Capítulo 9 - Deusa-Forjadora
Os dias se arrastavam em meio à poeira mágica da torre, e os treinos com Oliver começavam a pesar mais do que o corpo podia suportar. As manhãs começavam cedo, os músculos ainda doíam dos combates com esqueletos invocados por Pers, e antes mesmo que o sol aquecesse os girassóis, já estávamos de pé, eu, exausto; Oliver, implacável.
— Um mago de verdade não se faz com talento. — disse ele certa manhã, enquanto me obrigava a recitar dez vezes a mesma fórmula de canalização. — Faz-se com estudo, suor e disciplina.
Suas palavras eram afiadas como estocadas, sempre pontuadas pelo bater de sua bengala no chão e a fumaça púrpura que dançava em torno de nós como se zombasse da minha lentidão. Por mais que meu poder crescesse dia após dia, por mais que meus feitiços ganhassem força e precisão, ele nunca aliviava.
— Feiticeiros fazem pactos com espíritos. — disse ele em outro momento, enquanto rabiscava fórmulas no ar com a ponta incandescente do cachimbo. — Recebem poder em troca de algo que nem sempre estão dispostos a pagar. Os magos, esses, são ferreiros da alma: moldam cada feitiço com sangue e tempo. E depois temos vocês…
Ele me encarou, olhos estreitos, como se pudesse ver através da pele até as veias de mana que corriam sob ela.
— Os que são escolhidos pelos Deuses. Patronados, abençoados, tocados por algo maior. — A voz ficou mais grave. — Mas também os que sempre escorregam no básico. Porque acham que nascer com talento é o mesmo que estar pronto.
Aquilo doeu mais do que qualquer explosão mal controlada. E ele sabia.
— Está dizendo que eu sou preguiçoso? — questionei, tentando não deixar o orgulho me trair.
Ele apenas riu, uma risada rouca, seca, mais fumaça do que som.
— Estou dizendo que você será um grande apóstolo. Mas só se passar por cada etapa como qualquer outro. Não importa se é herdeiro de uma Deusa ou se a mana dança por seus dedos como vento entre folhas. Aqui, na minha torre, você vai sofrer como qualquer estudante.
Não havia como contestar. Por mais duro que fosse, Oliver não era injusto. Ele conhecia o peso do poder e a responsabilidade de carregá-lo. Se me fazia repetir conjurações simples até que os dedos latejassem, era porque queria me ver forte. Inteiro.
E, em silêncio, eu aceitava.
Mesmo quando desmaiava de cansaço. Mesmo quando minha mana parecia querer se esconder dentro do peito. Mesmo quando a fumaça púrpura me deixava tonto e as palavras dos feitiços embaralhavam como sonhos esquecidos.
Porque no fundo, eu entendia.
Um apóstolo que não conhece a base, quebra na primeira guerra.
E eu… eu não podia me dar esse luxo.
Certo dia, Oliver chegou antes do amanhecer à sala circular da torre mágica. A luz do sol ainda não tocava os vitrais encantados, e a névoa púrpura que sempre pairava perto do chão se movia lentamente, como se também estivesse acordando. Ele entrou sem dizer palavra, largou o livro empoeirado sobre a mesa e apontou com o cachimbo para o centro do salão.
— Hoje, vamos mexer com a mente. Literalmente.
Fiquei em silêncio, observando enquanto ele arrastava uma pequena pilha de pedras com a bengala, formando uma espécie de círculo rudimentar. Havia algo diferente em seu semblante, não o usual deboche, nem a teatralidade de sempre. Havia seriedade. Um tipo de solenidade que não combinava com o Oliver das piadas constantes.
— Telecinese — disse ele, soprando uma espiral de fumaça que girou sobre as pedras — é o princípio do domínio sutil da mana. Não é um feitiço destrutivo. É um feitiço de controle. Disciplina. Foco. Não basta ter poder, precisa ter precisão.
Me aproximei, e ele recuou com as mãos para trás como um maestro se afastando da orquestra.
— Quero que levante essas pedras com a força da sua vontade. Sem palavras mágicas. Sem selos. Só você… e a mana.
Me sentei. Respirei. Estendi a mão na direção de uma das pedras. A princípio, nada aconteceu. A mana se movia como se estivesse sonolenta, hesitante dentro de mim. Tentei de novo, murmurando palavras que nem eu compreendia. Uma das pedras tremeu… e caiu de lado como se zombasse de mim.
