A segunda-feira chegou, o céu estava nublado sobre a cidade.

    Isabel caminhava pelo corredor da escola com a mochila pendendo de um ombro só. As vozes ao redor se misturavam num ruído distante, risadas altas demais, passos apressados, portas se fechando com força. Tudo parecia normal. Normal demais.

    Foi então que ela o viu.

    Davi estava sentado em sua mesa, ainda antes do início da aula. O corpo curvado para frente, os cotovelos apoiados nos joelhos, as mãos entrelaçadas como se segurasse algo invisível. O olhar não estava no quadro, nem no celular, nem em ninguém. Estava perdido em algum ponto do chão.

    Ele não era assim.

    Davi sempre tinha algo a dizer. Uma piada fora de hora, um comentário bobo, qualquer coisa para quebrar o silêncio. Mas agora… parecia menor. Mais quieto.

    Isabel diminuiu o passo.

    — Ei… — chamou, aproximando-se com cuidado, como se pudesse assustá-lo.

    Ele levantou o rosto devagar, como alguém arrancado de um pensamento pesado demais. Por um instante, pareceu confuso. Então forçou um sorriso rápido, frágil, que desapareceu quase no mesmo segundo em que surgiu.

    — Oi, Isa.

    Ela se sentou na cadeira ao lado. O silêncio que se formou entre os dois não era confortável. Era denso. Pesava no ar.

    — Você tá bem? — perguntou, em voz baixa.

    Davi respirou fundo. O sorriso sumiu por completo.

    — Meu pai tá doente.

    A frase caiu entre eles sem aviso, sólida, impossível de ignorar.

    Isabel sentiu o estômago se apertar.

    — Doente como…? — perguntou, quase num sussurro.

    Ele passou a mão pelo rosto, arrastando os dedos pelos olhos, como se estivesse cansado há muito tempo.

    — Câncer. Ou… algo assim. — Ele desviou o olhar. — Os médicos ainda tão fazendo exames, mas já falaram que vai precisar de tratamento. E não é barato.

    A voz falhou no final. Ele engoliu em seco.

    — Davi… — Isabel sentiu o peito apertar. — Eu sinto muito. De verdade.

    Ele deu de ombros, fingindo indiferença, mas os olhos estavam vermelhos demais para mentir.

    — É… — murmurou. — Por isso eu vou parar de vir pra escola.

    Ela virou o rosto para ele no mesmo instante.

    — Como assim, parar?

    — Eu preciso arrumar dinheiro. — As palavras saíram rápidas, atropeladas. — Trabalhar. Qualquer coisa que apareça. Não dá pra ficar aqui fingindo que tá tudo bem.

    — Mas você não precisa fazer isso sozinho — ela disse. — Eu posso ajudar. A gente pode dar um jeito juntos.

    Ele soltou uma risada baixa. Não tinha humor nenhum nela.

    — Não precisa. Sério. — Ele balançou a cabeça. — Não quero te colocar nisso. Vai ser só por um tempo. Depois… depois tudo volta ao normal.

    Ele sorriu.

    Um sorriso torto, ensaiado. Um sorriso que não combinava com o olhar cansado.

    Isabel reconheceu aquele sorriso imediatamente. Já tinha usado o mesmo quando dizia que estava bem sem estar.

    O sinal tocou, alto demais, cortando o momento.

    As aulas passaram arrastadas, como se o tempo tivesse decidido desacelerar só para provocar. Isabel tentava prestar atenção, mas sempre que desviava o olhar, encontrava Davi do mesmo jeito, quieto, distante, como alguém que já tinha se despedido por dentro.

    No fim do dia, eles se encontraram no portão da escola.

    — Boa sorte — Isabel disse, abraçando-o com força, como se quisesse segurá-lo ali por mais tempo. — Eu espero que seu pai melhore.

    — Obrigado — Davi respondeu, retribuindo o abraço por um segundo a mais do que o normal. — E… qualquer coisa, eu te aviso.

    Ele se afastou alguns passos, já virando de costas.

