo na retaguarda de Abaddon, poderemos destruir seu foco de comando mágico. Desorientá-los. O cerco se quebrará.

    — Quantos homens?

    — Três. Talvez quatro. É suicídio.

    — Então… eu vou.

    Perséfone virou-se de imediato.

    — Não.

    — Se não formos audaciosos, já perdemos.

    — Eu vou com você — ela disse, sem hesitar.

    E assim decidimos. Na virada para o quinto dia, eu deixaria o palácio. Não como imperador, mas como caçador. A noite caiu. E os corvos começaram a cantar.


    Partimos antes da alvorada. O céu ainda estava tingido de azul profundo quando deixamos o palácio por um túnel oculto sob a cripta dos fundadores. Maximus liderava, com a espada Flamejante em punho. Perséfone vinha logo atrás, os pés descalços flutuando centímetros acima do chão. Eu seguia no centro, vestindo a capa negra cravejada com pequenos olhos de ossos. Dentro de mim, as serpentes de raio negro se contorciam, pulsantes de mana morta.

    Estávamos indo para a parte mais profunda da selva que separava a muralha da zona de comando inimiga. Nosso objetivo era claro: infiltrar o quartel mágico de Abaddon e destruir o núcleo de controle que coordenava a névoa ilusória e as ordens telepáticas entre os soldados sitiadores.

    A floresta estava viva. Havia olhos nas cascas das árvores. Corvos imóveis. Sussurros nas folhas que não balançavam. Cada passo parecia ser observado por uma consciência maior.

    — Tem algo errado — Maximus murmurou, parando abruptamente.

    Perséfone ergueu a mão, e o ar à nossa frente tremeu. Um feitiço de ilusão foi desfeito, revelando uma rede de fios etéreos.

    — Alarme sensorial. Se tivéssemos atravessado… — ela começou.

    — Teríamos gritado nossa localização para o exército inteiro — completei.

    Usei minha visão ampliada para procurar uma nova rota. Enxerguei uma brecha. Foquei. Mirei. E então me teleportei. O mundo girou em sombras e estilhaços de luz negra. Caí ajoelhado. A dor no estômago era suportável, mas a adrenalina queimava.

    — Venham. É seguro por enquanto.

    Perséfone e Maximus surgiram segundos depois. Perséfone estava levemente ofegante. Maximus mantinha a espada apontada para o chão.

    Continuamos. Finalmente, encontramos a base de comando de Abaddon. Era um campo circular, com pilares de ossos e fogo verde. No centro, um altar feito de pedra pulsava como um coração. Três magos demoníacos canalizavam a energia mágica para mantê-lo ativo.

    — Elimine o altar — Maximus disse. — Rápido. Antes que eles percebam.

    — Deixe isso comigo — murmurei.

    Abaixei os olhos. As serpentes negras em meu corpo começaram a deslizar em espiral. Avancei com um salto, teleportando-me em linha reta até o pilar mais próximo. Em pleno ar, três serpentes dispararam das minhas costas e perfuraram os magos demoníacos. As sombras se retorceram. O altar começou a tremer.

    — Agora! — gritei. — Quebrem-no!

    Maximus correu e desferiu um golpe com sua espada flamejante. As chamas atravessaram a rocha viva. O altar explodiu em um grito sem som.

    Mas então… tudo parou. Silêncio. E uma voz ecoou por toda a floresta:

    — Impressionante… mas previsível.

    Era Abaddon. Ele nos deixou chegar até ali.

    A armadilha se revelou segundos depois. O chão sob nossos pés derreteu em símbolos demoníacos. Um círculo de contenção reversa. Maximus tentou pular para fora, mas mãos negras saíram do chão e o agarraram pelos tornozelos. Ele rugiu, mas a magia sugava sua energia vital. Perséfone ergueu um escudo de mana, mas a prisão era feita de uma versão corrompida da própria mana morta.

    Eu fiquei parado. Porque Abaddon apareceu. Não como um corpo, mas como um reflexo. Um vulto espelhado atrás de cada sombra. Cada árvore projetava sua silhueta.

    — Você é interessante, Hades — sua voz surgiu de todos os lados. — Um imperador morto… tentando amar. Tentando reinar. Tentando ser mais do que um fantasma com espada.

    — E você é só mais um cão do Rei Demônio — cuspi.

    — Talvez. Mas até cães sabem farejar podridão. E sua cidade… fede a esperança.

    Eu levantei a Vontade da Deusa.

    — Chegue mais perto. Vamos ver se você sangra.

    Mas ele não veio. Em vez disso, as sombras começaram a se fundir. Ele estava criando um avatar físico.

    — Perséfone! Preciso de uma abertura.

    Ela olhou para mim.

    — Confia em mim?

    — Sempre.

    Ela fechou os olhos. E começou a cantar. Não era uma canção de guerra. Era uma canção de amor. Em uma língua antiga. E enquanto ela cantava, a mana morta respondeu. As serpentes em meu corpo começaram a se multiplicar. Raios negros circundaram meu corpo. Eu me tornei o próprio epicentro do caos.

    E então, como um raio, teleportei-me direto para o coração da sombra.

    A espada cortou o avatar de Abaddon ao meio. Não matou o general, mas feriu seu orgulho. A prisão se desfez. Maximus caiu de joelhos. Perséfone correu até mim e me abraçou com força.

    — Vamos embora. Agora. Antes que ele volte com um corpo de verdade.

    E assim, sangrando e vitoriosos, voltamos para a torre de vigia de Noctavellis. E ao longe, o cerco… começava a recuar. Mas a guerra estava longe do fim.

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