Já era de tarde quando a porta do quarto se abriu de repente. Isabel, ainda sentada na cama, ergueu o olhar.

    Não era só o capitão Rodrigues. Ao lado dele, entrou o prefeito da cidade. Um homem de meia-idade, terno impecável, sorriso treinado. Trazia consigo uma maleta preta, que segurava firme, como se fosse parte do próprio corpo.

    — Senhorita. — disse, num tom ensaiado, mas baixo demais para câmeras. — É um prazer finalmente conhecê-la.

    Isabel franziu o cenho. Não havia visto aquele homem antes, mas algo nele lhe parecia… familiar. O corte do maxilar, o brilho agressivo nos olhos por trás da simpatia. Um arrepio lhe correu pela espinha, embora não entendesse o motivo.

    Rodrigues fez questão de se colocar meio passo à frente, como se quisesse interpor sua presença. — Senhor prefeito, ela precisa descansar.

    O homem abriu um sorriso polido. — Claro, claro… Só vim pessoalmente agradecer. Esta cidade deve a vida de muitos a você.

    Isabel não respondeu. Apenas observou a maleta quando ele a apoiou brevemente sobre a mesa. As fechaduras de metal brilhavam, e o som que fez ao ser pousada foi pesado demais para estar vazia.

    — Continue se recuperando, mocinha. — disse o prefeito, virando-se para a porta. — A cidade sempre lembrará do que fez.

    Rodrigues não desviou o olhar até o homem sair. Só então relaxou minimamente, soltando o ar preso. — Estranho ele aparecer assim…

    — Ele parecia… familiar. — murmurou Isabel, ainda inquieta.

    — Acho que ainda não tivemos uma apresentação adequada. — disse, endireitando os ombros. — Capitão Henrique Rodrigues, da divisão especial da polícia metropolitana.

    Ele retirou a luva da mão direita e estendeu-a para ela, de forma respeitosa. Isabel hesitou por um instante antes de apertar.

    — Isabel. — respondeu em voz baixa, quase instintiva, como se fosse estranho ouvir o próprio nome naquela situação.

    Rodrigues assentiu. — Isabel… — repetiu, como se quisesse guardar. — Você podia ter ficado em casa, sabia? Podia ter se protegido, deixado tudo aquilo nas mãos de outros. Mas não… você se jogou no meio do perigo por pessoas que nem conhece.

    Ele respirou fundo, ajeitando a gravata quase sem perceber, antes de voltar a encará-la. — Isso não é comum. Não é obrigação sua. É coragem de verdade.

    Isabel baixou os olhos, desconfortável. — Eu só… não consegui ficar parada.

    Rodrigues fez uma breve pausa, como se escolhesse bem as palavras. — Ainda assim, você escolheu o caminho mais difícil — disse em voz baixa, mas firme. — E quero que saiba… eu também sou assim. Não tenho poderes, é verdade. Mas quero ajudar essa cidade tanto quanto você, do jeito que eu conseguir.

    Ele ajeitou o coldre na cintura.

    — Se em algum momento sentir que não consegue lidar com a pressão… se a cidade cobrar mais do que você pode entregar… ou se simplesmente precisar de alguém em quem confiar, pode me procurar. — os olhos dele encontraram os dela, firmes. — Eu vou ajudar.

    Isabel o observou em silêncio. Pela primeira vez desde a luta contra o Esmagador, sentiu que alguém a enxergava além da máscara, além do título de “heroína”.

    Rodrigues ergueu a mão num cumprimento final, formal, mas sincero. — Obrigado pelo que fez por essa cidade, Isabel.

    Isabel hesitou por um instante, mas acabou levantando a mão em resposta, devolvendo o cumprimento com firmeza. — Obrigada, Rodrigues.

    Ele sorriu de leve ao ouvir seu próprio nome. — Pode me chamar apenas de Henrique.

    Henrique se virou para a porta, mas antes de sair acrescentou:

    — Ah, e não esqueça, coragem não é ausência de medo. É seguir em frente apesar dele.

    A porta se fechou, deixando-a sozinha com as palavras que ecoavam como promessas.

    Algumas horas depois, a recuperação de Isabel já era visível. As marcas roxas haviam clareado, os cortes estavam cicatrizados e os médicos, satisfeitos com o progresso, deram-lhe alta. Os hospitais da cidade, no entanto, estavam cercados de jornalistas e curiosos que queriam um vislumbre da “heroína misteriosa”. Para evitar exposição desnecessária, a polícia organizou uma saída discreta.

