Capítulo 1 - Saudações da Morte
Antes, se alguém me perguntasse se eu acreditava em algum dos deuses de uma das milhares de religiões que existem, eu a mandaria se foder.
E se o assunto chegasse a crença de uma possível vida após a morte, eu a mandaria para uma patrulha de turno dobrado.
Se tinham energia e tempo para pensar em algum deus ou se existe algo melhor do que essa merda, essa pessoa provavelmente estava melhor que a maioria dos humanos que ainda estavam vivos na Terra.
Ainda me lembro vagamente de meus tempos de escola: meu professor de filosofia, entre uma puxada e outra de seus charutos caros, eram presentes de seus amigos de Cuba, dizia e apresentava para a turma um problema sobre a natureza de Deus.
Era chamado de paradoxo de Epicuro e é expresso por três afirmações: Se Deus é onipotente, Ele pode acabar com o mal; Se Deus é onisciente, Ele conhece o mal; Se Deus é bom, Ele quer acabar com o mal.
Como o mal existe, uma das afirmações deve ser falsa. A questão é: qual. Epicuro, como materialista, argumentava que a única solução plausível era a inexistência de Deus, pois o mal é uma característica do mundo material.
Eu achava tudo aquilo uma bobagem e não ligava para a existência de um todo poderoso que sabia, deixava de saber, praticava ou até mesmo se regozijava com o mal. Na época em que conheci essas ideias, tudo aquilo me parecia uma abstração arrogante de alguém que jamais teve de enterrar os próprios pais. Filosofar sobre o mal com um cálice de vinho e uma toga limpa era confortável demais. Eu não via sentido em pensar num Deus, seja para negá-lo ou defendê-lo, enquanto segurava a mão da minha irmã de oito anos, órfã e com fome, cercada por um mundo em chamas.
Naquela época meus pais tinham acabado de falecer na guerra e eu tinha uma irmã mais nova para sustentar. Eu tinha um único objetivo: eliminar todos que tinham feito isso com eles.
Terceira Guerra Mundial, eu cresci ouvindo rumores de uma. Quase não acreditei quando as forças Nazistas romperam as frentes da Resistência, meu pai era capitão do 35° Batalhão de Defesa que estava estacionado na parte sul da Europa, minha mãe era uma médica de guerra também do mesmo batalhão.
O que se seguiu após isso foram uma sequência de ataques impiedosos e bombardeios incessantes, meu pai foi dado como morto dias após o começo dos ataques e alguns dias depois minha mãe teve o mesmo destino. Nada de mortes heróicas, histórias grandiosas ou grandes feitos como um sacrifício nobre. Essas mortes, sem sentido, sem poesia, me ensinaram a única verdade que parecia resistir à carnificina: não existe morte digna.
O corpo se esvazia, o intestino relaxa, os olhos ficam abertos. A dignidade humana é uma construção que se dissolve com a primeira rajada de metralhadora. Meu pai foi executado após o cerco à base onde servia. Nem resistiu, pelo que soube. Minha mãe morreu num bombardeio aéreo ao hospital de campanha. Ela tentava salvar outras vidas. E perdeu a própria. Um tipo de ironia que nem a mais ácida filosofia grega poderia prever.
Nenhum deles eram protagonistas nessa guerra, apenas soldados comuns, peões em um tabuleiro maior. Eu sempre jurei ser maior do que tudo isso, vencer a guerra e dar uma vida boa para a minha irmã, por isso me alistei na resistência e servi como recruta no 40° batalhão, após várias batalhas e contribuições a promoção para General dos batalhões 45 ao 47 veio naturalmente, eu estava perto do meu sonho de tornar-me o protagonista dessa história.
Mas a guerra não dá espaço para protagonistas. Só para sobreviventes e cadáveres.
Como tem sido a minha vida toda, a felicidade sempre escapa entre os meus dedos. Como general responsável por três batalhões, raramente sobrava tempo para ver minha irmã, claro que trocávamos mensagens constantemente, mas faziam meses que eu não a encontrava pessoalmente. Certo dia, as forças Nazistas deram um recuo perceptível, cederam vários quilômetros de terra, numa zona onde inúmeras vidas foram perdidas por apenas alguns centímetros de terra.