Oliver deu uma risada baixa.
— Está tentando empurrar com força. Errado. Telecinese não é uma briga de força bruta, é como pegar algo com os dedos da alma. Precisa sentir o peso, a textura, a resistência.
Respirei fundo. Fechei os olhos.
— Sinta a mana como se fosse uma extensão de você. Como se seus próprios dedos estivessem se alongando para tocar o mundo.
A pedra pareceu mais próxima, não fisicamente, mas em percepção. Senti sua frieza, seu tamanho, seu centro de massa. Era como se meus pensamentos tivessem ganhado mãos invisíveis. E, lentamente, ela se ergueu do chão, oscilando no ar.
— Aí está — murmurou Oliver com orgulho contido. — Agora outra. E depois outra.
Levei a manhã toda, mas ao fim, sete pedras flutuavam diante de mim como luas em miniatura, girando em órbita lenta. A sensação era estranha, como se parte de mim estivesse fora do corpo.
Oliver se aproximou e pegou uma das pedras no ar, examinando-a com os olhos semicerrados.
— Telecinese é o começo de tudo. Quando conseguir controlar objetos com delicadeza, será capaz de manipular não só a matéria… mas também o destino de uma batalha. Muitos desprezam esse feitiço por parecer simples. Mas os maiores conjuradores sabem: a vitória está nos detalhes.
Me levantei, os ombros pesados, mas o peito leve. Havia algo belo naquela forma de magia. Era como tocar o mundo sem machucá-lo.
Pers apareceu na porta, os braços cruzados, um sorriso discreto no rosto.
— Bonito de ver você aprendendo a pegar leve. Achei que só soubesse explodir coisas.
— Eu também — respondi, rindo.
E ali, no centro da torre, cercado por pedras flutuantes, fumaça de mana e o olhar atento da Deusa da morte, senti que meu caminho como mago dava mais um passo firme.
E então o treinamento mudou.
Oliver não explicou. Simplesmente chegou um dia, jogou o cachimbo em cima da mesa, apontou para o círculo mágico desenhado no chão com cinzas de tabaco, e disse:
— Chega de feitiçaria graciosa. Hora de suar.
Pers observava da sacada, sentada na beirada de um parapeito feito de ossos trançados, como uma imperatriz do silêncio. O vestido negro dela flutuava com o vento, e os olhos escarlates nunca piscavam. A presença dela me dava forças. Ou talvez me lembrasse que não podia recuar.
— Você quer se tornar um apóstolo? — continuou Oliver. — Então comece a sangrar mana.
Ele traçou um selo no ar. Simples. Brutal. Deu dois passos para trás como quem assiste a um sacrifício.
— Empurre tudo pra fora. Cada gota. Cada centelha. Sinta suas veias queimarem até implorarem por piedade. Esse é o refinamento real. — E com um sorriso torto, acrescentou: — Não se preocupe, não vai morrer. Só vai achar que está.
Fechei os olhos. Respirei fundo. E comecei.
A mana era como um rio soterrado, escondido sob camadas de carne e memória. Puxá-la para a superfície era fácil. Mandá-la embora era como arrancar a própria alma pelos poros. Era mais do que esgotar, era como abrir todas as comportas e assistir a represa interna desmoronar.
Minhas veias de mana gritavam. Ardiam. O corpo formigava com a força do esvaziamento. A torre girava ao meu redor como se estivesse flutuando em meio ao cosmos.
— Mais! — gritou Oliver. — Purifique pela dor! Refine pela fome!
Suor escorria pelo meu rosto. As mãos tremiam. Cada batida do coração era uma explosão silenciosa. O mundo parecia distante, como se estivesse mergulhado em água quente. A luz das runas se tornava mais intensa, como se respondesse à mana exalada.
Lá de cima, a voz de Pers soou como um cântico antigo.
— Hades… Você está quebrando as correntes. Continue. Seu corpo ainda é um casulo. Mas está rachando. Deixe que ele desabe. E quando sobrar só a essência… você renasce.
Ouvindo sua voz, empurrei mais. Como se minha vontade se tornasse uma lança empurrando cada gota de mana para fora. Meus joelhos fraquejaram. As pontas dos dedos ardiam como se fossem chamas. Uma dor profunda, tomou meu estômago. Mas eu continuei. Vomitei mana. Senti o corpo inteiro pulsar.