    Duas quadras antes de sua casa, a viatura parou. Um policial lhe entregou uma muda de roupas simples e um par de óculos de armação fina, que ajudariam a disfarçar os hematomas ainda visíveis. Era uma tentativa de devolver-lhe o anonimato. Com cuidado, Isabel desceu do carro, sentindo o ar fresco da noite contra o rosto.

    Os policiais despediram-se com respeito, garantindo que, se precisasse, estariam apenas a uma chamada de distância. Isabel assentiu, agradecida, e seguiu sozinha pelas ruas silenciosas até a porta de casa.

    Ela caminhou devagar até sua porta. O bairro parecia o mesmo, mas os olhares eram diferentes. Ou talvez fosse ela quem tivesse mudado.

    Ao abrir a porta, o cheiro de álcool a atingiu como uma parede. Garrafas espalhadas pelo chão. A televisão ligada em volume baixo, passando imagens do noticiário.

    Sua mãe estava no sofá, os olhos vermelhos, a mão segurando uma garrafa. Chorava sozinha, perdida em lembranças que só ela carregava.

    Entrou em casa em silêncio, tirando os óculos, tentando não chamar atenção. Mas não precisou dar dois passos para ouvir a voz da mãe, firme e carregada de amargura.

    — Eu sempre disse que esses heróis só trazem desgraça. — Ela a fitou com os olhos vermelhos, mas sem lágrimas. — Essa obsessão por poderes, por lutar, não leva a nada.

    Isabel ficou imóvel, sem saber como responder.

    — Seu pai também pensava assim — continuou a mãe, com um tom duro. — Nunca precisou de poderes para ajudar as pessoas. Ele acreditava que coragem não vinha de dons sobrenaturais, mas de escolhas.

    As palavras da mãe ecoaram pela sala, duras e pesadas. Isabel sentiu um aperto no peito, não lembrava de já ter ouvido sua mãe falar tanto do pai dela. Era como se ele fosse um fantasma, apagado da casa e da memória. Até aquele instante, o nome dele quase não existia.

    “Ela nunca fala sobre ele… nunca. Nem uma história, nem uma lembrança. Só o silêncio.”

    Isabel respirou fundo, hesitante, a voz quase falhando.
    — Meu… pai já foi um herói?

    O olhar da mãe se ergueu lentamente para ela, sério, com uma mistura de cansaço e algo que Isabel não conseguiu decifrar.

    A mãe se levantou do sofá, cada passo pesado, a garrafa ainda trêmula na mão. O olhar, agora fixo em Isabel, estava carregado de dor e raiva contida.

    — ELE MORREU POR CAUSA DISSO! — gritou, a voz ecoando pela sala, quebrando o silêncio que parecia ter se instalado ali há anos. — NÃO POR VILÕES, NÃO POR PODERES… POR ACREDITAR QUE PODIA MUDAR O MUNDO!

    A garrafa quase caiu de suas mãos, mas ela se segurou, respirando fundo, tentando conter a fúria que vinha junto com a memória dolorosa.

    — Eu sempre tentei proteger ele disso, Isabel! — continuou, a voz alta e cortante. — De colocar a vida em risco por heroísmo, por glória, por qualquer coisa que faça alguém se sentir importante!

    O coração de Isabel disparou. A raiva e a dor da mãe preenchiam a sala, sufocando. Ela queria falar, mas só conseguiu engolir o aperto no peito e encarar a mulher à sua frente.

    Isabel não conseguiu decifrar a mistura de dor e amargura nos olhos da mãe.

    A mãe respirou fundo, a garrafa ainda trêmula na mão, mas agora mais calma, embora carregada de rancor.

    — Eu odeio heróis, Isabel… — começou, a voz firme, quase como se gravasse cada palavra na parede da sala. — Sempre odiei. Sempre achei que esses idiotas com poderes, com fama, com essas fantasias de glória só trazem sofrimento. Eu perdi alguém que amava por causa disso. Seu pai… morreu por tentar ser um deles.

    Ela ergueu os olhos para Isabel, o olhar duro e implacável

    — Se você escolher esse caminho, fazer igual a ele, eu não vou mais me importar. — A voz da mãe se quebrou por um instante, mas voltou a endurecer. — Porque ele já morreu… e morreu comigo.

    Ela se virou de costas para Isabel, os ombros trêmulos. Com um movimento brusco, arremessou a garrafa de vinho contra a parede. O vidro se estilhaçou em mil pedaços, espalhando o líquido e o caos pelo chão da sala.

    — Merda! — gritou, enquanto os soluços escapavam de sua garganta.

    Sem olhar para trás, subiu as escadas, desaparecendo no quarto, deixando Isabel sozinha em meio aos cacos de vidro, ao cheiro de vinho derramado e ao silêncio pesado que se instalou na casa.

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