Cair da própria altura machuca, cair de cima de uma cadeira machuca ainda mais, se você cair de cima de uma árvore, provavelmente quebrará um braço, porém, quantos sabem quanto dói cair do céu?
Na época eu já era considerado um grande soldado e um dos principais generais da Resistência, mas me faltava algo que sempre ao longo da história definia batalhas e guerras: experiência.
Bêbado pela minha própria arrogância e vaidade pensei que aquele era um sinal de desistência, que meus esforços finalmente tinham valido a pena e que eu estava finalmente a um passo de me tornar o protagonista dessa história.
Com a ideia de ir visitar minha irmã, precisava vê-la viva, lembrar por quem eu lutava. Ordenei que minhas tropas avançassem e deixei o comando direto de campo ao meu primeiro encarregado e cometi o maior erro da minha vida. No trem, enquanto observava a paisagem destruída, recebi a mensagem: era uma emboscada. Não foi retirada, foi estratégia. Os batalhões que confiei ao meu segundo em comando foram aniquilados. Centenas de homens e mulheres mortos, por minha vaidade.
Todos os homens que confiaram suas vidas em mim, todos que me tinham como ídolo, alguém para se inspirar e se espelhavam em mim estavam mortos. Assim como meus pais. Não foram mortes honradas e muito menos heroicas, foram mortes assim como qualquer outra.
Quando cheguei à cidade, os céus já estavam riscados pelos bombardeiros. O chão tremia. As casas desabavam. Crianças corriam entre as ruínas. Eu vi rostos que um dia sorriam para mim sendo engolidos pelas chamas. Todas destruídas por causa da minha arrogância e sede de protagonismo.
Tudo o que jurei proteger… se desfez como fumaça.
Se eu ao menos não tivesse saído do meu posto, será que as coisas teriam sido diferentes? Eu teria conseguido parar os avanços inimigos ou teria perecido igual meus pais? Teria eu alguma chance contra centenas de soldados, tanques e bombardeiros? Nada disso mais importava e nem ao menos sei porque estou remoendo esses pensamentos agora.
Porém, as lembranças de minha antiga casa destruída e os restos do cadáver da minha irmã eram as únicas coisas que mantinham meus pensamentos sãos e me ajudavam a seguir rumo adiante meu objetivo.
Às vezes, no silêncio entre um disparo e outro, quando o eco das explosões parece distante o bastante para que a mente escape, eu lembro dela. Não como nos últimos dias: pálida, com medo, olhando para o céu como se esperasse que algo descesse e a levasse embora. Lembro dela como era antes da guerra se tornar tudo o que existia.
Ela tinha um sorriso pequeno, meio torto, que só aparecia quando eu a surpreendia com alguma coisa: uma maçã escondida no bolso, um livro ilustrado salvo dos escombros de uma biblioteca, ou quando eu a fazia rodar no ar, mesmo com o estômago vazio e o corpo moído pelo peso da resistência.
Uma vez, depois de termos caminhado por dois dias para fugir de uma cidade em chamas, paramos num campo de trigo, onde o céu era cinza, mas ainda havia silêncio, um tipo raro de silêncio. Ela deitou no meu colo e disse, com a voz leve como as nuvens:
— Quando tudo isso acabar… você acha que a gente vai poder plantar girassóis?
Nunca soube o que responder. As crianças perguntam coisas que não têm resposta. Talvez por isso sejam as primeiras a morrer na guerra, não porque o corpo delas é frágil, mas porque o mundo já não tem mais espaço para esse tipo de pergunta.
Outra memória me veio à mente: eu a ensinei a amarrar os cadarços. Estávamos escondidos num porão com outras duas famílias. Ela sentava ao meu lado, tentando, errando, e tentando de novo, enquanto eu repetia como se fosse um jogo:
— O coelho dá a volta na árvore, entra na toca…
Ela ria. O riso dela quebrava o medo como o sol quebra a névoa da manhã.
— Mas por que o coelho daria a volta na árvore se ele pode entrar direto na toca?
Eu nunca pensei numa resposta. Mas hoje penso que ela sempre entendeu o absurdo do mundo melhor do que eu.