E então, de repente… silêncio.
Uma brisa cortou o calor. As runas se apagaram. Eu caí de joelhos, ofegante. Minhas mãos estavam pálidas, as veias sob a pele cintilando com um leve tom azul. Oliver se aproximou devagar, avaliando como um ourives avalia um diamante em formação.
— Você está mais leve, não está? — sussurrou ele. — É porque suas veias estão mais puras agora. Cada partícula de sujeira foi queimada. Amanhã… faremos de novo.
Eu queria rir. Ou chorar. Mas tudo o que consegui foi olhar para Pers. Ela não sorria. Mas seus olhos diziam tudo. Ela estava orgulhosa.
E por mais que meu corpo doesse, por mais que minha alma tivesse gritado… eu também estava.
Algo estava mudando.
Eu estava me tornando o que eu nunca havia sido em vida.
E este era apenas o começo.
Oliver se aproximou devagar, como quem contempla uma obra em progresso. Seu cachimbo já quase se apagara, e mesmo assim ele não o reacendeu. Apenas cruzou os braços atrás das costas e falou com aquela voz que misturava autoridade, sarcasmo e um toque inesperado de orgulho.
— Esse é o princípio, Hades — disse, apontando com a bengala para as minhas veias, ainda pulsando em tom de safira esmaecida. — O coração da minha técnica secreta: a Purificação das Veias de Mana. Poucos compreenderam o que isso significa… menos ainda sobreviveram ao processo.
Ele deu um passo ao lado e passou a andar em círculos ao meu redor, como se cada palavra devesse ser medida com precisão cirúrgica.
— Não é sobre força bruta. Não é sobre lançar uma bola de fogo maior que a cabeça. É sobre controle. É sobre presença. É sobre fazer com que uma única gota de mana valha mais do que rios de magia desperdiçada. — Ele parou e se inclinou, sussurrando como quem revela uma verdade proibida. — Magos comuns lançam feitiços com o corpo saturado de mana. Você, nos próximos dias… vai conjurá-los com o corpo quase vazio.
Engoli em seco. Só de lembrar da dor que acabara de passar, meu corpo já se encolhia instintivamente.
— Sim — continuou ele, captando meu desconforto. — Vai ser doloroso. Vai parecer que está forçando o ar para dentro de um pulmão quebrado. Seus ossos vão querer rachar, seus músculos vão gritar. Mas… — e aqui veio o sorriso — é assim que se faz um apóstolo de verdade. Um que não dependa de fartura, mas que transforme escassez em poder.
Pers, ainda sentada em seu trono improvisado de ossos e flores secas, cruzou as pernas e falou com suavidade:
— Ele está certo. Eu vi reis caírem porque confiavam demais no excesso. Mas vi Deuses menores ascenderem com o mínimo. O vazio é um mestre cruel… mas sincero.
— Então prepare-se — disse Oliver, já se afastando para preparar o próximo círculo mágico. — Porque nos próximos dias você vai conjurar sem reservas. E, Hades… quando você conseguir fazer um feitiço perfeito com um corpo seco como deserto, aí sim poderá dar os primeiros passos rumo ao domínio completo das artes arcanas.
Ele fez um gesto rápido no ar, e uma única runa brilhou na pedra à minha frente.
— Comece com isso. Um feitiço simples. Luz.
Eu ergui a mão trêmula, ainda com o corpo esvaziado de energia. Tentei. E falhei. Tentei de novo. A dor veio como um espinho encravado na alma, mas continuei.
Era apenas o começo da parte mais cruel do treinamento.
Mas cada falha, cada fisgada ardente nos ossos, cada tentativa tortuosa… me aproximava mais de algo que eu mal conseguia imaginar: ser digno do título de Apóstolo da Morte.
Outros dias vieram. E com eles, mais falhas.
E com as falhas… o sangue.
No começo era só suor quente, escorrendo da testa até os olhos. Mas logo veio o gosto metálico na boca, a visão embaçada, a sensação de que meu corpo estava tentando expelir a própria alma.
Suava sangue. Literalmente. As veias de mana se contraiam como serpentes enlouquecidas sob a pele, e cada tentativa de conjuração esvaziava o pouco que me restava por dentro. Era como puxar água de um poço seco com as mãos em carne viva.
— De novo — ordenava Oliver, impassível, os olhos escondidos sob as lentes redondas que refletiam minha fraqueza como espelhos frios. — Enquanto você sangrar, você está aprendendo.