    — Davi — Isabel chamou.

    Ele parou e olhou para ela.

    — Me manda mensagem — ela disse, a voz um pouco mais firme do que se sentia por dentro. — Mesmo que seja só pra dizer que tá tudo bem. Não some, tá?

    Por um instante, ele pareceu hesitar. Então assentiu, forçando um pequeno sorriso.

    — Tá… eu mando.

    Isabel ficou ali, observando enquanto ele se afastava pela rua, as mãos nos bolsos, a cabeça baixa.

    Uma angústia estranha se instalou no peito dela.

    A noite tinha chegado na cidade.

    A cidade se estendia abaixo de Isabel como um mar de luzes irregulares.

    Ela corria pelos telhados com facilidade quase automática. Saltar de um prédio para outro já não exigia cálculo, o corpo sabia a distância, o impulso, o momento exato de se lançar no ar. Era estranho perceber isso. Antes, cada salto vinha com medo. Agora, vinha com naturalidade.

    O problema era pousar.

    Desde a última vez.

    Isabel sempre sentia o impacto subir pelas pernas, mesmo quando acertava o ângulo perfeito. Um pequeno atraso antes de dobrar os joelhos, como se o corpo lembrasse demais do que já tinha dado errado. Ainda assim, ela seguia.

    O vento frio batia contra o capuz e máscara enquanto ela avançava, passando por prédios residenciais, lojas fechadas, estacionamentos vazios. Embaixo, pessoas comuns caminhavam sem imaginar que alguém observava tudo do alto.

    Ela parou na beirada de um prédio comercial, se agachando atrás de uma caixa de água.

    Fechou os olhos.

    A super audição se espalhou como ondas. Portas sendo trancadas, um casal discutindo a duas ruas dali, o barulho distante de um ônibus noturno.

    Então veio o som errado.

    Agudo. Insistente.

    Um alarme.

    Banco.

    Isabel abriu os olhos e correu.

    Saltou.

    O prédio seguinte veio rápido demais, o pouso duro fazendo seus joelhos reclamarem por um segundo, mas ela não parou. Em mais dois saltos, ela já via a fachada do banco.

    Ela desceu as escadas de emergência do prédio rapidamente, parando do lado de fora do banco, os pés tocando o chão entre cacos de vidro espalhados pela calçada.

    Através da fachada destruída, Isabel teve uma visão clara do interior.

    Os caixas ficavam à esquerda, protegidos por balcões baixos. Dois homens enchiam sacolas ali, jogando maços de dinheiro sem cuidado. À direita, perto da entrada, um terceiro mantinha a arma erguida, nervoso, girando o corpo a cada som. Mais ao fundo, próximo ao corredor que levava às salas internas, o quarto gritava ordens, andando de um lado para o outro.

    — Rápido! Anda logo! — a voz ecoou pelo salão.

    O som do impacto dos passos de Isabel sobre o vidro quebrou o ritmo deles.

    Todos se viraram ao mesmo tempo.

    — Droga… é ela! — alguém gritou.

    O tiro veio primeiro.

    A bala estourou a parede atrás de Isabel no instante em que ela se jogou para o lado. O chão raspou contra suas mãos enquanto ela rolava para dentro do banco, sentindo o vidro cortar o tecido da luva.

    O segundo disparo veio logo depois.

    Isabel se levantou já em movimento.

    O homem perto da entrada tentou mirar de novo, mas ela fechou a distância rápido demais. Um chute seco atingiu o braço dele, fazendo a arma voar e deslizar pelo chão. Antes que ele reagisse, o soco de direita, veio curto e direto, jogando ele contra a parede com um baque surdo.

    Ele caiu sem se mover.

    — Merda! — gritou outro.

    O segundo capanga largou a sacola e avançou pela lateral, tentando cercá-la. Isabel girou o corpo no último segundo, sentindo o vento do disparo da arma passar. Usou o próprio impulso para derrubá-lo no chão. O homem tentou se levantar ofegante, ela pisou firme em seu peito.