Teve também a noite em que o hospital foi bombardeado. Eu a abracei enquanto o céu descia em ruínas. Os olhos dela estavam fixos no teto como se quisessem atravessar o concreto. Ela tremia, mas não chorava. Apenas dizia:
— Fica comigo. Só até parar.
E eu fiquei. Mesmo com o teto tremendo, mesmo com os gritos, com o sangue escorrendo das rachaduras, eu fiquei. Porque era tudo o que podia fazer.
A última vez que a vi foi num retrato. Uma fotografia desbotada, tirada por um soldado amigo meu meses antes. Ela está com as mãos sujas de terra, mexendo num vaso improvisado feito de lata de ração. Tinha conseguido plantar alguma coisa, não sei se flores ou mato. Mas o olhar dela estava cheio de esperança. Como se, no meio dos destroços, ainda acreditasse que algo bonito pudesse nascer.
Depois disso, restou apenas o silêncio.
Eles disseram que foi rápido. Que as bombas caíram tão depressa que ela sequer deve ter percebido. Mas eu não acredito nisso. Eu a conhecia. Ela deve ter sentido. Deve ter entendido. E deve ter me esperado. Talvez até tenha acreditado que eu viria salvá-la. E isso me destrói mais do que qualquer bomba poderia.
A lembrança dela me fere e me salva. Quando o mundo perde sentido, eu volto àquelas tardes em que fingíamos que o tapete do abrigo era um campo, que os pedaços de pão eram um banquete, que as histórias que eu contava antes dela dormir eram reais. Ela acreditava em tudo. E porque ela acreditava… por algumas horas, eu também acreditava.
Agora, ela é a voz na minha cabeça que diz para continuar, mesmo quando tudo grita o contrário. É por ela que eu ainda respiro. Não para fazer justiça, a justiça morreu com os inocentes. Não para me redimir, a culpa é mais funda do que qualquer perdão.
Eu respiro por memória. Pela única flor que tentou crescer em meio aos escombros.
E às vezes, à noite, quando o vento sopra por entre as tendas, quase posso ouvi-la sussurrando:
— Quando tudo isso acabar… você vai plantar girassóis?
E eu respondo, baixinho, com um nó na garganta:
— Vou, maninha. Por você, eu vou.
Outra lembrança da minha época de escola assim como um tsunami inundou minha mente. Era outra aula daquele professor de filosofia, não lembro do que se tratava mas ele falava alegremente de Nietzsche.
Nietzsche dizia que a dor profunda nos obriga a cavar poços de sentido e que aqueles que têm um “porquê” podem suportar quase qualquer “como”. Mas e se o “porquê” se quebrar? E se, em vez de encontrar um sentido, tudo o que há seja um abismo?
Eu costumava rir das questões de Epicuro. Hoje, eu entendo. Não como teoria, mas como carne. Como silêncio. Porque não há resposta definitiva. Nenhuma lógica consola o homem que enterra os amigos com as próprias mãos.
Deus? Não sei. Se Ele existe, sua bondade não é a que aprendemos nas igrejas, nas canções ou nas preces. É uma bondade escura, que permite o caos e assiste ao sofrimento como quem contempla uma tragédia anunciada.
Mas talvez o erro seja nosso, ao querer que Deus seja compreensível. Talvez sua bondade seja como o universo: imensa, impessoal, indiferente às nossas tragédias pessoais. Ou talvez ele simplesmente não exista. E tudo isso seja obra do acaso, da matéria em colisão, da evolução cega.
No fim, talvez o erro de Epicuro tenha sido esperar que a lógica solucionasse o sofrimento. O mal não se resolve como uma equação. Ele atravessa. E às vezes, sobreviver é o único ato de resistência possível.
Antes que eu pudesse me afogar ainda mais nesse tornado autodepreciativo e continuar olhando para o abismo até que ele olhe de volta para mim um dos meus soldados entrou nos meus aposentos. Ele estava assim como todos nós, com as roupas desarrumadas, cabelo bagunçado e uma aparência suja no geral.
Ele disse que os preparativos para a solução final estavam completos. Para eles a solução final era um ataque final contra a base Nazista, que nos faria ganhar quilômetros de terra em um único assalto, mas na verdade não passava de um ataque suicida orquestrado por um homem que perdeu tudo e estava observando o abismo por tempo demais.
