Capítulo 6 - Silêncio assusta
A luz da manhã invadia o quarto de Isabel com uma intensidade quase agressiva, atravessando a janela como um feixe branco cortante que iluminava cada centímetro do pequeno espaço. O sol ainda estava baixo no céu, mas sua presença era firme, e parecia querer arrancar dela o sono remanescente.
Isabel despertou devagar, sentindo o corpo pesado, cada músculo dolorido como se tivesse sido moldado em fogo. As pernas queimavam com uma intensidade sutil, lembrando com força do impacto que sofreu ao cair no chão na noite anterior. A dor era real, ainda que sua invencibilidade a impedisse de ter ferimentos mais sérios, ela sabia que o corpo sempre guardava memórias silenciosas dessas batalhas.
Com esforço, ela se arrastou para fora da cama, sentindo o frio do piso sob os pés descalços. O moletom escuro pendurado na cadeira parecia chamar seu nome, assim como a máscara preta que usou para se proteger do olhar alheio e das luzes da cidade durante a noite.
No corredor, o único som era o da televisão ligada na sala. Era estranho, quase desconcertante ver sua mãe acordada tão cedo, parada diante da tela, imóvel. Isabel parou na porta, hesitando por um instante, até permitir que seus olhos também fossem puxados para o noticiário ao vivo.
Na tela, uma repórter falava em tom firme, com a rua interditada ao fundo. As luzes das viaturas piscavam, refletindo nas janelas dos prédios.
— “Voltamos com novas informações sobre o confronto armado que ocorreu na noite passada na Rua Vicente de Paula” — dizia ela. — “Segundo a polícia, a perseguição terminou de forma inusitada após a intervenção de uma jovem, cuja identidade ainda não foi revelada.”
A transmissão exibiu um vídeo gravado por câmeras de segurança. A imagem granulada mostrava o instante em que um carro em fuga virava a esquina em alta velocidade, perseguido por uma viatura. Então, de repente, uma silhueta escura despencou do alto de um prédio. O impacto foi tão violento que o veículo virou de ponta cabeça, e os suspeitos dentro dele ficaram feridos.
— “As autoridades confirmaram que a queda impossibilitou a fuga dos criminosos, permitindo que as equipes realizassem a prisão no local. Nenhum dos agentes que participaram da ocorrência conseguiu explicar a jovem que sobreviveu à queda ilesa, e depois fugiu. Há, inclusive, relatos de que o salto aconteceu de uma altura estimada entre dezessete e vinte metros.”
A câmera voltou para a repórter com o microfone:
— “A polícia comenta as especulações sobre habilidades físicas incomuns, será que nossa cidade está presenciando um surgimento de uma nova heroína?”
A imagem cortou de volta para o estúdio, mas na sala de estar nada parecia mudar.
A mãe de Isabel permanecia imóvel, os braços cruzados, os olhos fixos na tela. Isabel, parada na porta, sentiu o coração apertar.
Sozinha, Isabel ficou ali parada por um tempo que pareceu infinito. Tentava entender aquela mudança repentina, aquele silêncio que doía mais que gritos ou brigas. Sua mãe nunca fora de guardar mágoas ou preocupações para si, costumava descontar em reclamações, em vozes altas. Mas aquele silêncio gélido era diferente. Era um aviso sem palavras.
Respirou fundo, tentando afastar o incômodo que se enraizava em seu peito. Sua mente se agarrou a um pensamento simples, como uma tábua de salvação:
— Hoje tenho um encontro com o Davi. E é isso que importa.
Virou-se para o quarto sem dizer nada, calçou um tênis confortável e prendeu bem os cadarços. Vestiu o moletom, ajeitou o capuz sobre a cabeça e puxou a máscara até cobrir metade do rosto. Antes de sair, deu uma olhada rápida pela janela, certificando-se de que ninguém prestava atenção à casa.