E eu tentava. Tentava mesmo quando a vista escurecia, quando as mãos tremiam, quando os joelhos vacilavam. Tentava porque sabia que essa dor não era castigo. Era lapidação.
— Magia sem sacrifício não vale nada — disse Oliver em um dos dias em que caí de joelhos e não consegui me levantar. — O mundo está cheio de magos que decoraram fórmulas como papagaios e vivem de glória emprestada. Mas um apóstolo… um apóstolo sangra. Um apóstolo queima. Um apóstolo perde antes de ganhar.
Pers estava ali quase todos os dias, mas raramente intervinha. Observava, silenciosa, com os olhos rubros fixos em mim como brasas imóveis. Às vezes, ela erguia um dedo e curava os ferimentos mais críticos, ou murmurava palavras que soavam como consolo, mas que eu nunca ouvia por completo. Outras vezes, ela apenas me oferecia um olhar… um olhar que dizia que estava orgulhosa. Que estava doendo nela também.
— Você acha que é o primeiro? — sussurrou certa noite, quando eu mal conseguia falar. — Todos que caminharam até a beira do abismo sangraram. Você só está se juntando a eles.
E eu me juntei.
Mesmo sangrando pelos poros, mesmo com as veias como arames em brasa sob a pele, continuei. Dias, noites, febres, delírios.
E em meio a uma dessas febres, em um lampejo de dor tão pura que quase se tornou luz… conjurei.
Foi apenas uma esfera de mana. Fraca. Instável.
Mas ali, no meio do sangue e do silêncio, ela flutuou na palma da minha mão. Minha. Conjurada com quase nada.
E Oliver, ao ver aquilo, murmurou:
— Agora sim, Hades. Agora você começou a nascer.
O dia seguinte foi um daqueles em que até a luz parecia pesar sobre os ombros. Meus canais de mana estavam secos, exauridos por mais uma sessão de refinamento forçado. Eu mal conseguia levantar o braço, quanto mais conjurar algo além de um lampejo fraco de energia. Mesmo assim, Oliver apareceu diante de mim com o cachimbo aceso e aquele brilho enigmático nos olhos, aquele que sempre precedia uma lição que, de alguma forma, me destruiria e me moldaria.
— Hades… você já ouviu falar da Deusa Moradina?
Assenti com a cabeça, ofegante. O nome não era estranho. Entre as Sete, eu lembrava vagamente dela ser tida como a Deusa dos anões, das riquezas, das trocas.
— Muitos dizem que ela é a mais fraca das Sete Grandes — disse ele, soprando uma fumaça roxa que serpenteava como tinta viva no ar. — Seus domínios são humildes: terra, pedra, metal, riqueza. Mas mesmo os fracos têm dentes. E a magia dela é traiçoeira. É ouro disfarçado de lama. Tesouro disfarçado de armadilha.
Com um estalar de dedos, ele ergueu o cachimbo e deixou a fumaça se derramar pelo chão como neblina.
— O apóstolo dela… ninguém sabe quem é. Talvez nem ela mesma. Mas quando ele surgir, lutará assim — disse Oliver, os olhos flamejando com antecipação. — E você vai enfrentá-lo agora, Hades.
Antes que eu pudesse protestar, a fumaça púrpura se condensou, girando sobre si mesma, ganhando contornos e formas. Primeiro vieram os pés — pesados como blocos de granito. Depois, as pernas, o torso, os braços talhados como colunas antigas. Era um ser etéreo feito de pedra e ouro. As veias que pulsavam sob sua pele rochosa brilhavam em amarelo, como lava viva. Seus olhos eram duas moedas douradas incandescentes, e cada passo fazia o chão vibrar.
— Encare-o com quase nenhuma mana — ordenou Oliver com um sorriso cruel. — Como se estivesse em campo real. Porque um dia, estará.
Olhei para o ser diante de mim. A criatura não parecia apressada. Apenas esticava os ombros lentamente, como quem esperava que eu desse o primeiro passo. E eu estava vazio. Sentia o corpo frio, os músculos exaustos, as veias como rios secos depois de uma seca prolongada.
— Você quer que eu lute contra isso… com o que, exatamente? — perguntei, encarando Oliver.
Ele apenas sorriu e apontou para minha própria pele.