Ataque suicida. Nunca gostei do termo. Como se houvesse algo de voluntário na decisão. Como se os homens que caminham de encontro à própria morte o fizessem por fé cega ou loucura. Às vezes, é só porque não há outro caminho. Às vezes, morrer é menos cruel do que continuar.
A Companhia da Morte era composta por noventa e quatro homens. Velhos para lutar, jovens demais para morrer. Alguns eram ex-civis, trabalhadores que haviam trocado as ferramentas por fuzis. Outros eram soldados experientes, marcados por cicatrizes que iam além da carne. Nenhum deles era herói e nenhum deles pediu para estar ali.
Após minha falha nas linhas de frente eles eram a única coisa que poderia ser confiada a esse comandante que alguma vez já foi um herói de faz de contas.
Emiti a ordem em uma madrugada úmida, quando o frio cortava como faca e a lama se misturava ao cheiro de óleo e pólvora. A ideia era que o setor Leste da cidade de Braten fosse retomado a qualquer custo, “a qualquer custo”, sendo o código que os generais, no caso eu, usam quando já aceitam perder todos que enviarem.
A inteligência indicava uma linha defensiva enfraquecida. Mentira. Sempre é. Sabíamos disso. Mas olhamos uns para os outros e ninguém recuou. Não porque queríamos morrer, mas porque alguém precisava ficar entre os canhões inimigos e os comboios de civis tentando escapar pelas passagens subterrâneas.
Partimos antes do amanhecer. O céu estava baixo, coberto de nuvens negras, e o som dos motores era o único consolo no silêncio da morte que nos aguardava. Cruzamos os escombros da antiga linha de trens, onde crianças costumavam brincar antes da guerra. Agora, o que restava eram trilhos retorcidos como costelas quebradas.
Avançamos em três frentes. Uma unidade pela avenida central, outra pelos flancos, e eu com o grupo Alfa, uma subdivisão da Companhia da Morte, pela parte subterrânea: os esgotos e corredores de manutenção. A ideia era simples: causar o máximo de estrago possível, desestabilizar as defesas inimigas, e abrir uma brecha para que os batalhões de reforço tomassem o controle.
Simples. Como se a morte fosse uma equação.
Quando emergimos do subterrâneo, o inferno já havia começado. As metralhadoras inimigas varriam o ar como lâminas invisíveis. Vi o cabo Smith, um homem que gostava de contar piadas sujas e falava da filha todo domingo cair com um tiro no pescoço. Não gritou. Só caiu, os olhos abertos, o sangue pulsando como um relógio quebrado.
Ninguém parou.
Explodimos os primeiros veículos com granadas improvisadas. Usamos tudo: fogo, fumaça, ódio. Atirávamos como se nossas mãos fossem extensões do próprio desespero. E por um instante, um mísero instante, achei que conseguiríamos. Os alarmes soaram do lado inimigo. Os rádios captavam confusão. Havíamos desorganizado eles.
Mas aí vieram os drones. E os tanques. E a artilharia pesada que guardavam para momentos como esse, momentos em que sabiam que a Resistência não tinha mais opções.
Nosso flanco foi destruído em menos de dois minutos. Vi homens sendo reduzidos a poeira, carne voando no ar, gritos que pareciam vir do centro da Terra. O sargento Ayo, que havia me ajudado a segurar o corpo do meu pai meses antes, foi carbonizado diante de mim quando uma bomba incendiária caiu a poucos metros.
Eu me lembro de tentar gritar uma ordem… mas não sei se alguém ouviu. O som era demais. O cheiro, pior ainda, ferro, sangue, suor, medo queimado no ar.
No fim, restaram apenas sete de nós. Escondidos entre as ruínas de um prédio. E então, algo que nunca esquecerei: um dos soldados mais jovens, apenas 18 anos, estendeu um detonador improvisado. Um explosivo de impacto colado ao peito. Olhou pra mim e disse:
— Se eu for, vocês conseguem sair.
Eu não respondi. Não consegui. Ele apenas correu. Gritando algo que parecia uma prece ou talvez o nome da mãe. Se atirou sobre um dos blindados. A explosão engoliu o quarteirão inteiro. Três segundos depois, conseguimos avançar.
A ofensiva foi retomada. Os reforços chegaram. A cidade de Braten foi reconquistada… e a Companhia da Morte foi extinta.
