“Eu vi-a. Vi e vivi-a. Nasci em sua pele e em seu escárnio estava-me presente. Em sonho, estive lá. Fui-me viva na sua pele, mesmo que jamais ouvisse seu nome; dou-me direito de falá-la e narrá-la. Tenhais piedade de mim!

    Tinha ela um pai justo e correto, um irmão arteiro e caçoador, e mãe que a amava acima de tudo e todas as coisas, tal como os outros dois.”

    Izandi, a Oniromante.

    Um ruído fez os olhos da menina saltarem. “Mais um?!” Tremeu os dentes e agarrou a base da cama, seu braço pesando como uma tora caída. Nada tremia. Fora só barulho? A luz projetada da porta pouco aberta fez Hydele perder o medo. Deu um curto suspiro de alívio. Queria que estivesse mais frio. 

    Seus olhos ainda pesavam. Parte dela quis ficar na cama, a outra parte também queria, mas, conforme o ar gelado de lá fora entrava, ânimo surgia. Uma mão calejada e quente tocou sua testa, então o dono quem suspirou. Seus olhos aos poucos abriam de verdade.

    — Não está com febre — sussurrou ele, com um fraco suspiro de alívio. A menina detestava ouvir isso assim que acordava. — É hora de acordar, minha pequena. 

    Phai… — Esforçou-se para coçar os olhos. A falha na voz fê-la corar e notar a sequidão na garganta, como se grãos de areia estivessem lá; por mais que não conhecesse a areia. Tossiu um pouco e corrigiu: — Pai!

    — Boa manhã, minha pequenina. Quer que te carregue?

    A vermelhidão nas maçãs do rosto aumentou.

    — Hydele ou Hyd é melhor — grunhiu sonolenta em sua voz suave. — Já tenho onze anos, pai! Sou quase uma mulher-feita! — continuou, fazendo Ereken rir. “Ainda vai demorar muito!”, pensou ele. — …E acho que consigo andar sozinha hoje.

    Hyd procurou-a aos arredores da cama balançando a cabeça e achou-a caída no chão, ao lado de sua sempre limpa harpa, branca, azul e dourada como as cores da sua Deusa patrona. Seu pai pegou a bengala e entregou-a. A menina respirou fundo e deixou o ânimo que vinha de fora da porta lhe ajudar.  “Ela continua mais alta do que eu”, pensou ela, estreitando os olhos com amargura.

    Primeiro um pé para fora da cama, depois o outro; apoiar-se com força, toda a força na bengala de entrelaceira. Imaginava-se caindo, mas podia confiar: seu pai estava ao seu lado, segurando seus ombros. Em que outra mão daria essa confiança? Talvez a do irmão. “Devagar, um passo de cada vez.” 

    — Viu, eu disse! — Hyd riu até com os olhos que puxou do pai, um sorriso mútuo e quente.

    “Está ficando mais forte”, disse Ereken consigo, feliz. “Esp…”, fechou os olhos, calando o pensamento. “Não, isso é desnecessário, agora. Pode crescer mais um pouco.”

    — Eu vi!

    A escuridão já tinha sumido do quarto para os dois, mas a luz projetada pelas frestas das janelas engrandeceu — Ereken abriu-as, para iluminar a passagem da filha. O vento outonal abriu mais sorrisos em Hyd. A segunda melhor estação, ela dizia para si. Caminharam juntos e devagar até fora do quarto, onde foram atacados pelos cheiros doces e salgados, o tilintar de pratos e talheres e os cantos de Willmina. 

    A sala pequena cheirava a queijo rosa, pães e mingau de aveia, mas nenhum prevalecia à voz da mulher, o soprano suave que deleitava os ouvidos de Hyd. Minha mãe é uma beleza de dar inveja e encanto em rainhas!, dissera uma vez para suas amigas — sempre a via muito mais bela do que nas pinturas das antigas rainhas dos Beesh, sempre de luvas, ereta e bela. Sua mãe tinha seus cabelos cor de maçã tocando o assoalho enquanto carregava os pratos e cantava, e quando se virou para os dois, presenteou-lhes com um sorriso do seu rosto que não parecia envelhecer.

    — Boa manhã! — ela disse aos dois, e ainda ficara mais encantada ao ver como a filha estava disposta e de pé, com uma camisola branca cheia de babados e cabelos despenteados. Sua mãe terminou de pôr os pratos à mesa e correu para por a filha entre os braços. — Se sente bem, minha pequena?

    — Sim!

    Sentiu os dedos macios e mais gelados do que o vento lá de fora nas suas bochechas e recebeu um beijo na testa. Sua mãe logo se sentou e ofereceu seu regaço, mas quis tentar sentar-se na cadeira. A mesa dos Zwaarakind era próxima de uma das janelas da sala. Um piso de carvalho polido sob tapete e paredes antes pintadas, mas agora sem cor senão a das pedras; da janela, ventos calmos do alvorecer entravam, levando os olhos para a visão da floresta muito abaixo.