— Com o que sobrou. Seu corpo. Sua mente. Sua alma. A casca depois da magia.
A criatura deu o primeiro passo, e o solo sob meus pés tremeu. Rochas começaram a se erguer em torno dele, como se fossem chamadas por sua presença. Ele tocava o chão, e o chão virava ouro. Blocos preciosos se erguiam como muralhas. Era poder bruto. Inflexível.
Comecei a correr. Um instinto mais velho que o pensamento. Pulei por cima de um pilar dourado que surgia. Desviei de uma pedra que voou como uma lança. E pensei: “Se não tenho mana, vou usar o que me resta.”
Força. Técnica. Esperança.
Desviei de outro golpe. Rolei por entre suas pernas. E então, toquei o chão.
Lembrei do que Oliver disse. Terra. Pedra. Ouro. Tudo podia ser tocado. Transformado.
Fechei os olhos. Toquei o chão com a palma aberta. E mesmo com pouca mana… empurrei tudo que tinha.
Um pulso fraco. Um sussurro mágico. O suficiente.
O ouro ao meu redor… trincou.
O colosso dourado hesitou. Eu me aproveitei. Escalei seus ombros. Saltei. Girei no ar e acertei um chute com o peso do meu corpo inteiro em sua cabeça.
Ele caiu.
Pesado. Lento. E ainda assim… derrotado.
Fiquei ali, ofegante, tremendo, os joelhos quase cedendo.
Oliver se aproximou devagar, batendo palmas devagar com uma satisfação escandalosamente teatral.
— Que espetáculo… que alma teimosa. Se você conseguir vencer isso com o corpo quase morto, imagine o que fará com o sangue aceso nas veias.
Olhou para Pers, que observava de longe com um sorriso discreto, e disse:
— Ainda acho que você me enganou. Onde foi que você achou esse talento, Perséfone?
Ela apenas cruzou os braços e, com um tom suave e perigoso, respondeu:
— Eu não o encontrei. Eu o criei.
Oliver arqueou as sobrancelhas.
— Nesse ritmo, ele vai poder aprender minha técnica secreta antes do previsto…
Depois da batalha contra o colosso dourado, achei que teria um momento de descanso. Mas Oliver nunca foi generoso com o tempo, muito menos com a misericórdia. No dia seguinte, ele apareceu diante de mim com aquele mesmo sorriso de quem acabara de arquitetar algo terrível em sua mente teatral.
— Está pronto para enfrentar uma Deusa? — perguntou, entre baforadas preguiçosas do cachimbo púrpura.
Tentei responder, mas meu corpo ainda doía da última lição. Minhas palavras saíram como um suspiro:
— Uma Deusa…?
Ele ergueu a bengala, girou o cachimbo nos dedos e murmurou um encantamento em voz baixa. A fumaça roxa se ergueu novamente ao redor de nós, mas desta vez… ela cantava. Sim, havia uma melodia sutil na névoa mágica, como se as partículas de mana ressoassem com um eco distante, vindo das profundezas de Chaia.
Do centro da névoa, surgiu uma figura.
Ela era estranha.
Muito baixa para uma humana. Muito alta para uma anã. Pele bronzeada, como metal quente moldado na forja. Cabelos negros, grossos, caindo em ondas até a cintura. Os olhos tinham a cor do âmbar, não o dourado do ouro, mas algo mais antigo, mais estável, mais… eterno. Vestia roupas de mineira e guerreira ao mesmo tempo, adornada com joias simples, feitas com pedras preciosas brutas. O martelo em suas costas parecia pesar mais do que uma montanha.
— Esta é Moradina — disse Oliver, e havia respeito em sua voz, talvez até medo. — Ou ao menos, a ilusão mais fiel que consegui criar. Ela não fala muito. Mas não se engane… essa imagem carrega cada fragmento do estilo de combate dela, cada arte, cada silêncio.
A Deusa-forjadora inclinou levemente a cabeça para mim. E então, veio o primeiro golpe.
A luta durou dias. Talvez semanas.
Ela não era rápida. Não era ágil. Mas era como a terra: inevitável. Cada movimento dela parecia pesar toneladas. Cada feitiço conjurado causava tremores reais. Eu me protegia com tudo que tinha: barreiras de mana, feitiços básicos, esquivas desesperadas, ilusões improvisadas.
Não adiantava.