Quando tudo acabou eles chamaram de “operação bem-sucedida”. Eu chamei de massacre útil.
Nos relatórios, colocaram medalhas. Nos caixões, nomes. Mas ninguém contou o que aconteceu nos olhos de cada um daqueles soldados antes de apertarem os gatilhos. Ninguém viu o sargento Yurek rezando com os dedos sujos de sangue. Ninguém viu o soldado Ellis escrevendo uma carta às cegas, com um lápis mordido entre os dentes porque as mãos haviam sido arrancadas por estilhaços.
E ninguém fala sobre o fato de que eu dei a ordem. Fui eu quem disse “avancem”. Fui eu quem acreditou, ou fingiu acreditar, que era possível vencer.
À noite, quando estou sozinho, escuto os passos deles. Lembro de cada nome, cada rosto. Repito em silêncio como um rosário invertido. Não porque acho que me perdoariam, mas porque me recusar a esquecê-los é a única forma de mantê-los vivos.
Ataque suicida? Talvez. Mas para mim, foi outra coisa.
Foi um grito. Um último grito contra um mundo que já havia desistido de ser salvo.
Dias depois, quando pensávamos que tínhamos conseguido pelo menos uma grande vitória, a sirene tocou uma vez. Depois duas. Na terceira, já sabíamos que não era um alarme de teste.
Eu estava no alto de um dos prédios do setor administrativo, olhando para o horizonte com meus binóculos, quando vi. Primeiro, eram só pontos negros no céu. Pequenos, enfileirados como formigas em marcha, mal visíveis na aurora escura que nascia atrás das montanhas do Leste. Mas logo o som os alcançou. Um zumbido grave, constante, pesado. Como se o próprio céu estivesse se rompendo por dentro.
Bombardeiros. Centenas.
Eles vinham em formação cerrada, como uma muralha voadora, cobrindo o céu de aço e morte. O sol da manhã mal conseguia atravessar o enxame de asas e turbinas. O chão começou a tremer antes mesmo da primeira bomba cair. As janelas vibravam como cordas tensas prestes a se partir. Os pássaros, os poucos que ainda existiam, fugiram em bando, rasgando o ar com gritos desesperados.
As ordens foram imediatas:
— Evacuar civis. Todas as tropas para os abrigos antiaéreos. Pronto para contato em quinze minutos.
Mas sabíamos que não haveria tempo. Não para todos.
A primeira onda de bombas caiu no distrito industrial. O chão se ergueu como se tentasse fugir de si mesmo. As fábricas, antes escuras e silenciosas, explodiram em colunas de fogo e aço retorcido. A cidade estremeceu. O ar se tornou pesado, tóxico, cheio de fuligem e fragmentos de vidro voando em todas as direções.
Logo depois, o setor hospitalar foi atingido. Vi, com meus próprios olhos, o prédio da ala pediátrica implodir como uma flor de concreto esmagada por um punho invisível. Médicos correram com crianças no colo, cobertos de poeira, sangue e desespero. Algumas bombas não explodiram ao tocar o chão. Elas esperaram. Temporizadas. Malditas. E quando os socorristas voltaram para tentar salvar os feridos, foram reduzidos a pedaços em frações de segundo.
O que restava do centro de Braten virou um labirinto de fogo. O asfalto fervia. As estátuas de heróis antigos derretiam. As árvores explodiam como se o próprio mundo rejeitasse a vida. O calor era tanto que os soldados, mesmo a dezenas de metros das explosões, tiveram queimaduras só por estarem ali.
As comunicações começaram a falhar no segundo bombardeio. A fumaça cortava os sinais, e as explosões abafavam qualquer grito. Mandei corredores, garotos e garotas com menos de vinte anos, para levar mensagens aos postos avançados. Nem todos voltaram.
Lembro de ter descido até a estação central para tentar coordenar o último trem de evacuação. Havia centenas de civis espremidos nas plataformas: mães com recém-nascidos, velhos com olhar perdido, crianças em silêncio absoluto. Não choravam mais. Já tinham aprendido que choro atrai perigo.
Um menino me puxou pelo casaco.
— General… o senhor vai com a gente?
E eu menti.
— Logo depois.
