Capítulo 02: Quero ser como você (2)

Sentiu-se ensopada, como se uma grossa túnica encharcada estivesse pressionada contra sua pele; outra sensação quente e viscosa, ainda mais desagradável do que a outra, contribuía com isso. Alguma coisa latejava, ardia e ela não sabia dizer. A letargia fizera-lhe sentir enterrada por alguma coisa. Abriu os olhos e viu algo alaranjado, escuro, movendo-se com algo que lhe trazia frio.
E dor.
Respirar pareceu engolir dezenas de pontas de espadas. Hyd tentou gritar, todavia a dor foi explosivamente tão grande que não teve forças para isso; dor tamanha e lancinante que não conseguia formar uma expressão de dor, somente ver o mundo turvo, como se dois cavalos de areia tivessem entrado nos olhos.
A luz pálida fez seus olhos arderem, mas por quanto tempo? Tiques e tiques iam na sua cabeça. Às vezes não conseguia sequer dizer se estava acordada. As lágrimas estavam secas e a luz parecia igual. “Dói, dói!”, gritou para si e para os Deuses.
De repente a iluminação mudou — aos seus olhos, alguma coisa mudou. Sentindo como se seus pulmões estivessem rasgando, respirou fundo e focou. Se acalmou. Algo lhe dizia: se acalme. A dor aumentava, a respiração tornava-se uma torturadora. Um sussurro familiar. Uma memória de seu pai? Algum ensinamento do Versicolista? Hyd continuou respirando. Não conseguia pensar direito. Se acalme.
Lembrou-se do dia de inverno onde ganhou sua bengala. Até lá, só andava sozinha onde havia boas barras de ferro instaladas na parede do castro, e uma bengala qualquer não lhe servia — nunca soube dizer o porquê. Seu pai lhe levou ao bosque, sentou-a sob o figueiro-sagrado e buscou um bom galho de aureira. Não achou um sequer, mas levou de muitas outras árvores…
…todas quebraram, entortaram ou só não serviram.
Se acalme.
“Vaga-lumes?”
Luzinhas tremulas surgiam pouco a pouco; azuis, branqueados, marrons e avermelhados, esvoaçando ao ar frio. Se acalme. Hyd observou-os; debatiam-se e transitavam sem ordem, devagar como neve. “Familiar.” Observou… Observou a clareira onde estava caída, as árvores altas cujos galhos estendiam-se até as outras, paredões de terra íngreme distantes, mas próximos, restos de terra com grama puída e de cascalho.
Se acalme.
“Caí.”
Se acalme.
Respirou fraca. As luzes seguiam vagantes, sem ordem. Se acalme. Uma se aproximou. “Já estava aqui?” Estavam surgindo mais. Respirou fundo. Se acalme. Azul topázio, farfalhante… O toque frio em sua bochecha a deu um fraco alívio. Gelado, frio como um bolo da montanha.
Frio como o inverno. Um sorriso fez mais lágrimas quererem descer, porém doeu.
Fechou os olhos.
A luz das luas pintava a clareira; pincelaram ciprestes, carvalhos e espinheiros com a cor do ferro. Ouviu pios e o sussurro dos ventos, com as folhas caindo e formando um manto alaranjado sob a terra úmida e espatifada.
Hyd acordou com as dores ainda mais latejantes… e sentindo-se bem, leve. A garganta e olhos secos não incomodaram tanto quanto o estômago retorcendo, porém o frio da noite a enchia de conforto. Se ainda tivesse alguma água, choraria, mas a voz ainda estava lá, só ela e o piado das corujas.
“Ninguém me achou até agora”, pensou. Se acalme. “Mas me acharão. Sei que papai vai. Mas eu não… posso ficar aqui… Estava escuro.”
Vasculhou com os olhos amarelos-âmbar, então pareceram inchar. Nenhum grito de dor saiu. Pareceu que penetraram uma agulha quente em seus olhos… e a dor sumiu. A dor e a escuridão desapareceram e, longe ao fundo da floresta, deu de olhos a olhos com uma coruja. Se acalme. Seu coração explodiu.
