Capítulo 5 - Sexta-feira
A sexta-feira passou mais rápido do que Isabel esperava.
As aulas aconteceram como um borrão, professores falando, páginas virando, risadas e cochichos nos corredores. Não era como se ela estivesse alheia a tudo, mas pela primeira vez em muito tempo, Isabel sentia que algo estava se ajeitando por dentro. Não precisava fingir força o tempo todo. Ela apenas… estava.
Ao fim do dia, quando o sinal tocou anunciando a última aula, Isabel já caminhava em direção ao portão quando ouviu passos se aproximando por trás.
— Isabel — chamou uma voz conhecida, calma.
Ela virou o rosto. Era Davi, com a mochila caída num ombro e os olhos ainda tentando parecer mais confiantes do que realmente estavam.
— Oi — ela disse, com um meio sorriso.
Ele parou ao lado dela e respirou fundo, como quem ensaiou por horas cada palavra.
— Eu… pensei em te fazer um convite — começou, ajeitando a alça da mochila —. Se você quiser, claro.
Isabel arqueou uma sobrancelha, curiosa.
— Um convite?
— É, Amanhã — ele disse, encarando o chão por um segundo antes de voltar os olhos para ela —. Eu vou na Feira da Praça, lá no centro. Tem umas barraquinhas legais, música ao vivo… e uma banca que vende um pastel incrível.
Ele sorriu de lado, meio sem jeito.
— Achei que talvez… você quisesse ir comigo.
Isabel o observou por um segundo. O jeito como ele falava, tentando manter o tom leve, mas deixando escapar a ansiedade nos detalhes.
— E seria um encontro? — perguntou, com a voz suave, quase provocativa.
Davi tossiu, surpreso, e o rubor subiu até as orelhas.
— Só… só se você quiser — respondeu rápido, coçando a nuca. — Pode ser só um passeio também. Entre amigos. Só… queria te ver fora daqui, sabe?
Ela riu baixinho. Tinha algo naquela transparência dele que aquecia o peito.
— Ok. Feira da Praça. Que horas?
Davi relaxou os ombros, aliviado.
— Umas cinco? Eu passo na sua casa.
— Combinado.
Eles seguiram até o portão juntos, o silêncio confortável entre eles desta vez.
Enquanto caminhava para casa, Isabel pensava no convite. Era curioso como algo simples como um passeio na feira, agora parecia carregar um significado maior.
Naquela noite, ela tomou uma decisão.
Se alguém como Davi conseguia enxergar algo de bom nela… talvez fosse hora de acreditar também.
Ela sairia. E tentaria fazer a diferença.
Não como a Isabel de sempre.
Mas como alguém que tinha poder.
A noite caiu com um silêncio estranho, como se a cidade estivesse prendendo a respiração.
Isabel se olhou no espelho do quarto pela última vez.
Moletom preto com capuz. Jeans escuro. Tênis velho, mas confortável.
E, por fim, uma máscara preta de tecido, daquelas simples, que costumava usar na pandemia. Servia agora para algo mais: esconder parte do rosto, deixar menos pistas.
Puxou o capuz por cima do cabelo e desceu pelas escadas da casa em silêncio absoluto, saindo pela porta.
A rua estava quieta. Apenas o som distante de carros, cães latindo e a brisa fria da noite.
Ela andava sem rumo exato, mas com um objetivo firme: ajudar alguém. Algo. Qualquer situação que exigisse sua intervenção. Ainda não sabia como faria, nem o que dizer. Mas não podia mais ficar parada.
Depois de um certo tempo caminhando, ouviu.
Um som abafado. Uma voz forçada. Um grito quase sufocado.
Isabel virou a cabeça rápido.
Na lateral de um mercado fechado, um beco estreito, mal iluminado. Lá, um homem pressionava uma mulher contra a parede. A postura dele era agressiva. A dela, de puro medo.
Isabel apertou os punhos.
Seu coração disparou, não de medo, mas de impulso.
Ela atravessou a rua com passos firmes. O capuz cobrindo parte do rosto, a máscara escondendo a boca.
— Solta ela — disse, a voz seca e abafada pela máscara.
O homem virou devagar. Relaxando os ombros, encarando-a com desprezo.
— Olha só… uma criança fantasiada de justiceira.
Com um olhar rápido para Isabel, ele bufou. Então empurrou a mulher com força para o chão. Ela caiu de lado, gemendo de dor, e tentou se arrastar para longe.
— Fica fora disso, menina! Ou quer se juntar também ?— rosnou, dando um passo à frente.
Ele então se virou por completo para Isabel, os olhos brilhando com arrogância.
O homem avançou lentamente com um sorriso torto, achando que lidava com mais uma adolescente assustada.
— Quer bancar a heroína? Vai acabar pior do que ela — ameaçou, estalando os dedos como se estivesse se preparando para machucar alguém de novo.
Mas Isabel não recuou.
— Vai sair do caminho ou quer que eu resolva com você também?
Ela não respondeu. Só fechou os punhos, sentindo aquela força viva percorrer seu corpo. Quando ele tentou agarrá-la, ela se moveu num único impulso.
E o soco acertou em cheio o peito dele.
O impacto foi brutal, o corpo do homem voou, atingindo a parede com tanta força que rachou, afundando o concreto antes de cair desmaiado no chão.
Isabel permaneceu imóvel por um instante, observando o resultado. Depois soltou um suspiro baixo.