O trem partiu com metade da capacidade. Os trilhos ao norte já haviam sido destruídos. Quando a composição desapareceu no túnel, uma explosão atingiu a entrada da estação. A fumaça engoliu tudo. Nunca soube se o trem escapou.
O terceiro bombardeio foi diferente. Mais preciso. Frio. Clínico. Eles sabiam exatamente onde estávamos. As linhas de comunicação, os abrigos, os centros de comando. Um por um, todos foram sistematicamente eliminados. Era como se os céus estivessem sendo pilotados por demônios com mapas de nossos corações.
Eu fui arremessado contra uma parede de concreto, sem fôlego, com o zumbido de mil abelhas nos ouvidos. Quando me levantei, sangue escorria dos tímpanos. Ao meu redor, o chão era um mar de chamas e cadáveres. Parte do meu uniforme havia derretido no braço esquerdo. A dor era intensa, mas menor que a culpa.
Nos rádios, só ruído. Nos céus, ainda mais bombardeiros.
Ao final do dia, Braten não era mais uma cidade. Era um crânio aberto, exposto, de onde haviam arrancado a memória e a esperança.
As colinas ao redor ficaram cobertas por uma fumaça escura durante dias. Os corpos empilhados começaram a inchar, depois a apodrecer, depois a desaparecer sob os escombros e as cinzas. Os poucos que restaram cavavam com as mãos em busca de familiares, ou simplesmente sentavam-se ao lado dos mortos, sem forças para continuar.
E eu… eu vaguei pelos destroços como uma sombra. Procurando por rostos conhecidos. Não encontrei nada. Só o som de meus próprios passos. E o eco do menino me perguntando se eu iria com eles.
Talvez devesse ter ido.
O bombardeio tinha cessado. Ou talvez só o meu ouvido tivesse se cansado de escutar.
Eu andava por Braten em silêncio. Ou o que restava dela. As ruas estavam cinzentas, como se o tempo tivesse deixado de existir ali. As chamas ainda ardiam em alguns pontos, mas eram como velas acesas num velório que ninguém teve coragem de encerrar. O ar ainda estava quente, denso… mas eu já não suava. Talvez meu corpo tivesse desistido de reagir.
Eu me arrastava entre escombros, como um fantasma que se recusa a perceber que já morreu. Cada passo era uma lembrança, cada prédio caído era uma lápide sem nome. A cidade não gritava. Caí no chão chorando. E, no meio disso tudo, eu me sentia… oco.
Foi então que senti.
Primeiro, uma pressão no peito. Pequena.
Depois, veio a pontada.
Não era dor comum. Era como se uma lâmina tivesse sido cravada dentro de mim, direto no coração, sem aviso, sem ruído, sem cerimônia. Eu engasguei com o ar. Minha mão foi instintivamente ao peito.
Ali.
Bem ali.
Era como se algo, alguém, tivesse me atravessado. Como se todas as mortes que eu carregava tivessem, naquele instante, decidido cobrar sua dívida.
A imagem da minha irmã me veio à mente.
Ela rindo. Ela me chamando de “herói”. Ela me esperando.
Ela sozinha.
Vi os olhos do menino na plataforma. Vi meus soldados sorrindo antes da batalha. Vi meus pais antes da guerra.
Vi também outra lembrança. Não da guerra. Não da minha irmã. Mas de uma sala de aula antiga, e de vozes que discutiam o sentido de tudo.
“Se Deus é onisciente, Ele conhece o mal. Se Deus é onipotente, Ele pode destruí-lo. Se Deus é benevolente, Ele deve desejar fazê-lo. Mas o mal existe. Logo, Deus… não pode existir.”
Era aquele professor de filosofia dos charutos. Cético. Racional. A barba por fazer, os olhos afiados, como se quisesse dissecar o universo com a lógica de uma lâmina. Ele falava com firmeza, quase com prazer, como quem segura uma tocha dentro de uma caverna e proclama: “Vejam, não há nada aqui além da escuridão.”
Mas ao lado dele estava uma aluna.
Óculos redondos, grossos, olhar tímido, mas quando falava, havia uma centelha nos olhos. Uma chama que não se apagava diante de argumentos.
“Talvez o mal exista exatamente porque Deus nos ama. Porque nos deu liberdade.”