Animais ao fundo da floresta, pássaros no céu, uma folha de uma cor incomum a centenas de metros; as frestas dos cascos das árvores, cada grânulo de terra levada pelo vento; as diferenças entre o verde da grama. Se acalme. “Minha cabeça irá quebrar como uma veleteto caindo no chão…”
Hyd engoliu em seco. “Tenho que me salvar”, repetiu-se. “Eu tenho força. Não ficarei aqui…”, fungou, com os olhos marejando. “Sou uma mulher-feita. Sou… Eu sou!”
O frio enchia seu corpo de ânimo. Uma luzinha vermelha passou à sua frente como um vaga-lume, deixando seu nariz quente. Se acalme. “Isso não é importante agora”, afirmou. A situação exigia maturidade, já era quase uma mulher-feita. Recordou-se de Nianna, numa certa manhã onde participou de um encontro com as filhas dos vassalos do Duque.
“Não devo ver o que está à frente”, disse, balançando o indicador “, tenho que ver o que deve ser visto.”
Imediatamente pensou em sua bengala. Não conseguia andar sem ela fora do inverno, onde a neve revigorava seu corpo. Vasculhou em cada ângulo que conseguia enxergar sem mexer o pescoço, então quis gritar e chorar, e desta vez, não de dor. Ainda assim, tinha que sair dali. Havia monstros na floresta. “Mamãe não mentiria para mim…”
Primeiro tentou mover os dedos dos pés; sentiu seu calcanhar direito latejar como se algo estivesse o esmagando. Ao mexer os dedos das mãos, contou ao menos cinco lugares doendo tanto que calaram as outras dores; seu torso estava ainda pior.
Se acalme.
Em suas olhadelas, vira outra clareira, onde um figueiro-sagrado estava. Sempre deixava os arredores em uma temperatura que parecia perfeita. “Se… Se conseguir me rastejar até lá…”, sua barriga grunhiu tão alto quanto um martelo na bigorna. “Ainda deve haver figos.”
Engoliu a dor como uma mulher-feita e balançou-se para a esquerda, vendo enfim seu vestidinho favorito ficar enlameado e manchado de vermelho e verde. “Mamãe vai brigar”, pensou. De repente imaginou-se afundando no seio farto em um abraço cheio. Quis chorar. Se acalme.
“Força.” Tentou balançar. “Tenho força. Sou filha do meu pai. Eu tenho força!”
Balançou o resto do seu corpo e apoiou-se nos cotovelos e joelhos. A terra umedecida deixaria suas mangas brancas sujas para sempre, tanto à lama quanto ao sangue seco. Respirava pausadamente conforme rastejava, sua barriga grunhia e as feridas doíam sem piedade. Terra invadiu suas unhas; galhos e folhas, seus cabelos. Os dedos se mexiam perfeitamente; os braços estavam duros. Mas bastava. Tinha que bastar.
Parou de cansaço e por algo que não percebeu: um curto e corrente veio d’água marrom, fino como uma mão. “Devo estar perto do Olho que Chora”, pensou, tentando sorrir. Enfiou a boca no veio como um bebum na cama, bebeu como um rei e sujou-se como um garoto; seu rosto estava mais enlameado do que o vestido.
“Bert rirá de mim”, imaginou, tentando ignorar o gosto de lama na boca.
Voltou a engatinhar sentindo o cheiro das folhas, no entanto não precisou de muito mais para ver um caminho do paraíso: havia um arbusto de lichias ao lado de framboeseiras e groselheiras de galhos longos e finos, com cachos pesados, carmins, suculentos, amáveis, com suas fragrâncias como se gritassem “comam-me!” Hyd tomaria seu colar de quinalfero-ambar e agradeceria aos Deuses, se conseguisse fazê-lo.
“Se pudesse chorar, choraria.” Se acalme.
Suas pernas falharam e teve de se arrastar só com a força de suas mãos — e se remoia em pensar que suas unhas quebrariam e que cresceriam calos. Estava cansada disso, disso tudo. Se soubesse que acabaria nisso, teria ficado o resto do dia no castelo; preferia estar com as outras garotas e mulheres para discutirem coisas chulas, expondo seus motos e bandeiras, sendo silenciosamente caçoada por não conseguir subir os degraus para a própria casa.