O encontro estava marcado para às cinco da tarde. Ainda era cedo. “Eu tenho um tempo para treinar um pouco” pensou, sentindo o corpo ansiar por movimento, talvez para aliviar a tensão acumulada desde a noite anterior.
Saiu em silêncio, fechando a porta com cuidado. Do lado de fora, o céu azul se estendia claro e vasto, como se o mundo ainda não tivesse descoberto o peso que carregava. Uma brisa fresca balançava as folhas das árvores, fazendo-as dançar, e roçava pela pele de Isabel, trazendo uma energia silenciosa, quase reconfortante.
Seguiu pelo quarteirão, mantendo-se nas sombras projetadas pelos muros e postes, até chegar ao terreno baldio próximo à casa, que já conhecia bem. Um pedaço de terra simples, com mato ralo, entulho e pedras espalhadas em desordem nada que chamasse atenção de quem passasse por ali.
Para Isabel, porém, aquele lugar era perfeito. Longe de olhares curiosos e do burburinho da cidade, ela podia focar no que realmente importava: no seu corpo, na respiração, e no controle daquilo que ainda tentava dominar. Respirou fundo, alongou os braços e fechou os punhos, sentindo os músculos despertarem para o treino.
Fechou os olhos, sentindo a respiração se tornar ritmada e profunda. Não havia luzes, nem poderes visíveis em suas mãos, apenas a força do corpo. Sua maior dádiva, sua armadura silenciosa.
Começou correndo, sentindo o solo solto sob seus pés e o vento cortando o rosto. Saltou alto, pousando firme, mesmo quando a força parecia tentar derrubá-la. Deu socos contra uma pilha de tábuas velhas, sentindo o impacto quebrar a madeira, a resistência do material que cedia lentamente. Seu corpo não sentia dor, mas sua mente estava afiada, atenta a cada detalhe, cada movimento.
O treino fazia com que ela se sentisse viva, mais do que qualquer instante dos últimos dias como se o esforço, a repetição, pudessem afastar as sombras que insistiam em se aproximar.
Foi então que um som distante, mas estridente, cortou o ar: um alarme de loja, insistente, alto, quebrando a tranquilidade da tarde. Isabel parou imediatamente, o corpo entrou em estado de alerta. Sua audição aguçada captava o som com uma clareza que ninguém mais teria. Virou-se na direção da sirene, os olhos escuros brilhando com uma mistura de tensão e determinação.
Isabel sentiu o coração acelerar. Sem dizer nada, puxou o capuz para cobrir melhor o rosto e ajeitou a máscara sobre a boca e o nariz, como se quisesse se esconder do mundo. Respirou fundo, tentando controlar a ansiedade que subia pelo corpo.
De repente, se lançou para frente. Os pés tocaram o chão com força e, em questão de instantes, ela estava ganhando velocidade. O vento cortava seu rosto, levantando alguns fios de cabelo para fora do capuz e até mesmo o próprio capuz querendo voar para trás, por causa da velocidade. Cada passada parecia mais longa e mais rápida que o normal. “Desde quando eu corro assim?” o pensamento cruzou sua mente, mas ela não diminuiu o ritmo.
Em poucos segundos, as fachadas das casas e postes se transformaram em borrões ao seu redor. Quando finalmente percebeu, já estava diante da rua principal, o peito subindo e descendo num fôlego controlado, como se nem tivesse se esforçado.
Isabel atravessou a calçada e entrou no pequeno mercado da esquina, tentando desacelerar os passos. O ambiente interno parecia outro mundo: dois homens no centro do corredor principal, impondo-se sobre todos. Nenhum deles usava máscara ou qualquer tentativa de esconder o rosto. O mais alto, de cabelos ralos e barba por fazer, apontava uma pistola para o caixa, enquanto o outro, mais robusto e com tatuagens escuras subindo pelo pescoço, recolhia dinheiro e produtos apressadamente.
Isabel ficou parada por um instante, observando cada detalhe do mercado.
