Seu corpo estremeceu levemente. Sentiu-se esclarecido, não por alguma força externa, mas por algo que despertava dentro dele. Como se sua mente estivesse se abrindo, enxergando o que não podia antes.

    Eu fui chamado desde sempre… Os sinais estavam todos diante de mim, o tempo todo. Só não queria enxergar.

    O Enviado olhou de relance em sua direção, como se soubesse exatamente o que Kai estava sentindo e pensando.

    Pelo jeito, alguns de vocês… já ouviram a voz de Etheryum muito antes de despertarem, pensou, enquanto o observava.

    Se esse é o caso… as sementes dessa geração podem não ser um total desperdício como havia imaginado.

    O silêncio ainda pairava no ar, pesado demais para ser dispersado por palavras comuns. Os olhos dos despertos vagavam sem rumo, ainda abalados pelos eventos que haviam presenciado. A energia do campo parecia ter mudado… mais densa, como o resquício de uma tempestade que acabara de passar.

    O Enviado permaneceu em silêncio por alguns instantes. Seus olhos, indiferentes, percorriam o grupo com atenção redobrada, como se decifrasse algo invisível aos olhos dos leigos. A procurava de candidatos com um grande potencial.

    “Agora que o véu da ignorância começou a se desfazer… é hora de seguirmos em frente. Vou revelar minha verdadeira identidade” anunciou, de forma inesperada, sem dar espaço para especulações.

    Os recém-despertos se entreolharam, hesitantes. Alguns arregalaram os olhos, esperando por alguma transformação. Outros cerraram os punhos, preparando-se para o pior.

    E agora… o que mais ele poderia ter para nos revelar? pensou Kai, afiando os olhos em sua direção. Por sua vez, manteve-se atento. Seus instintos reagiram àquelas palavras, mas não de forma negativa. Ele sentia que seria algo importante, relacionado a todos.

    “O que viram até agora…” continuou o Enviado, flutuando levemente sobre o solo, envolto por uma luz suave que parecia emanar de seu próprio corpo. “Foi apenas uma projeção moldada conforme suas mentes conseguiam aceitar. Para alguns, assumi uma forma humanoide; para outros, um objeto… ou até mesmo algum tipo de planta.”

    Subitamente, ele ergueu a mão, não de forma abrupta, mas com a serenidade de quem está prestes a revelar um segredo há muito aguardado. Sua forma começou a mudar. Não foi uma transformação drástica, e sim sutil, sua estrutura estiva se desfazendo aos poucos do plano visível. Traços de energia percorreram sua figura até que ela se fragmentou em várias esferas de luz flutuantes absorvidas pelo Véu.

    Sua projeção desapareceu por completo, sem deixar qualquer rastro ou sinal de que estivera ali. Então, outra voz ecoou distante, fazendo todos se voltarem instintivamente em sua direção.

    “Sou o Seletor!” Seu tom, agora, soava levemente metálico, como se viesse de outra pessoa, ou forma de vida.

    Afastada do grupo, uma estrutura de energia singular com dois olhos digitais surgiu no horizonte. Embora sua base estivesse fixada ao solo, sua presença imponente e hipnótica alcançava cerca de quatro a cinco metros de altura. Sua aparência era futurística, composta por padrões hexagonais que giravam lentamente ao redor de uma tubo vertical de pura energia azul elétrica e roxo profundo.

    Essa coluna central estava ligada a duas plataformas circulares, uma acima e outra abaixo, que lembravam um portal. Ambas eram adornadas com anéis concêntricos em diversos tons de azul e roxo neon. Eles brilhavam com intensidade, e seus padrões revelavam circuitos digitais embutidos de escritas antigas. A própria estrutura parecia viva, exalando uma atmosfera de ficção e tecnologia.

    A voz voltou a ecoar, agora emanando diretamente da estrutura.

    “Sou um dos mecanismos criados pelo próprio universo Etheryum. Uma matriz natural avançada. Assim como vocês, possuo um núcleo. Mas, ao contrário de suas consciências orgânicas, também conhecida como alma, a minha é totalmente artificial.”

    Fez uma breve pausa, para que a informação fosse digerida.