    Cinco pratos e quatro cadeiras dispostas.

    — Cadê o Bert? — Hyd notou, mesmo já sabendo da resposta. Olhou para as pequenas rachaduras e quebras pelo esmalte das paredes. — Ah, jhá sei. Já sei! 

    Seus pais riram um pouco; sua mãe até a puxou para mais perto e beijou-lhe a testa. Com a faca, cortou pedaços do queijo e do pão de Hyd.

    — Eu posso comer sozinha hoje, me sinto forte! — Sua mãe começou a rir. Soltou a faca e apoiou o queixo na mão, fitando sua pequena filha.

    — Ela se levantou sozinha hoje, acredita? — Seu pai esfregou-lhe os cabelos; Hyd corou como um tomate silvestre.

    Os dois riram dela como se fosse uma cachorrinha se esfregando no chão. Não uma risada humilhante, mas uma feliz. Ainda assim, a menina ficou rosada. Sentiu-se obrigada a fazer o Sinal de Ilasis e começar a comer. É desrespeitoso comer e falar, pois os Deuses não gostavam disso. Em benção deve-se somente agradecer, falava o Versiculista do quimtel. Sua mãe fez o Sinal de sua Padroeira e comeram.

    O sol já tinha nascido completamente quando Ereken levantou e afagou os cabelos da filha. 

    Hyd abriu seus olhos muito bem. Era sempre estranho. Seu pai cobrira a camisa de lã plissada com uma ainda maior, amarrando-a com um cinto de couro e um boldrié, então pôs botas escuras. Penteou e amarrou os cabelos castanhos ocre para os lados e terminou de vestir-se com um jaquetão pesado e uma capa, com uma faixa laranja debruada sobre o peito.  

    Quando pôs a espada no boldrié, sentiu um grande respeito se apoderar de si. Era sempre assim. Uma transformação. Seu pai deixava de ser seu pai e virava o cavaleiro e homem de armas favorito do Duque do Sul, Cei Ereken Zwaarkind. “Meu pai é importante”, ela riu, mas com respeito cravejado nos olhos e uma onda de admiração crescente no peito. Amava o que via.

    — Até mais — disse ele, sorrindo para as duas e para a terceira, se formando no ventre de Willmina. Ela acenou com a mão e, assim que ele as deixou, deitou-se sobre a mesa.

    — O que foi, mamãe? 

    — Ai, ai, ai de mim… — “Ó, Lohssari deusa minha. Rogo que o proteja de tudo.” Virou o rosto para a filha. Hyd sentiu sua atenção ser engolida pelos olhos de turmalina e sorriso arteiro no rosto preso à donzelice e de queixo angular. — Quer ir à biblioteca?! 

    — Sim! — “Poderia ir lá para baixo também!”, pensou. “Para a vila ou para a floresta.”

    Mas a biblioteca era seu lugar sagrado. “Nianna pode estar lá. Quem sabe o cile de música também. Fazem tempos que não canto. Ou mamãe pode continuar a me ensinar!”

    Descansaram mais um pouco e se trocaram antes de saírem de sua casa. Hyd ganhou da mãe o penteado de sempre, uma trancinha — pois ainda não era donzela —, e pôs seu vestido favorito, rosa e branco. Já sua mãe não se penteou, apenas se perfumou com o cheiro de framboesa e trajou-se em branco, desde as botas às luvas e o colar com um suco branco e cheiroso na cápsula de vidro.

    O segundo andar do castro tinha a mesma visão das árvores salpicadas de ruivo. Willmina não conseguia esconder o riso de ver sua filha tendo que ficar na ponta dos pés para ver pelas balaustras de quase oitocentos anos. No final do corredor, a escada em espiral à direita parou-as. 

    — Es…

    — Eu sei… — interrompeu a filha, corada. A escada era íngreme demais para conseguir descer sozinha.

    Uma balaustra simples dava visão do pátio para Hyd. Enquanto descia, viu os homens de armas do duque e a mestra de armas Jenna, combatendo-se com aço. “Podem se machucar, por que tentam isso?”, indagou-se a menina. O aço frio na mão dos trinta homens com armaduras de couro roçava o vento com um sibilar agudo que escalava sua nuca, enquanto Jenna brandia com um silêncio desproporcional a voz dos seus gritos.

    A mestra de armas saudou-as com seu sorriso e roupas suadas quando chegaram no pátio. Willmina acenou, com um sorriso indiferente, e pôs a filha no chão, que prestou uma curta mesura, e logo voltaram a andar. Hyd ficou irada com o jeito babão que os homens deram à sua mãe, mas nada fez além de puxar a bainha do vestido branco. “O encanto da mamãe tem dono”, quis falar; todavia, pensou consigo, seria uma donzela bem-educada. Não gostava de pessoas rudes.