Mordeu o lábio de baixo — com gosto de terra — e foi até os frutos com os olhos marejados. Enfiou a mão inchada e suja num cacho e puxou com toda sua força; despencou o suco de groselhas na sua mão e rosto. Se acalme.
Ao mesmo tempo houve um chacoalhar numa moita distante. Hyd fitou de soslaio e perdeu as forças; um focinho negro saiu dele. Um cabeça arredondada com pelos cor de carvalho, orelhas pequenas e um corpo grande e gordo, coberto de raízes e folhas alaranjadas; engoliu em seco quando viu a boca aberta, cheia de presas afiadas.
Não conseguiu forças nem para rezar.
Tamborilou os dedos na terra, cerrou os dentes até estralarem e fitou desesperadamente cada lugar que poderia usar para fugir, mas suas pernas feridas estavam frias como gelo. A fera continuava em sua direção. Não hesitava em seguir reto, com seus dentes amarelos cobertos de baba; a boca grande o suficiente para que sua cabeça coubesse lá dentro.
— RUUUHR! — rugiu o urso florido, fazendo-a sentir suor frio em partes que não sabia que suavam. Se acalme!
E um silvo dourado rasgou o ar.
O urso urrou, levantou-se e saltou para trás, desviando da espada voadora que se fincou num tronco, urrando de novo e fitando algum lugar com os olhos escuros. Paralisia tomou os membros de Hyd; seu coração deu como uma pontada áspera e assustadora, então foi como se cada membro fosse substituído por uma pedra.
O urso urrou novamente, rugindo com mais desafio do que nunca; mas as orelhas de Hyd focaram em um som cadenciado, calmos como uma canção de ninar… O som de botas pisoteando o chão… com calma e força. Se acalme!
O urso seguiu fitando, mas não foi para sua presa ou à espada; um homem de cabelos castanhos como ocre penteados para trás, alto e de ombros largos e de queixo pontudo como uma coruja se aproximou, ficou à frente de ambos.
Ele parecia estar rodeado por aquelas luzinhas, mas Hyd percebeu uma diferença: vinham do seu corpo, alto, forte e forrado com peles e de luzes laranjas. Um suspiro fraco escorreu de sua boca enquanto a visão ficava mais escura. Mais pesada… Deu-se conta de que estava calma.
O urso berrou, ergueu suas patas douradas e garras maiores do que os dedos. Mas o homem ficou parado enquanto o coração da menina… só desacelerou. Só sentiu as lágrimas geladas escorrendo dos seus olhos. “Pai…”
O urso ficou sobre duas patas e berrou um som tão grave que fez as árvores chorarem as suas folhas, mas o homem continuou de peito erguido, olhando para o animal. Parecia uma mosca perto do imponente corpo do animal, mas Hyd sentia uma imponência ainda maior vinda do seu lado. Era como se cada pedaço seu lhe dissesse “estou segura”.
O urso caminhou com suas patas da frente estiradas e ficou com seus dentes enormes pingando saliva nos cabelos do homem, que encarou a fera de garras enormes como se não fosse nada.
— Desapareça — ordenou, sua voz parecia um trovão.
O urso rugiu, bramiu de novo e deu as suas costas sujas de terra e musgo para eles. Saiu com as patas no chão, a toda velocidade que conseguia pôr.
Quando o homem se virou, seus olhos estavam enormes, com a bolota do meio grande como uma maçã, de súbito ficando normais, como os de qualquer pessoa, mas seu olhar transbordava de preocupação genuína.
Já a visão da menina enturveceu, os contornos sumiram e as cores se misturaram.
— Filha! O que… Não… — Mordeu a luva de couro e a tirou. Tocou sua testa e me pressionou contra seu peito. — Está doendo? Se sente mal? …Hydele?!
Era como um herói… Um herói que fazia a dor sumir… Brilhando como ouro. Imponente.
— Pai… Também…
“Também quero conseguir fazer isso.”
— Não fale! Vou te levar ao medista do castelo! Não se preocupe, você vai ficar bem! Foi só uma queda!
“Estranho…”, ela sorriu.
Hydele não estava chorando mais.
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