    O ar saiu dos pulmões dele num gemido.

    O terceiro capanga ergueu a arma com as duas mãos, o desespero escancarado no rosto.

    — Fica parada! — gritou.

    Ele atirou.

    O disparo acertou Isabel no ombro.

    O impacto rasgou o tecido da blusa, jogando faíscas de dor pelo braço. Um filete de sangue apareceu quase imediatamente, escorrendo quente pela pele.

    Ela deu um leve passo para trás.

    Só um.

    O homem arregalou os olhos.

    — Funcionou… — murmurou, e puxou o gatilho de novo.

    Outro tiro.

    A bala atingiu o abdômen, rasgando a roupa e arrancando um gemido curto dos lábios de Isabel. A dor existia, aguda e real, mas não era suficiente. O sangue manchou o tecido escuro, pouco, quase nada.

    Ela respirou fundo.

    E deu um passo a frente.

    Passo por passo.

    Quase como se estivesse testando os próprios limites.

    O capanga começou a atirar sem parar. Os disparos ecoavam pelo banco, cada tiro acertando o braço, na lateral do corpo e na perna. As roupas se rasgavam, pequenas marcas vermelhas apareciam, mas o corpo de Isabel não cedia.

    Ela mancava levemente agora.

    Ainda assim, avançava.

    — Por que você não cai?! — ele gritou, a voz quebrada.

    Isabel levantou o olhar, firme, o rosto contraído de dor, mas determinado.

    — Porque… — ela deu mais um passo — …. Você precisa mais do que isso, pra me derrubar…

    O clique seco ecoou.

    A arma estava vazia.

    O homem deixou a pistola cair das mãos trêmulas e começou a recuar, tropeçando, o terror estampado no rosto.

    Isabel parou a poucos metros dele. O sangue escorria devagar, quase simbólico.

    — Acabou — disse, com a voz baixa.

    Ela avançou de uma vez, derrubando-o no chão com força, antes que pudesse reagir.

    O último já estava correndo.

    — Não — Isabel murmurou, virando-se.

    Ela disparou pelo salão, os passos ecoando enquanto atravessava o banco. O corredor dos fundos era estreito, mal iluminado. O homem tentou virar o corpo para atirar, desesperado.

    Isabel segurou o pulso dele.

    O tiro acertou a parede.

    Ela o empurrou com força contra o concreto, o impacto fazendo o corredor tremer. A arma caiu. Um segundo golpe o deixou inconsciente.

    O silêncio se espalhou pelo banco.

    Isabel ficou parada por um instante, respirando fundo, o coração ainda acelerado. Os quatro homens estavam no chão, espalhados pelo salão e pelo corredor, gemendo ou imóveis.

    A luta tinha acabado.

    Isabel puxou um cabo resistente preso ao teto, que estava solto por conta dos disparos, e começou a amarrá-los, prendendo mãos e pés, um por um, garantindo que nenhum pudesse se soltar.

    Quando terminou, caminhou até o último que tinha tentado fugir.

    Ajoelhou-se à frente dele.

    — Pra quem você trabalha? — perguntou, firme.

    O homem tremia.

    — Eu… eu não posso falar.

    Isabel respirou fundo e levou a mão ao capuz dele.

    — Eu não vou repetir de novo, pra quem você trabalha!

    Ela puxou o tecido.

    E congelou.

    O rosto era jovem demais. Os olhos arregalados demais.

    — Davi…?

    O nome saiu baixo, desacreditado.

    Ele encarava a mascarada em choque, o corpo inteiro tenso.

    — Isa…?

    Antes que pudesse dizer mais alguma coisa, as sirenes cortaram a noite.

    Luzes vermelhas e azuis começaram a piscar do lado de fora do banco.

    A polícia tinha chegado.

    Isabel permaneceu imóvel por um segundo, ainda segurando o capuz de Davi, sentindo o peso daquela manhã cair sobre ela com força total.

    Nada tinha voltado ao normal em sua vida.

    Nada nunca voltaria…

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