Ela caminhava por cima das minhas defesas como se fossem cascalho. Criava estalagmites que brotavam do chão para me empalar. Transformava as pedras em ferros e os ferros em grilhões. Às vezes, nem se mexia, apenas me olhava, como se dissesse: “Não adianta correr da terra, Hades.”
E ela estava certa.
Eu tentava tudo. Esferas de mana. Telecinese. Rituais de empurrar o pouco poder que me restava pelas veias queimadas. Mas era como lutar contra uma lenda que se recusava a cair no esquecimento.
Pers assistia. Em silêncio. Sempre no alto de alguma coluna de pedra, os cabelos brancos flutuando com a brisa tênue, olhos atentos. Nunca interferia. Nunca aplaudia. Apenas… observava.
No fim, caí de joelhos.
Coberto de sangue, terra e suor, percebi que não conseguiria vencê-la.
A ilusão de Moradina caminhou até mim, olhou-me de cima e ergueu o martelo como se fosse concluir sua sentença. Mas, ao invés de golpear, ela apenas bateu a ponta do cabo no chão. A fumaça roxa explodiu ao nosso redor e, quando recobrei a consciência, estava deitado no chão da torre mágica. A dor ainda latejava em todo o corpo.
Oliver estava sentado numa cadeira reclinável conjurada da fumaça, soprando anéis de mana que flutuavam pelo ar.
— Bom esforço, Hades — disse ele, com um ar satisfeito. — A maioria dos magos não teria sobrevivido mais do que alguns minutos.
Tentei me levantar. Falhei. Sorri com amargura.
— Eu perdi…
Ele riu.
— Claro que perdeu! Era a representação de uma Deusa, garoto. Mas você aprendeu o mais importante.
— O quê? — perguntei, arfando.
Oliver apontou o cachimbo para mim como um professor com uma régua.
— Que perder também é magia. Que resistência é um tipo de feitiço. Que o mundo vai tentar te enterrar e, mesmo assim, você deve continuar crescendo, como uma raiz no abismo.
Pers apareceu ao meu lado. Ajoelhou-se. Acariciou meu rosto com ternura. E, com um sussurro quase imperceptível, murmurou:
— Você aguentou mais do que qualquer outro mortal que já vi. Estou orgulhosa.
Naquele momento, percebi: vencer não era o ponto.
Sobreviver era. E, nesse jogo cruel que era o mundo dos Deuses… isso já era um milagre.
Outros dias passaram. Os treinos tornaram-se quase automáticos, como respirar ou sobreviver. A cada manhã, eu me levantava com dores e marcas novas. A cada noite, adormecia com mais dúvidas do que respostas.
Mas naquele ciclo sem fim de conjurações e tentativas, houve um momento em que tudo mudou.
Na mais recente das muitas lutas contra a ilusão de Moradina, algo dentro de mim… quebrou. Ou melhor, rompeu. Como uma represa que cede ao peso de suas próprias paredes.
Durante o combate, consegui finalmente copiar um dos truques da Deusa anã. Levantei as mãos e invoquei estalactites de mana sólida que desceram do teto como lanças brilhantes, fendendo o ar com precisão quase divina. As rochas mágicas desabaram em torno dela, forçando-a a recuar.
Foi a primeira vez que a vi hesitar.
Mas, mesmo assim, eu ainda não conseguia vencê-la. Ela era um peso antigo demais para ser movido tão facilmente.
Porém, naquela última luta… eu senti. Senti minhas veias queimarem de um jeito diferente. O fluxo de mana dentro de mim estava mais limpo, mais rápido, mais… vivo.
Quando o combate terminou, eu caí de joelhos, arfando. O suor escorria em rios. A ilusão da Deusa se dissipou em poeira dourada. Antes que eu pudesse entender o que havia acontecido, Oliver surgiu com um estalo teatral de seus dedos, envolto pela fumaça púrpura como sempre.
— Pare. — disse ele, erguendo a bengala. — Chega de pancadaria por hoje. Algo mudou.
Olhei para ele, confuso. Sentia meu corpo em frangalhos, mas havia uma energia nova pulsando em mim, como uma batida de tambor que ecoava em todas as direções. Uma batida que não era do coração… mas da mana.
— Você chegou lá, garoto. — disse ele com um sorriso orgulhoso, um brilho raro nos olhos. — Grau de pureza três. Parabéns.
Eu pisquei.
— Eu… consegui?