    Ao darem mais um passo, ouviram um murmurinho e alguns guardas saíram de perto do pátio de treino, tomando à frente em direção do portão, para que ambas pudessem passar, e logo entraram em sua sombra. A torre acima do portão era tão alta que não deixava Hyd ver os rostos das montanhas, mas estava ela e o portão iluminados tanto por archotes quanto pela luz refletida pelo denso orvalho e lagos no bosque interno do castelo.”

    “Talvez deva ir lá”, pensou. “Talvez arranje um galho menor.”

    Seu pensamento foi calado pelo andar da mãe. “Pernas longas!”, rugiu. Queria ter pernas como as da mãe: altas, fortes. Resolveriam todos os seus problemas! Invés disso, os Deuses a presentearam com o tamanho e a força de uma criança bem mais nova. “Garotas crescem mais depois dos dez!”, confortou-se, fazendo um muxoxo e apertando a bainha do vestido da mãe.

    As veletetos projetavam uma luz amena no corredor, mesmo que algumas estivessem rachadas; o esmalte quebrado, dotado de rachaduras, seguia presente. Os servos corriam levando e trazendo roupas e comida recém-feita, com cuidado para não derrubarem ou tombarem nas duas. Hyd estranhou tamanha movimentação, o furdúncio das portas sendo abertas e fechadas com estrondos; demorou para perceber.

    “O festival de caça!”, relembrou. “Encontraram alguma coisa grande? Aposto que papai trará uma pele de urso para a mãe e para mim… E Bert, bem, ele vai fazer alguma coisa que vai se arrepender.” 

    “Deuses, rogo para que os aldeões lidem bem com o inverno”, rezou Willmina.

    Não andaram muito mais que cem passos antes de chegarem às proximidades da biblioteca. Um servo gordo carregava uma barca com rodas lotada de peles, outro, muita carne, vindo os dois de direções opostas e nem pareciam se ver. “Vão bater!”

    — Cuidado! — gritou Hyd, mas nada aconteceu. Não alertou ninguém, porque não estavam perto um do outro. Notou isso só depois de gritar. 

    Willmina abraçou-a com olhos trêmulos e indagou, serena e maternal:

    — Está bem, minha pequena?! — Antes que Hyd sequer tivesse tempo para responder, Willmina pôs a mão na sua testa. — O que foi?! 

    Os dois servos passaram por elas, suas feições de dúvida e estranheza deixaram a menina constrangida, vermelha como um tomate. “Mas estavam… Eles estavam frente a frente há um instante!” Soltou sua bengala, sentindo as pernas tremerem, e deu tapinhas nas suas bochechas. “O que aconteceu nela? Está adoecendo de novo?!”, indagou a mãe.

    Meneou a cabeça, fazendo a cabeleira lisa farfalhar. 

    — Vem, vamos voltar para casa. É o melhor para nós duas, minha querida — falou, sorrindo o mais calma que conseguia.

    — …Tá. — “Eu sei o que vi!”, murmurou-se, indubitada. Mordeu o lábio e seguiu sua mãe, balançando a cabeça. 

    Percebeu algo caído no chão, bem onde imaginou que os servos colidiriam. Desvencilhou-se da mãe e andou o mais rápido que conseguiu. Um, dois, três passos fracos; e de repente as pernas tremeram e enfraqueceram, mas sua mãe lhe impediu que caísse de joelhos no solo de pedra alisada. Havia um cachecol no chão, um que reconheceria em qualquer lugar. As tiras parecidas com palha eram de lã branca e impecável, adornadas com fios de linho amarelo — que ela mesma costurara.

    Agora sujo com marcas de sapatos e respingos de um líquido vermelho, fresco.

    — Ma… Mãe! O Bert perdeu o cachecol de novo! 

    Hyd girou seu punho de um jeito familiar, e a agilidade que teve para levantar o cachecol fez Willmina abrir a boca em alerta. Mas no que imaginou sua mãe vendo susto, encontrou uma oportunidade. O calor ia sumindo de sua mente; ficava mais leve.

    — Vamos lá para baixo! Para a Vila! — implorou, agarrando seus dedinhos no corpo do vestido branco da mãe. — Ele deve ter deixado cair aqui, mãe! — Sentiu seu coração pulsando.

    — Não devemos, minha pequena. — Cruzou os braços e fechou o olho esquerdo, observando o passar dos servos de soslaio. — É mais seguro aqui dentro. Tem monstros lá embaixo. Quer conhecer uma mataposa? Um rubroblino?

