Capítulo 11: A Chama dos leões (1)
“‘Os antigos textos erífios os chamavam de ‘bárbaros da neve’ e afirmavam que para cada pessoa lá, havia ao menos cinco deuses diferentes e nomeados. Hoje pouco ainda resta desses textos, que, aliás, nunca afirmam a posição correta do lugar. É quase um mistério que exista e nunca tenham sido atacados por seus distantes vizinhos, e muito explica o porquê há tão pouco falar sobre eles: seu mar é ainda mais revolto do que o nosso’, pronunciei para eles as palavras da Alta-Mãe Ofima.
Ah! as ditas Esposas de Deus das Ilhas Coral eram retentoras de conhecimento excepcionais. Se nascesse em tal época, afirmo que gostaria de ser uma delas. Mas talvez não em todos os serviços. Dar prazer a um rei é concebível, mas não me imagino carregando uma criança.”
Izandi, a Oniromante

Os cavesões rufavam em um desaforo choroso; seus corpos peludos jorravam massas de suor; com a língua para fora, pingavam uma saliva seca de cansaço. Estavam exaustos, tão exaustos que pareciam próximos da sombra dos corvos. Eram mais que oito quando tomaram viagem desesperada de volta ao Castelo, rumando como o mar de fogo que rugia das montanhas: não parando por nada.
Houve momentos onde atravessaram aldeias e o povo gritara de medo. A Carruagem de Vymya!, ouvira gritarem. “Não sou nenhuma senhora da morte”, respondeu consigo “, pois eu dou vida!”
E a vida da sua vida era realmente forte. Faina sentia-se exausta. Cansada do parto difícil, da notícia da morte do primo, da viagem… Mas parecia que nada disso afetara Krazdoro. O filho ganhara mais cabelo e chorava cada vez menos.
Invés de poucos fios serenamente alvos e loiros, Faina testemunhava que o menino tinha agora quase toda a abóboda da cabeça coberta por cabelos. Seu novo passatempo favorito era contar os fios enquanto ele mamava. Estava feliz. Vê-lo descansar nos braços da avó também a fazia feliz.
— Quer me dar um irmão, mãe? — ela brincara. Auta fizera um olhar soerguido, mas não negou.
Ver Krazdoro cair em sono enquanto Mirta lhe contava histórias também era prazeroso… Sabia que não era um prazer que duraria muito. Os animais puxavam a carruagem sem descanso dia e noite. Um dos eunucos morrera caindo da sela da carruagem e tendo o peito esmagado pelas rodas. Tiveram que parar no quarto dia de viagem, para prestar os ritos fúnebres.
Por sorte, Faina tinha o sangue dos Arrundria. Não tiveram que carregar seu corpo para o mais próximo. Como era um eunuco sem família, não tiveram que procurar a parenta do homem. Mirta vomitara e escondeu Krazdoro, mas a mãe da criança mandou que mostrasse aquilo. De prova da honra, Faina levou uma costela do eunuco. Quando voltaram para a carruagem, os cavesões tinham morrido.
Deram sorte de ter uma vila próxima. Receberam quatro cavesões e uma fronha com mantimentos, e seguiram a rumar. Agora elas viam as montanhas riscarem o céu. A crista da Muralha dos Leões recebia a pouca luz que restava no céu: os Luas estavam totalmente visíveis, e do Sol não tinha mais nada. A escuridão da Noite era quase completa, e nada além dos Luas refletia alguma luz natural dentro das matas por onde passaram senão os olhos reluzentes das corujas.
Restava quase nada de viagem. Logo repararam o Portal entre as duas montanhas que davam para dentro da Cidade: grande e de gelo-velho, de forma escarpada e entalhada com lanças quebradas e restos de flechas. “O inquebrável gelo-velho… Está distante de mim”, pensara, com lástima na voz. No mesmo instante, seu filho apertou o seu mindinho, com seus olhos amarelos e leoninos abertos.