— …Acho que exagerei.
Uma mulher, até então encolhida atrás de uma pilha de lixo, levantou-se devagar com os olhos arregalados.
— V-você… você me salvou.
Isabel puxou o capuz mais sobre o rosto.
— Você tá bem?
A mulher assentiu, ainda sem acreditar.
— Sim… obrigada, de verdade. Ele me seguia desde a estação…
Isabel deu um passo para o lado, olhando brevemente para o homem desmaiado.
— Chama a polícia. Fala tudo o que aconteceu. Ele não vai levantar tão cedo.
A moça tirou o celular do bolso com as mãos trêmulas, já discando.
Isabel se afastou sem pressa, os passos silenciosos, o coração acelerado, uma adrenalina boa. Ela desapareceu entre os becos, voltando à escuridão da cidade.
Ainda era cedo.
Ela puxou a máscara preta no rosto, ajeitou o capuz e subiu num dos muros com facilidade. Olhou a cidade lá embaixo. As luzes dos postes, as buzinas ao longe, o mundo seguindo como se nada estivesse acontecendo.
Mas agora… ela estava ali.
— Vamos ver com o que mais eu posso ajudar.
E com um salto, desapareceu de novo.
Virou-se e desapareceu pela rua escura, com o capuz ainda cobrindo o rosto e o som dos próprios passos ecoando discretamente na calçada.
Isabel correu pela calçada vazia, ainda com a adrenalina da briga anterior correndo nas veias. Ao olhar para o lado, seus olhos pararam em uma daquelas escadas de incêndio de ferro, presas ao lado de um prédio.
Ela parou por um segundo.
— Se eu subir lá em cima… talvez consiga ver melhor a cidade.
Mas a escada começava a mais de três metros de altura.
Ela olhou para o ferro escuro, depois para os próprios pés.
— Será que eu…
Flexionou as pernas e, sem pensar duas vezes, saltou com força.
O corpo voou mais alto do que ela esperava. Os dedos agarraram o ferro da escada e o peso do corpo balançou os degraus. Isabel arregalou os olhos.
— Eu consegui?
Puxou-se com facilidade e começou a subir. A cada degrau, o coração batia mais rápido não de medo, mas de excitação.
Chegou ao topo alguns segundos depois. O vento noturno bateu no rosto, trazendo o cheiro distante de asfalto molhado, gasolina… e alguma coisa que ela não soube definir.
De pé sobre o terraço do prédio, Isabel ficou em silêncio. O mundo parecia quieto por um instante. Então…
Sirenes da polícia começaram a ecoar em seus ouvidos.
Ela congelou. Não via nada ao longe, apenas ruas apagadas e carros comuns passando devagar.
Mas seus ouvidos estavam atentos. Mais atentos do que nunca.
Virou o rosto para o leste. De algum ponto entre os prédios, o som se aproximava. E então, alguns segundos depois, luzes vermelhas e azuis refletiram nas janelas ao redor.
Um carro da polícia dobrou a rua em alta velocidade, perseguindo um sedan escuro que parecia fugir sem controle. Do banco do passageiro, um homem se inclinava para fora da janela, disparando com uma pistola em direção à viatura. Os tiros ecoaram entre os prédios, abafados pelo rugido dos motores. Estavam exatamente na rua do prédio onde Isabel estava.
Seu peito se apertou. O corpo se inclinou sozinho, como se já soubesse o que precisava fazer.
— Eu posso parar isso!
Ela correu até a beirada do prédio.
O vento batia forte. O mundo pareceu mais lento. A perseguição passava exatamente abaixo dela, o carro fugitivo quase batendo em outro veículo ao dobrar a esquina.
Sem hesitar, Isabel saltou do prédio.
O vento cortava seus cabelos enquanto ela despencava, olhos fixos no capô do carro em movimento.
Mas, em vez de aterrissar no centro do capô como imaginava, ela caiu exatamente na quina do carro.
O impacto foi seco, desequilibrado.
Nada suave mas ainda assim, uma aterrissagem.
Com um estrondo assustador, o carro perdeu o equilíbrio, girou no ar e antes que qualquer um pudesse reagir, virou de ponta-cabeça, caindo no chão com um baque surdo que fez a rua inteira estremecer.
Isabel rolou no impacto, sentindo o corpo doer, mas se levantou rapidamente, chocada com o que acabara de acontecer.
As luzes da viatura da polícia frearam bruscamente, parando exatamente em frente ao carro tombado.
Dois policiais saíram correndo, olhos arregalados ao ver a cena caótica.
Um deles olhou diretamente para Isabel, que ainda estava em pé, ofegante, com o capuz puxado e a máscara preta no rosto.
— Quem… quem é você? — perguntou o policial, a voz cheia de surpresa e confusão.
Ela apenas lançou um olhar rápido para eles.
Sem dizer uma palavra, virou-se e saiu correndo, desaparecendo nas sombras dos prédios.
Os policiais ficaram imóveis, encarando o carro capotado sob a luz fria dos postes. O silêncio entre eles era pesado, carregado de descrença.
— Você viu aquilo? — a voz de um saiu baixa, quase um sussurro, como se temesse qualquer coisa.
— Tem um herói… ou algo assim… nessa área? — o outro murmurou, o tom cheio de assombro e incerteza.
— Ela… caiu do céu.
O som das sirenes se misturava à noite, enquanto eles tentavam assimilar o impossível que testemunharam.
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