    — Por favor, mãezinha. — Os olhos de Hyd brilhavam, os mesmos olhos do pai. Willmina sentiu uma onda quente brincar com seu corpo e mente, desdenhando com um sorriso involuntário. “O sangue é forte”, disse para si, com uma nota de desgosto e outra de felicidade.

    Porém o tremor da terra lhe acordou. Não queria correr mais um risco. Não de novo. Não outra vez.

    — Já disse que não, Hydele.

    Hyd ficou cabisbaixa.

    — Não quero passar mais um outono trancada aqui — sussurrou e, para a mãe, fora como um corte no peito. — Me sinto forte, mãe.

    A crespina que cobria partes da trancinha cor de cobre da filha pareceu devorar a luz dos olhos. “De quem aprendeu essa… arteirice?!”, bravejou-se Willmina, cujas sobrancelhas tremiam. “Foi de Nianna? Elas se merecem mesmo!” 

    Olhou para a filha de cabeça aos pés. “Quase doze anos, baixa como sete e frágil como uma recém-nascida… mas… doze anos. Até usa uma trancinha… Em breve, será uma moça… uma mulher.”

    — Ai, ai de mim! Está bem! — Sorriu e deu de ombros. — Mas não sairá do meu lado.

    Hyd acenou; o ânimo voltou com tanta ênfase que jamais pareceu triste. 

    “Outono!” Deu o cachecol à mãe.

    Com a mão direita na bengala e a esquerda no corpo da saia de Willmina, voltaram pelo corredor espaçoso. Ao passarem pelo pátio viram as folhas alaranjadas voando das árvores, os poucos homens treinando, os treinadores de cavalos e servos com barcas de rodas. “Muito movimentado… A porta!’

    ‘De quê vou brincar?”, perguntou-se. “Nianna é filha do duque, então deve estar lá! Será que armaram liças? A senhorita Keila teve a mão pedida no último festival de caça… Seria a minha vez?”

    Ficou alegremente vermelha.

    Passaram pelos frontões, abertos e guardados por guardas, que acompanhavam o fluxo de carruagens; havia poucos metros de chão, que perdia sua grama, antes de uma queda por onde o vento uivava até as copas das árvores da floresta. Poucas centenas de metros à direita, o Olho que Chora jorrava água que alimentava o Sul. Andando cuidadosas, evitando ficar perto da cerca instalada na beira da colina, Hyd conseguia ver desde a Vila do Rio à floresta pintadas de preto, marrom, carmim e laranja.

    O caminho virava à esquerda, ondulando até se curvar à direita, como uma estrada larga o suficiente para que carroças passassem ao lado da outra. Hyd viu servos subindo de longe, no sopé da montanha. Ouvia o chacoalhar das árvores saindo das paredes, suas folhas voando pelo céu e sentiam o último bálsamo das rosas e jasmins plantadas próximas.

    Então uma brisa soprou forte e levantou grãos de terra e sal do cascalho. Um gritinho gutural escapou da boca semiaberta de Hyd.

    E então ela soltou sua mãe. De repente cobriu os olhos e deu um passo para direita; então sua respirou profundamente de susto, como se seus pulmões estivessem regurgitando. Os músculos da sua barriga contraíram junto com os das cosas; e como se para rezar, seus olhos subiram. Sentiu que de repente o chão parecia mais fraco; e seus olhos notaram que sua mãe estava mais distante; subiram; e subiram.

    Até seus olhos se travarem nas montanhas.

    Os rostos das montanhas. Ela via todos de lá. Altas como se tocassem o céu, com rostos tendo bocas, rostos com narizes altos de rocha, rostos com olhos nascidos da rocha. Olhos e faces que sempre estiveram lá. Que sempre vira.

    Olhos que lhe olharam de volta.

    Então a terra tremeu. Um rugido saiu do chão.

    — HYDELE! 

    A mãe tentou pegar a filha, mas foi como se estivesse sobre um tambor. O cascalho chacoalhou e o estômago de Hyd tremeu, suas costas esquentaram e uma mão fervente apertou seu coração. A menina gritou de medo, e a terra rugiu e se quebrou. Rachaduras surgiram e o cascalho afundou como açúcar se desfazendo num copo.

    Sequer conseguiu ouvir o grito desesperado da mãe ou dos outros que subiam a estrada. Sentiu vento roçar por suas costas. Viu sua mãe correndo, estendendo a mão; viu sua bengala voar pelo céu; viu o mundo ficar deitado, e sua tão amada mãe ficar menor, então menor, menor e menor.

    Regras dos Comentários:

    • ‣ Seja respeitoso e gentil com os outros leitores.
    • ‣ Evite spoilers do capítulo ou da história.
    • ‣ Comentários ofensivos serão removidos.
    AVALIE ESTE CONTEÚDO
    Avaliação: 100% (5 votos)

    Nota