“Não posso falhar. Farei a cerimônia. Vou beber o Sangue e, se os deuses não me rejeitarem, me tornarei a Rieq. Talvez não possa mais sair daqui, mas não tem problema. Desde que Mirta e minha mãe possam sair desse lugar frio que elas tanto odeiam, acho que estarei feliz…’
‘Mas e se eu for rejeitada? Não tenho o sangue puro… Então o próximo da sucessão é…”
Tirou Krazdoro dos braços de Mirta e o abraçou. “Ele não tem idade para isso. Não tem… Não posso ser rejeitada. Sou uma Arrundria e pari um Arrundria. O trono é meu, e essas terras congeladas também!”
— Mamãe vai te proteger, viu? — pegou-o pelas axilas e o elevou alto. Mirta e Auta viram aquilo e esboçaram um sorriso genuíno. — Meu leãozinho.
— Pois é melhor agires como uma leoa, doninha — bravejou Auta, cruzando os braços com meio sorriso no rosto. — De preferência, uma leoa comportada. Exemplifico a mim.
— Tá, tá — desdenhou com um muxoxo. — É mais fácil que eu case Mirta ao meu Krazdoro.
Ouvir o absurdo fez a sacerdotisa estrangeira quase saltar do banco. O traje sacerdotal azul, remendado várias vezes para caber em si, ganhou um novo rasgo na parte do vestido. Suas mestras gargalharam com a quebra da postura de Mirta e do vermelho que ganhara.
— Eu tenho certeza de que achará mulheres melhores para ele, Oy rassa…
— O que foi? — Faina beijou a testa de Krazdoro, que estava esboçando um cansado sorriso no rosto. — Olha: ele gostou da proposta!
As duas gargalharam. Quando Faina virou o filho em direção de Mirta, até ela começou a gargalhar: o garoto tinha um sorriso como o verão.
Mas logo o ânimo foi quebrado.
Viam as flamulas de couro hirto de frio, estendidas em mastros finos erguidos como lanças vertendo o céu azul, escuro como a pele escondida pela pelagem de um cavesão. Não deixavam o castelo mais bonito. Faina não tinha apreço algum por ele.
Caibros, anegrados pelo verniz de nevadeira seco, fuligem dos altos braseiros e carcaças de baleias, formavam paredes grossas em um espaço onde caberiam cem pessoas com facilidade, guardas estavam a cada porta e janela com suas espadas de rocha vulcânica, e os servos e escravos eram muitos a labutar.
Mas não tinha mastros como o palácio onde fora isolada pelo bisavô, nem as costuras em couro que sua mãe pendurara nas paredes ou o altar onde Mirta dançava secretamente ao seu deus de além do mar. Um lugar sem isso não a interessava. Ainda assim, o castelo era um lugar seu.
“Se os deuses não me rejeitarem, tudo que o Mar Congelado tocava também. Serei Rieq. Preciso apenas rugir, e serei. Levarei minha mãe à sua casa.”
Repetindo as palavras-chave que lhe fora ensinada, começou a se acalmar. “Brisa, calor, o vento calmo da manhã, água em copo, um pinheiro cheio de folhas. Neve parada.” Repetiu mais uma vez. Não sabia como, mas o truque acalmava seu coração. Quando sentiu as batidas se acalmarem, beijou a testa do filho e o deixou sobre as pelagens do banco. Em seguida, despiu-se.
Mirta abriu uma das arcas e tirou as roupas de Faina: cobriu-se com uma fina pele de coelho, então camadas e camadas de liéve. Cobriam umas as outras como vestidos sobre vestidos até chegarem em um último: presente dos Vladein.
