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    Postados diante dos portões da Cidade Comercial de Ellora, quatro guardas trajavam armaduras vistosas com detalhes elaborados. Eram pomposas sem necessidade, privilegiando a estética em detrimento da funcionalidade.

    No entanto, um olhar mais atento revelaria outra armadura por baixo, de design liso e simples. Aquela era a verdadeira proteção para seus corpos. A armadura externa e suntuosa servia apenas para exibição; existia unicamente como um meio de proclamar a grandeza da Cidade de Ellora.

    Afinal, os Guardas do Portão eram o cartão de visitas da cidade, os primeiros habitantes sobre os quais qualquer forasteiro pousaria o olhar.

    Os quatro estavam no Estágio Corporal, com cerca de metade de seus Avatares Humanos construídos. O material ao qual haviam se fundido era de qualidade quase equiparável à de uma Besta Prânica de Grau Ferro Especialista.

    Isso lhes concedia algumas décadas a mais de vida.

    Tornar-se um Guarda do Portão era o ápice da carreira que um plebeu poderia alcançar apenas por mérito. Por isso, os quatro gozavam de grande respeito entre a população que morava perto dos portões.

    — Alto! — gritou um deles, batendo a ponta cega da lança na estrada, com cuidado para não a danificar.

    Uma rede de estradas de paralelepípedos1 conectava as diversas cidades do Reino Ganrimb. Sendo de manhã, o tráfego era quase inexistente, o que dava aos guardas tempo de sobra para dar atenção aos recém-chegados que se aproximavam.

    O guarda reparou na carroça que parara. Embora fosse feita apenas de madeira, a mão de obra era impecável e os entalhes, complexos. A área de carga media cerca de quarenta metros quadrados, o que a tornava bem grande.

    Estava abarrotada de itens, mas, para o azar dos guardas, todos estavam dentro de caixotes de madeira, impedindo a visão do conteúdo.

    Na frente da carroça havia um assento, ocupado por uma mulher de vestes luxuosas e aparência cativante. Ela trajava uma roupa chamativa, tecida em cinco cores, que simbolizava seu poder e autoridade.

    Em seu colo, um bebê fofo dormia. Contudo, bastou um relance na direção dela para o guarda sentir, por algum motivo, um ímpeto de submissão.

    Quem puxava a carroça sozinho era um jovem de vinte e poucos anos, exibindo braços musculosos que suas roupas vistosas mal conseguiam disfarçar. Seus cabelos, na altura dos ombros, estavam presos num pequeno coque na nuca, realçando o contorno afiado de sua mandíbula.

    Apesar do peso aparente da carroça, o jovem a puxava com naturalidade. Seus modos lembravam os de um nobre — um de altíssima classe, a julgar pelo ar de arrogância que transparecia em seu olhar.

    Se qualquer outra pessoa demonstrasse tamanha arrogância, o guarda lhe teria dado uma lição. O que gritara até cogitou fazer isso, mas um simples olhar do jovem foi o bastante para que uma pressão invisível paralisasse seus pensamentos.

    Ele precisou de alguns segundos e de um cutucão de um colega para se recompor. — Sua permissão de entrada? — perguntou.

    — Aqui — disse o jovem, atirando uma placa decorada com displicência. Ele parecia não se dar conta, mas estava desrespeitando o guarda, um hábito inconsciente entre os nobres.

    E, embora estivesse apenas no nível inicial do Estágio Corporal, ele parecia imensamente mais forte que os guardas. Além disso, sua presença sufocante deixava claro que, se os quatro o atacassem, seriam mortos em segundos.

    “Ele deve pertencer a um escalão social elevado, mesmo entre os nobres”, pensou o guarda, antes de fitar os itens na carroça. — Posso perguntar o que está transportando?

    — Artigos para venda — respondeu o jovem, ríspido, e jogou outra placa decorada. — Esta é minha licença para abrir uma loja e negociar.

    O guarda inspecionou as duas licenças e confirmou que eram autênticas. Em seguida, fez uma vênia2 e abriu passagem para a carroça. — Desejo-lhe uma ótima estadia.

    — Bem-vindo à Cidade Comercial de Ellora.

    Com um aceno de cabeça, o jovem puxou a carroça com desenvoltura e finalmente pisou na cidade, desta vez entrando pelo portão principal.