Foi então que os dois homens perceberam sua presença. O mais alto virou primeiro, o olhar arregalado como se não esperasse ver alguém entrando naquele momento. O outro, com a tatuagem subindo pelo pescoço, ergueu a pistola e apontou diretamente para ela.
— Ei! — gritou, a voz carregada de ameaça. — Não se mexe!
Isabel permaneceu imóvel. O olhar fixo, impassível como uma rocha inabalável. A respiração estava calma, quase controlada demais para aquela situação.
Então, algo tinha chamado sua atenção. Um relógio na parede, perto do balcão. “16h50.”
“O quê?!” ela arregalou os olhos, surpresa. O treino tinha voado sem que percebesse, e agora restava apenas um fio de tempo antes de se atrasar.
“Merda… Eu não posso perder o encontro.”
Com um suspiro, tirou o celular do bolso, destravou a tela e começou a digitar como se nada estivesse acontecendo:
“Davi, vou me atrasar. Pode ir pra feira sem mim. Te encontro lá.”
— Ei! — o bandido gritou novamente, dessa vez mais alto. — Larga esse celular, porra!
O som da arma sendo disparada ecoou. Em seguida, o choque.
A bala atravessou o ar em um clarão metálico e passou pelo capuz, atingindo Isabel na lateral da testa. Seu corpo foi jogado um passo para trás pelo impacto, e um grito escapou de sua boca:
— Aiii!
Mas, para espanto de todos, ela não caiu. Apenas ergueu a cabeça de volta, endireitando o pescoço, e uma fina gota de sangue escorreu lentamente pela têmpora.
— Seu merda… — rosnou, limpando o rosto por baixo do capuz, com as costas da mão.
O silêncio tomou conta do mercado por um instante. Os dois homens ficaram estáticos, os olhos arregalados como se estivessem vendo um fantasma.
Isabel deu um passo à frente. Depois outro. E então avançou de vez, rompendo a distância entre eles com uma velocidade que fez o homem mais alto, mal ter tempo de reagir…
Assim que a polícia chegou no local, ela já havia desaparecido. E os dois bandidos estavam desacordados no chão da loja.
Mais tarde, Isabel caminhava com pressa até a feira. O sol já começava a se esconder no horizonte, tingindo o céu de tons alaranjados e rosados. O ar estava impregnado do cheiro doce das frutas frescas, das flores e das barracas que vendiam algodão-doce e outras guloseimas.
Davi estava ali, perto da barraca de algodão-doce, com os olhos atentos a tudo e a todos.
— Desculpa pelo atraso! — disse, um pouco ofegante, mas com certo alívio ao vê-lo ainda ali.
Davi virou-se para ela, e por um instante pareceu esquecer qualquer outra coisa. Seu olhar percorreu o vestido azul florido que ela usava, simples, mas que realçava o tom da pele e fazia seus olhos parecerem mais vivos. Um sorriso leve surgiu em seus lábios.
— Você tá… linda — comentou, a voz baixa, quase como se tivesse medo de quebrar o momento.
Isabel sentiu o rosto esquentar e desviou o olhar, tentando disfarçar. Foi então que ele se aproximou, segurando a mão de Isabel com cuidado.
— Você tá bem? — perguntou, reparando no pequeno corte na testa dela.
— Só um arranhão, não é nada demais. — respondeu, sentindo o peso daquele dia se dissipar lentamente.
— Entendi, bem, a gente tem o fim da tarde inteira para aproveitar. Então não vamos perder tempo! — disse ele, puxando-a para dentro da feira com as mãos entrelaçadas.
Eles caminharam entre as barracas, rindo, falando baixo, como se o mundo lá fora tivesse parado de existir. Mas, para Isabel, aquele dia era só o começo, um dia onde os silêncios pesados e os tiros disparados na tarde ainda ecoavam dentro dela, lembrando que tudo mudou muito drasticamente rápido, não só nesse dia mas na sua vida inteira…
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