“Livre-arbítrio?” — o professor debocha. — “Mas que liberdade é essa, se nascemos lançados ao sofrimento?”
Ela hesitou. Respirou. E disse:
“A liberdade de amar, mesmo em meio ao caos. A liberdade de resistir ao mal sem que Ele precise destruir o mundo por nós. Deus não é a ausência do sofrimento. É a presença silenciosa na dor.”
Silêncio na sala.
Naquela época, eu ri por dentro. Ri do rosto vermelho dela, da paixão infantil com que ela defendia um Deus invisível. Eu pensava como o professor.
Se existe dor, Deus não existe.
Mas agora, deitado entre ruínas, com a morte à espreita, percebo que há um peso diferente nessas palavras. Ela não queria vencer um debate. Ela queria acreditar que, apesar de tudo, ainda havia sentido.
Ela queria… esperança.
E talvez fosse isso o que me faltou todos esses anos. Não fé, mas esperança. A capacidade de olhar o mundo em chamas e ainda assim crer que havia algo além da fumaça.
A dor no peito se intensifica. Não como uma ferida, mas como uma lâmina emocional, como se alguém tivesse cravado uma faca de memória em mim.
Meus dedos tremem. Meus olhos perdem o foco.
E ali, no chão, entre sangue e cinzas, penso:
E se ela estivesse certa?
E se Deus não fosse o que impede o mal, mas o que permanece ao lado daqueles que são esmagados por ele?
E se… no momento em que o mundo nos destrói… Ele nos reconstrói?
Eu vi tudo.
E, ao ver tudo, algo dentro de mim quebrou.
Tentei respirar, mas não vinha ar. Tentei me erguer, mas minhas pernas não respondiam. Senti o mundo girar devagar, como uma dança lenta entre a vida e a morte. E eu… eu deixei. Não por fraqueza. Mas porque não havia mais nada a ser feito.
Deitei de lado. O chão estava morno. Ou era meu corpo que esfriava?
Olhei para o céu. Estava limpo agora. Azul desbotado, manchado de fumaça. Engraçado… pela primeira vez em anos, não havia tiros, nem gritos, nem ordens. Só silêncio.
Fechei os olhos por um instante.
Foi então que senti de novo a pontada. Como uma lâmina girando dentro do coração.
Não física. Não visível. Mas real. Dolorosamente real. Como se alguém tivesse me atravessado por dentro com tudo que fui, tudo que perdi, tudo que deixei de ser.
E então… tudo parou. O peso, a dor, a lembrança.
Tudo.
Talvez tenha sorrido. Talvez tenha chorado. Mas já não importava.
A guerra acabou para mim. Sem glória. Sem honra. Sem última palavra. Só… o fim.
E, no fundo, talvez tenha sido melhor assim.
Acordei antes mesmo de abrir os olhos.
Foi como emergir das profundezas de um lago onde estive submerso por tempo demais, não afogado, mas adormecido, esquecido, dissolvido nas águas turvas da dor, do cansaço, da culpa. Antes de ver, senti. E antes de sentir, fui sentido.
O primeiro sinal de que eu existia novamente não foi a luz, mas o cheiro
Não o fedor de pólvora ou carne carbonizada que por tanto tempo impregnou minhas narinas. Não o odor metálico do sangue, nem a podridão das trincheiras úmidas. Era um cheiro quente, doce, terroso. Como terra molhada sob o sol. Como pão recém-assado na casa da minha avó. Como o perfume dos girassóis que minha mãe deixava na janela da cozinha nas tardes de verão, antes de tudo desmoronar.
Era um cheiro de vida.
Abri os olhos devagar, e o mundo me respondeu com um esplendor quase insuportável. Tudo era vibrante demais, vivo demais. O céu acima era de um azul que parecia novo, recém-pintado, sem mácula. Não havia sol, o próprio céu parecia emanar luz, e ela me envolvia como um cobertor morno, sem queimar, sem ofuscar.
À minha frente, estendia-se um campo que só poderia existir nos sonhos de alguém que nunca soube o que era a guerra.
Girassóis. Milhares. Talvez milhões.