    “Meu propósito é guiá-los no momento do despertar, analisar a essência oculta em seus núcleos,  analisar seus traços mais profundos. Suas vontades, medos, essência e potenciais ocultos… para desbloquear uma possível linhagem adormecida e por fim, enviá-los ao destino com a maior compatibilidade. Um lugar onde poderão se desenvolver… “

    Um sussurro coletivo percorreu o grupo. Poucos entenderam exatamente o que aquilo significava. Vendo que a maioria ainda estava confusa com seu pronunciamento, a Matriz reformulou suas palavras de forma mais direta:

    “Atenção! Para aqueles que ainda não compreenderam. Eu vou escanear seus núcleos e, com base nisso, ajudá-los a despertar a linhagem ao qual pertencem.”

    Kai arregalou os olhos. A ideia de ter um corpo diferente, passou rapidamente por sua cabeça, assim como também notou um detalhe sutil na fala do Seletor.

    Nunca imaginei mudar de aparência. Mas não posso continuar pensando com a mesma mentalidade que tinha no sonho eterno. Tenho que expandir minha visão sobre o mundo e estar preparado para o que vier pela frente. pensou, revendo seus conceitos. Sem falar que ele disse possível, ou seja, nem todos terão uma.

    Um murmúrio começou a se espalhar entre os despertos, como pequenas ondas agitando o ambiente silencioso. Então, de forma repentina, uma voz rompeu o clima tenso, carregada de indignação.

    “Mas por que temos que passar por isso?!” questionou alguém no meio da multidão, a voz firme, mas embargada pela desconfiança.

    Era um jovem posicionado junto a outros atrás dele. Seus traços dourados e esverdeados vibravam instáveis, um reflexo do medo e da frustração que o consumiam.

    “Nós não pedimos para estar aqui! Não escolhemos isso!” continuou, dando um passo à frente. “Por que devemos aceitar sermos transformados em… coisas estranhas? E ainda por cima avaliados como se fôssemos… animais?”

    O silêncio que se seguiu não era de reprovação, mas de curiosidade. Muitos ali pareciam partilhar da mesma dúvida, mas não haviam tido coragem de verbalizá-la. O brilho da estrutura da Matriz oscilou levemente, como se assimilasse a pergunta.

    Então, sua voz ecoou com clareza serena:

    “Não estão aqui por escolha consciente, mas por consequência do destino. O que aconteceu agora… é o despertar do que sempre esteve dentro de vocês.”

    “Não é punição. Tampouco um jogo. Será o reflexo do que vocês sempre foram por dentro. Você gostando ou não é assim que rege as leis deste universo.” Fez-se uma breve pausa, como se desse o tempo necessário para àquelas palavras penetrar fundo nas consciências frágeis dos recém-acordados.

    “Aqueles que quiserem recusar o processo, não serão forçados. Mas lembrem-se… uma semente que se recusa a brotar, permanece enterrada no esquecimento.”

    “Espera… então quer dizer que a gente vai ganhar uma linhagem? Tipo… outra raça?” perguntou um Desperto mais ao fundo, a voz ansiosa e quase vibrante de entusiasmo.

    Todos se viraram em sua direção. Ele tinha uma postura despreocupada, com os braços cruzados atrás da cabeça e a aura ondulando em tons verdes, revelando um espírito leve e curioso.

    “Então me dá uma de dragão!” disse, abrindo um sorriso largo. “Grandão, com asas, escamas vermelhas e fogo saindo da boca. Sempre sonhei com isso.”

    Houve uma breve pausa. E então, como uma represa que se rompe, outros começaram a se manifestar de forma egoísta com pedidos próprios:

    “Eu quero ser uma fênix! Sempre renascendo!”

    “Me transforma em um lobo gigante com olhos que brilham no escuro!”

    “Será que posso ser um elfo com cabelo prateado? Tipo aqueles das histórias antigas?”

    “Tem como virar uma sombra viva? Porque isso seria irado!”

    A multidão se transformou rapidamente numa confusão animada, misturando expectativa, humor e fantasia. A tensão dos minutos anteriores começava a se dissipar, substituída por uma fantasia quase infantil.

    Mas a Matriz Seletora não se comoveu com o clamor. Sua resposta veio calma, sem se alterar diante da comoção:

    “Ouçam crianças. Suas preferências são irrelevantes neste processo. O que desejam… pouco importa diante do que vocês realmente são.”

    A consciência prosseguiu:

    “O que vão receber não é um prêmio, e nem um desejo atendido. A forma que receberão será um reflexo de seus núcleos. Aquilo que carregam… ou talvez o gatilho pode ser algo que ainda não Conheçam em si mesmos.” As palavras ressoaram como um balde de água fria sobre os recém-despertos. Mesmo que por um breve instante, cada um ali entendeu que, independentemente de suas vontades, o que viria a seguir era inevitável.


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