    A partir da entrada, estendia-se uma avenida larga, com pelo menos cem metros de um lado ao outro. Em ambas as margens, erguiam-se edifícios maciços de dezenas de andares, abrigando de tudo, desde restaurantes a lojas de roupas sofisticadas.

    Como o nome sugeria, Ellora era uma cidade de negócios. A importação e exportação de bens era seu carro-chefe, já que a maior parte de sua população se destacava em ofícios artesanais. A cidade ficava no sopé de uma montanha rica em recursos minerais, perfeitos para todo tipo de artesanato.3

    A avenida principal se estendia por alguns quilômetros em linha reta até o centro, onde morava o Senhor da Cidade.

    Enquanto atravessava a avenida, puxando a carroça pesada sem derramar uma gota de suor, o jovem atraiu muitos olhares curiosos. Logo, notou os olhares de flerte vindos de mulheres que jantavam nas varandas dos andares superiores de casas de chá elegantes, o que o deixou desconfortável.

    Sua atuação tinha sido perfeita até aquele momento, mas ser o centro das atenções não era a sua praia. Após uma tosse sem graça, Inala continuou a puxar a carroça, gravando seus pensamentos na Lâmina Óssea que Asaeya carregava.

    [Será que eu sou tão atraente assim?]

    Asaeya revirou os olhos com o comentário, mas respondeu com um ar convencido através da Lâmina Óssea que Inala possuía.

    [Do ponto de vista de um membro do Clã Mamute, sua aparência é um pouco acima da média. Nestes Reinos Humanos, onde a aparência é tão valorizada, você é, no máximo, mediano. O que está atraindo essas mulheres, é a sua força e confiança. Por algum motivo, as mulheres dos Reinos Humanos acham os homens do Clã Mamute charmosos.]

    “Entendo. As Crônicas de Sumatra realmente mostraram cenas assim, mas achei que fosse só por causa da aparência do Resha. Sinceramente, aquele desgraçado tinha o pacote completo de um Protagonista, da aparência à força esmagadora”, pensou Inala, antes de responder.

    [E as mulheres do nosso Clã?]

    O sorriso de Asaeya se alargou, e seus olhos ficaram gélidos por um instante.

    [Elas temem as mulheres do nosso Clã, é claro. Qualquer mulher da superfície que consiga encantar um de nossos homens acaba, de forma misteriosa, nas presas de uma Besta Prânica no dia seguinte. Uma verdadeira lástima.]

    [De forma misteriosa?]

    [Sim, de forma misteriosa.]

    Inala preferiu não continuar a conversa. As mulheres do Clã Mamute detestavam dividir seus homens e não hesitavam em matar quando contrariadas. Até mesmo Resha foi esfaqueado por sua amada apenas por flertar de leve com uma mulher na superfície.

    Por um momento, Inala se perdeu na lembrança daquela cena das Crônicas de Sumatra. Ele e outros leitores haviam inundado os parágrafos com memes quando Resha foi apunhalado diversas vezes, não por uma Besta Prânica, mas pela mulher a quem jurara seu amor.

    Logo, porém, ele voltou à realidade, ciente de que Asaeya tinha uma queda por ele. Se ele gostava dela ou não, era outra história. Se ousasse se engraçar com outra mulher, era bom se preparar para perder todos os sentidos.

    Esse seria o dia em que ele sentiria na pele o poder do Toque Fúnebre.

    Uma mulher do Clã Mamute luta por seu interesse amoroso sem a menor hesitação, beirando frequentemente a obsessão. Se o sentimento era correspondido ou não, pouco lhes importava. Claro, considerando a altíssima taxa de mortalidade e a necessidade constante de repor seus números, não era de se espantar que fossem tão obcecadas.

    [Para onde vamos?] — comunicou Asaeya em seguida.

    [Espere e verá. Já fiz alguns preparativos.]

    Dito isso, Inala estacionou a carroça num beco estreito ao lado da avenida principal, na entrada de um pátio de aspecto precário.


    1. Estradas de paralelepípedos são aquelas calçadas com blocos de pedra, comuns em cenários mais antigos ou históricos. []
    2. Vênia é um gesto formal de respeito, como uma reverência, em que se inclina a cabeça e o tronco para a frente.[]
    3. Sopé é a parte mais baixa de uma montanha, também conhecida como a base ou o “pé” da montanha.[]

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