Altos, erguidos como colunas douradas, suas pétalas iluminadas como pequenos sóis vivos, voltados para mim como olhos bondosos. Eles balançavam ao ritmo de uma brisa morna, que acariciava minha pele como dedos familiares. A cada passo, a terra cedia levemente sob meus pés descalços, não como algo frágil, mas como algo que me aceitava.
E por um instante, tive a sensação absurda de que o próprio chão me reconhecia.
O vento trazia consigo o zumbido leve das abelhas, o farfalhar das folhas, o sussurro das flores entre si. Mas havia algo mais profundo ali, um som escondido por trás do som, como uma lembrança que ainda não se formou completamente. Era como se o campo inteiro estivesse respirando em uníssono comigo.
E então percebi: eu não carregava nada.
Nada no peito. Nada nos ombros. Nada nas mãos. A dor, a culpa, a ira… tudo tinha ficado. Em algum lugar além das colinas douradas. Pela primeira vez em anos, eu era só eu.
Foi então que vi o espaço aberto no meio daquele mar dourado.
No centro do campo havia um pequeno círculo limpo, como se as flores tivessem espontaneamente decidido ceder espaço para algo sagrado. Ali, sob a sombra suave de um guarda-sol de listras azul-claras e brancas, repousava uma mesa de madeira clara, arredondada, de aparência simples mas harmoniosa, quase familiar — como aquelas das casas de campo dos contos antigos.
Três cadeiras. Duas lado a lado. Uma solitária à frente. E naquela solitária, ela.
Nunca vi aquela mulher, mas algo dentro de mim disse que a conhecia desde antes de nascer.
Uma jovem e belíssima mulher, talvez apenas chamá-la de bela não fizesse jus à completude de sua beleza, seus cabelos eram brancos como neve ao pôr do sol, longos, fluidos, e dançavam suavemente com o vento, como se fossem feitos de luz líquida. Seu vestido era etéreo, de tecido leve que parecia costurado com fios de nuvem e raio de sol, tingido com o dourado do campo e o lilás do céu distante.
Mas foram os olhos que mais me prenderam.
Vermelhos.
Não o vermelho do sangue, mas o vermelho profundo das folhas no fim do outono, do rubi sob a água, da dor sublimada em compaixão. Eram olhos antigos. Olhos que sabiam. Olhos que já tinham chorado por mim antes mesmo de eu saber que precisava ser chorado.
Ela me observava como uma mãe observa o filho que retorna da guerra. Não com julgamento. Nem com reprovação. Mas com uma ternura tão imensa que quase me destruiu. Em seus olhos havia compreensão, não das minhas ações, mas da dor que me levou até elas.
Havia uma xícara diante dela. Chá, provavelmente. O vapor subia em espirais preguiçosas e perfumadas, camomila, lavanda, e algo que me lembrou a bebida que minha irmã preparava quando estávamos doentes, ainda pequenos, escondidos da guerra. Ao lado, uma segunda xícara me aguardava. E diante dela, minha cadeira.
Parei. Por um instante, hesitei.
Sentei tantas vezes antes para planejar batalhas, assinar sentenças, arquitetar vinganças. Mas essa cadeira… essa cadeira pedia outra coisa.
Descanso. Reencontro. Perdão.
Dei um passo em sua direção. A brisa passou por mim como um sussurro.
E com cada passo, o campo ao redor parecia vibrar levemente, como se a terra celebrasse meu retorno. O ar ficou mais doce, e os girassóis mais altos abaixaram levemente suas cabeças, como em saudação ou reverência.
Quando alcancei a mesa, ela ainda me olhava. Não disse uma palavra. Mas seus olhos diziam tudo.
“Você carregou o mundo por tempo demais.”
“Agora, é hora de deixar que o mundo o carregue.”
Pousei a mão no encosto da cadeira. Era quente ao toque. Real.
E quando finalmente me sentei, senti.
Não só paz. Mas completude.
Como se todos os pedaços estilhaçados de mim tivessem sido recolhidos e colados com luz. Como se, mesmo tendo perdido tanto, eu ainda fosse inteiro de algum modo. Como se, apesar da morte… eu tivesse finalmente voltado para casa.
Ela estendeu a mão. Um gesto simples. E naquele toque havia redenção. Então com uma voz doce e um sorriso no rosto, ela disse:
— Olá!

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