Era quase um manto de liéve, que cobria do pescoço até seus pés, porém esse caia como uma cascata branca sobre eles; seu centro era adornado com fios amarelos, que pareciam mel seco, e inscrições em azul, mas não tinha mangas. Sobre os cabelos revoltosos, pôs uma alta tiara de metal de vulcão: cinza e negra. Amarrara um colar ao pescoço, onde estava preso a costela do eunuco, o dedo mindinho de outro e o olho congelado de um camponês que morrera protegendo a filha de um lobo.
Logo em seguida, fitou as duas atrás de si. Auta vestia esbanjosos e alvinegros corpete e capa de couro de baleia, e um de seus vestidos que restara de seu naufrágio. Mirta continuava com seu remendado uniforme de sacerdotisa, porém se cobria com uma capa de baleia. “Ao menos, desta vez, não teimou comigo. Dá próxima, lhe farei usar um vestido de liéve.”
— Erga os ombros, Faina — ordenara sua mãe, tomando sua frente por um instante. Faina observou o pescoço de Auta, que raramente deixava-o à vista. Até suas manchas eram parecidas.
Obedeceu sua mãe.
Assim que saíram da carruagem, Faina com os pés descalços sobre a neve, um vento frio acertou as três em cheio, deixando a Esposa de Deus e sua mestra quase azuis. Aproximaram-se de um braseiro aceso próximos da paliçada nevada. “As pessoas congelam”, temeu “, mas em breve estarão acesas em hidromel. Sete dias de felicidade, até a noite chegar.’
‘E então eu serei a Rieq.” Abraçou o filho.
Seus dedos tremiam. Brisa, calor, o vento calmo da manhã, água em copo, um pinheiro cheio de folhas. Neve parada. Auta e Mirta esquentaram sua cabeleira e a bagunçaram. Não sabia para quê, todavia, gostou. “Brisa, calor, o vento calmo da manhã, água em copo, um pinheiro cheio de folhas. Neve parada.“
Estava sentindo a neve sob e sobre seus pés quando foi interrompida:
— Oy rassa, os Chefes e filhos já se arrumaram. É hora de entrar.
— A Noite chega. Que os deuses façam sua vontade — sussurrou com o máximo de regiedade que pôde impor. Olhou detrás do ombro. Sua mãe e Mirta saíram do confortável braseiro, com um olhar desaprovador, e logo rumaram para mais perto de Faina. “Brisa, calor, o vento calmo da manhã, água em copo, um pinheiro cheio de folhas. Neve parada. Uma floresta cheia.” Repetiu.
— Erga os ombros — relembrou Auta, dando pequenos toques na base das altas escápulas de Faina — e não sorria. Entre séria, minha doninha. — Seu semblante fez a filha querer chorar. “Brisa, calor, o vento calmo da manhã, água em copo, um pinheiro cheio de folhas. Neve parada. Uma floresta cheia. Pássaros dormindo. Ovelhas cansadas.”
— Que o Deus-Azul lhe abençoe, Oy rassa — disse Mirta, inclinando a cabeça vagarosamente. “Será feito como a vontade dele, do seu mar e espíritos… e imagino-me como ele deve ser. O Sangue…”
Uma lufada quente tocou o nariz de Faina e o calor pintou o ar com um amarelo bem-vindo; até onde tentou contar, havia vinte lareiras acesas, quatro archotes e duas fogueiras aos lados do carpete de pelagem de mais de uma dezena de ursos. “Há quanto tempo não sinto calor, hmm? Mamãe e Mirta devem estar felizes”, imaginou, mas não olhou para elas.
Respirou fundo, ergueu o peito e seguiu. Elas não estariam presentes no primeiro momento. Queria entregar Krazdoro para sua mãe e ir sozinha, mas se conteve.
“Verão meu filho e a mim.”
No primeiro passo para dentro do salão, reparou os seis mesões, rodeados pelos Seis Chefes, suas esposas, filhos, servos e seus convivas, estavam fartos de comida. Mas não conseguia os ver direito. Estava tudo coberto por algum manto escuro que não sabia dizer. Os archotes ardiam e suas brasas flutuavam, mas era tudo trevas.