Pers apareceu atrás de mim, sorrindo. Havia um orgulho calmo em seu olhar, como se ela já soubesse disso muito antes que nós dois. Ela apenas assentiu, sem palavras, como se dissesse: “Você está pronto para o próximo passo.”
Oliver então se virou e caminhou até uma estante flutuante que ele conjurara do nada, cheia de grimórios e pergaminhos pulsando com mana residual. Passou os dedos pelas lombadas até puxar um livro encadernado em couro escuro, gravado com símbolos antigos que dançavam na superfície.
— Agora — disse ele — está na hora de aprender feitiços dignos do seu novo nível.
Abriu o grimório e as páginas se folhearam sozinhas, parando em um capítulo marcado com uma runa que brilhava em azul. A fumaça do cachimbo se enrolou pelas bordas do livro como se quisesse lê-lo junto.
— Estes são feitiços de terceiro círculo. Magias que exigem não só poder bruto, mas também controle. Agora que sua mana está mais limpa, você pode executá-las sem explodir o próprio corpo. Com sorte.
— Com sorte? — repeti, levantando uma sobrancelha.
— Sim. — respondeu ele, já gesticulando como um maestro prestes a iniciar uma sinfonia. — Porque agora começamos a brincar com o que é possível… e o que não deveria ser.
Pers se aproximou e segurou minha mão, o calor de sua pele sempre firme, constante. Olhou nos meus olhos e disse com ternura:
— Cada passo é mais perigoso que o anterior. Mas você não está mais engatinhando. Está começando a andar.
— E depois… a correr? — arrisquei.
Ela sorriu.
— Depois, a voar.
E com aquelas palavras, voltamos para o centro da torre mágica. Os círculos de mana se acendiam ao redor de nós, e o mundo todo parecia prender a respiração. Eu estava pronto para o próximo feitiço.
Pronto para continuar a me tornar o que sempre temi e desejei: um soldado poderoso e um herói de guerra.
Oliver me olhou longamente naquele dia, enquanto as runas do grimório ainda brilhavam em azul-claro ao nosso redor. Seu olhar não era como antes, nem irônico, nem teatral. Era pesado. Quase… frustrado.
— Você tem talento para isso, garoto — disse, finalmente, tirando o cachimbo da boca e deixando a fumaça escapar devagar. — Um talento raro.
— Para…?
Ele apontou com a bengala para a área onde os estalactites mágicos haviam surgido dias atrás, ainda marcando o chão de pedra com pequenas rachaduras encantadas.
— Solidificação de mana. Criar forma a partir da energia pura. Não moldar através dos elementos… mas da essência. Você fez aquilo sozinho, sem que eu ensinasse. Isso não é pouca coisa.
— Então por que não me ensina? — perguntei, tentando esconder a empolgação. — Eu posso aprender. Eu quero aprender.
Ele suspirou, afundando na cadeira flutuante que sempre conjurava quando queria dar discursos.
— Porque esse tipo de magia não é minha especialidade — confessou, sério. — É arte delicada. Complexa. Demasiadamente profunda. Eu poderia te ensinar rudimentos, mas você queimaria o espírito tentando seguir pelo caminho errado. O que você fez foi um vislumbre… uma intuição. Uma semente. Mas para que ela floresça, você precisará de outro mestre.
— Quem?
— Ainda não sei ao certo. — disse, olhando para Pers como se esperasse que ela completasse a resposta.
Ela se manteve em silêncio por um momento, depois desceu calmamente dos degraus da torre onde sempre observava tudo. O vestido negro arrastava-se como uma névoa viva, os olhos escarlates fixos em mim.
— Você já percebeu, Hades… que há coisas que só florescem no inverno? — disse ela com sua voz serena, quase como uma canção sombria.
— Solidificar mana não é só uma técnica. É uma filosofia. É construir com o que não tem forma. Dar matéria à essência. Isso… isso é coisa de criadores, não apenas de magos.
Oliver acenou com a cabeça.
— Exatamente. Eu sou um destruidor elegante. Um mestre da manipulação, da ilusão, da erudição. Mas solidificação de mana? Isso pertence aos que ousam construir o impossível.
— E você vai me levar até esse mestre? — perguntei, sentindo uma mistura de excitação e medo. Como sempre.
— No tempo certo. — respondeu Pers. — Primeiro, você precisa estar pronto. Seus canais de mana ainda não aguentariam o que vem a seguir.