“Brisa, calor, o vento calmo da manhã, água em copo, um pinheiro cheio de folhas. Neve parada. Uma floresta cheia. Pássaros dormindo. Ovelhas cansadas. Um barco parado no porto.” Deu mais um passo.
A escuridão sumiu.
Viu seu pai de pé, sorrindo ao lado do cadeirão vazio. Nikol estava do mesmo jeito de sempre, vestindo liéve fresca, magro e forte nas feições dos Arrundria. Próximo dele, seus gatos — os baixos meio-irmãos não Arrundria de Faina, três homens e uma bela menina baixa e de cabelos loiros — a fitavam… Dele para cima, havia um estrado mal iluminado. Seu coração ardeu e cerrou seus dentes.
“Brisa, calor, o vento calmo da manhã, água em copo, um pinheiro cheio de folhas. Neve parada. Uma floresta cheia. Pássaros dormindo. Ovelhas cansadas. Um barco parado no porto. O mar quieto.”
Sobre o estrado viu um grande trono de gelo-velho, tão antigo quanto as ilhas… viu seu bisavô sentado num trono de gelo puro, azul cristalino. A carne estava tão enrugada e seca que suas bochechas magras despencavam dos ossos, como se os músculos tivessem apodrecido e virado água. Tentou repetir as palavras, mas o grito das batidas do seu coração eram altas demais para que pensasse direito.
— …
“Ande.”
Reparou que os Seis Chefes — Skjá Vladein, Boyko Ryba, Jaromir Veiliodyr, Tihimil Valke, Rayko Solnechny e Bogdan Mraziv — estavam de pé abaixo do cadeirão onde seria testada. Ficou surpresa de como Skjá Vladein chegara antes dela. “Havia alguma rota mais rápida?”
Ele tinha saído antes dela, de fato, mas não imaginava algum método para chegar mais rápido. Buscou ainda, Draziz, seu tio infame. Ouvira que tinha viajado para as Agulhas, afim de trucidar os Caras-Queimada; os rumores ruins chegaram em seus ouvidos até mesmo no seu palácio, isolado entre colinas.
“Ande”, bravejara “, sem Draziz aqui consigo me concentrar… ou tentar! Ele ao menos era engraçado…” Notou os olhos amarelos do bisavô caindo contra si, e de repente percebeu algo terrível. Krazdoro parecia idêntico ao Rieq, a única pessoa por quem conseguia sentir ódio. Um Razzin muito mais novo. Não queria ter percebido isso. Apertou seu filho, que dormia feito uma pedra.
A serva do Deus Branco, do Deus Gritante e do Deus Rígido, que estava ajoelhada perante um pequeno braseiro, levantou-se pouco após Faina chegar à metade do caminho.
— Chega a filha do Leão e do mar, a primeira — gritou. Faina notou escravos com anéis no nariz puxando alguma coisa pesada. — Primeira, ó, é primeira. Perdoe esta velha, primeira, mas não achamos nenhum leão no mar. Seria seu, ó, seria. Contente-se com um da neve, sim, por favor. E sente-se, Primeira! Eis seu Velho Nome! Primeira.
— Primeira! — aclamaram os Chefes, família e servos e escravos.
“O do bisavô era Forte, não era? Razzin, o Forte? Meu Krazdoro não será lembrado assim.”
Dois escravos, com as tiras de couro amarradas no nariz, empurraram o grande cadeirão vazio. Ao sentar-se, viu os Chefes, seus filhos e filhas, esposas e servos, ajoelhados de novo. A serva dos deuses frios foi em direção de Faina e ergueu as mãos magras. Entendeu e entregou-a Krazdoro. Depressa, a velha apresentou-o para todos os Chefes, movendo-o devagar para esquerda e direita.
— Eis o primogênito! Primeiro da Primeira!
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