Oliver bateu com a bengala no chão e o grimório se fechou com um estalo.
— Por hora, concentre-se no que posso te ensinar: feitiços de círculo, refinamento das veias, telecinese, velocidade de conjuração. E quando for hora… — ele tragou fundo e soltou uma fumaça que se torceu no ar, formando a imagem de uma figura envolta em véus, com mãos que moldavam formas no vazio — …quando for hora, você conhecerá aquele que constrói mundos.
O frio subiu pela espinha. Eu não sabia o que significava encontrar alguém assim.
Mas sabia que meu caminho estava longe de terminar. E cada passo, mesmo os que me levavam para longe de Oliver, ainda estavam sob os olhos atentos de Perséfone.
Dias se passaram. Treinos, suor, falhas. Magia e sangue, tudo misturado em um ciclo exausto e constante. Mas naquele fim de tarde, algo mudou.
Pers me chamou com um sorriso diferente. Não era o de provocação, nem o de sabedoria oculta, nem mesmo o de ternura divina que às vezes brilhava quando achava que eu não estava olhando. Era um sorriso… simples. Humano.
— Você já me deu um presente, Hades. Um dos mais bonitos que já recebi. — disse ela, puxando minha mão suavemente. — Hoje, é minha vez.
Não entendi no início. Mas também não importava.
Ela me levou até um lugar nos arredores da vila de esqueletos — uma clareira cercada de girassóis que nunca pareciam murchar. A brisa era morna, carregando o perfume das pétalas e da terra viva. No centro da clareira, uma toalha foi estendida por mãos invisíveis. Sobre ela, uma chaleira fumegante, duas xícaras de porcelana, e uma lata de biscoitos meio amassada. Ela me olhou com um brilho nos olhos:
— Nada de necromancia, nada de história, nada de feitiços. Hoje, você descansa.
Sorri. Não discuti.
Sentamos juntos, e ela me serviu o chá. Tinha gosto de algo que não sei explicar. Não era só doce. Tinha memória. Quase como o gosto de um abraço que você sentiu na infância e esqueceu até o momento em que o paladar o trouxe de volta.
— O chá tem essência de folha de eternália. Dizem que quem bebe esquece da dor por uma tarde. — comentou, soprando a xícara. — Mas só funciona se você estiver disposto a esquecer.
— Acho que posso tentar. — respondi.
Comemos biscoitos. Os esqueletos da vila, à distância, continuavam suas tarefas como sempre — ironicamente vivos, rindo entre martelos e violinos, dançando nas praças com suas roupas esfarrapadas. Às vezes parecia que nós éramos os mortos ali.
Conversamos por horas. Sobre tudo. Sobre nada. Ela me contou que adorava subir em árvores quando era mais jovem, mesmo que árvores não crescessem naturalmente no seu domínio. Que odiava quando alguém falava enquanto ela lia, mas que gostava da minha voz. Que já sonhou uma vez com um jardim que não existia em nenhum plano. E que talvez um dia o plantaríamos juntos.
Em algum momento, o chá acabou. O sol mergulhava nas bordas do mundo, tingindo tudo de dourado. Deitamos no campo, os girassóis sussurrando em volta como uma multidão silenciosa.
Fiquei olhando para o céu. Nuvens suaves atravessavam lentamente, e o mundo parecia suspenso.
Ela se aproximou, deitou-se com a cabeça sobre meu peito. O silêncio que seguiu não era incômodo. Era pleno. Seus cabelos brancos escorriam sobre mim como neve morna, e eu sentia seu corpo respirar devagar, em ritmo com o meu.
— Você construiu uma estátua de mim. Com sua magia. — murmurou ela, já meio sonolenta.
— Porque é o que eu mais amo. — respondi, quase sem pensar.
Ela sorriu, mesmo de olhos fechados.
— Você não faz ideia do quanto isso significa para alguém como eu.
As palavras sumiram no ar. O tempo ficou leve. E antes que eu percebesse, ela adormeceu.
Ali, no meio de girassóis eternos, com o coração batendo devagar contra o dela, percebi que mesmo a morte sabia amar. E que mesmo eu, morto, podia viver de novo.
Naquele instante, Chaia parou. E eu não queria estar em nenhum outro lugar.
Regras dos Comentários:
Para receber notificações por e-mail quando seu comentário for respondido, ative o sininho ao lado do botão de Publicar Comentário.