Índice de Capítulo

    Houve aclamações. Os Chefes regojizavam, mas Faina sentia um olhar raivoso caindo pelas costas. A gato se aproximou dela e sussurrou na sua orelha: deixa ele comigo um pouco, Oy rassa. Assim que a velha devolveu o filho, Faina entregou-o para a meia-irmã e retribuiu um sorriso e agradeceu. Podia ser uma gato, não tendo muito dos Arrundria, mas era tão linda que a deixava feliz só de olhar.    

    Em seguida, Faina se acomodou um pouco no cadeirão. Reparou o pai. Estava sorridente, porém ainda transmitia o luto pela perda do sobrinho. 

    Escravos trouxeram uma grade de metal de vulcão, onde um leão congelado jazia morto. A serva dos deuses atirou pós e acendeu fogo em galhos de nevadeira. Os escravos retiraram o animal da jaula, então em um movimento o jogaram contra o fogo. Suas brasas explodiram como a dança de mil pássaros do inverno; tornou-se branco, vermelho, azul e branco como mil anos de neve.

    A serva degolou o animal quando todos os seus pelos já tinham queimado, e em poucos segundos seu sangue pingou, então verteu como um rio sobre sete cornos. 

    — Diga algo, Faina — ouviu Faina o sussurrar de seu pai. Esperou, mas nada o Rieq conseguiu dizer. Saiu do lado de seu avô, pegou o primeiro corno transbordante de sangue esbranquecido. Faina agarrou-o com as duas mãos, e Nikol deu-a um beijo na testa e sorriu. “Obrigado, pai. Também não vou te deixar chorar.” — Ruja!  

    “Brisa, calor, o vento calmo da manhã, água em copo, um pinheiro cheio de folhas. Neve parada. Uma floresta cheia. Pássaros dormindo. Ovelhas cansadas. Um barco parado no porto. O mar quieto. O sorrir de uma criança. Da minha criança.’

    ‘Não vou deixar nenhum de vocês chorar.” 

    E jogou todo o sangue branco na boca de uma vez.

    Tinha um gosto doce. Faina gostou. Mas o segundo gole teve um gosto ácido, que queimou sua garganta quando desceu. O terceiro trago foi fervente; outro doce, gordura fervendo, flores e mel, azedo como leite estragado, um gosto que não conhecia, outro teve o gosto do leite da mãe, de saliva, de uma brasa fervente. De neve. De carne. Sentiu o Sangue queimar dentro de si.

    Sua visão enturveceu. As silhuetas de tudo se misturaram nos seus olhos. Branco, negro, o cinza das rochas vulcânicas; foi como se uma viseira de fumaça estivesse surgindo de dentro dos seus olhos. Vertigem dominou-a como se milhões de formigas da neve escalassem suas veias e coração, a letargia tirou qualquer pensamento que conseguisse ter. “Brisa, calor, o vento cal… vent…”

    E fitou a chama branca, gritante, gigantesca como mil anos de neve soterrando uma planície. Tomava formas, tomava tamanhos, tomava pessoas. O fogo surgia vermelho do azul, crestava um verde arrodeado de negro com pontos prateados como os Luas, e fogo branco explodia de seu centro como um coração explosivo, batendo. Batia. Um laranja como nunca viu, um cinza que queimava, um vermelho pulsante e congelante, flores apodrecendo.

    Sangue, sangue. Morte. Por mil vezes o fogo voltou a si, contra si e queimou a si. Abandonou a si e justou contra mais fogo. E neve cobriu o fogo. Neve calou o fogo… ou era o fogo que descepava a neve? Vertia. Era um diabo. Tantas chamas. Chamas mais altas que um Arrundria. Chama, fogo, fogo.

    Branco.

    Ouviu seus deuses gritando, ouviu o rugido de inúmeros deuses, até do deus de Mirta e de sua mãe. Ouviu o grito de homens, ouviu o gritos diabólicos que nunca viriam de nada senão diabos. Tentara gritar, mas viu que não tinha boca. Viu que não tinha corpo, viu que não tinha olhos.

    Percebeu que não via mais nada. E o fogo dançava. Uma chama branca bruxuleante enegrecendo-se, dourada ficando sobre o carvão. Ouviu o riso mais perverso, a risada mais doce que já pôde provar, o mais dócil animal que já pôde domar e montar. Centenas de visões extasiantes, milhares de visões agourentas. 

    Sentia como se tivessem aberto seu crânio com um machado e jogado fogo no seu cérebro.

    Mas o fogo não parava. Queimava. Dançava e ria. Dançavam e riam. 

    De repente viu um lugar vazio, mas havia um trono. Havia ela em um trono. Mas notou que não era ela. Não sentia as pernas, porém andou até a esplendorosa sombra da mulher: alva, mas pálida do que a neve das Agulhas, como uma Arrundria; seus cabelos pareciam desprovidos de cor, mas, ao mesmo tempo, reluziam em um tom de ouro como os do seu filho.

    Não tinha ela manchas na pele, mas olhos amarelos como os de um leão pareciam dentes rasgando sua pele. Faina percebeu os olhões amarelos dela, redondos como os da sua mãe…

    Queimavam. De repente olhava para uma alta mulher de cabelos negros cinzentos, que jazia caída, olhando para cima o trono onde estava sentada. A via com desaforo. “Lixo”, a denominou. “Coisa de sangue pútrido.” Um diabo laranja ria e desabrochava flores que não mostravam seus botões há dezenas de tempos. Um diabo laranja tomava-lhe os lábios e agarrava seu seio, seus lábios com outros lábios e espadas, e um diabo branco ria como meio milhões de demônios, um irmão ordenava como a mais leal das brasas.

    Queimava, queimava. O mar queimava. O gelo tremia, a terra tremia. Uma flor branca de fogo dançava, suas pétalas eram como mil sóis que se ungiam em óleo. 

    Agarrou algo azul. Não sabia o que era. Não tinha mãos, não tinha dedos. Seu sangue ferveu dentro de si, como se cada veia estivesse saindo de si e dançando dentro do fogo, cantando línguas que não conhecia, línguas que sabiam que não existiam, línguas impronunciáveis. 

    Sentiu gosto da sua própria chama. Sua garganta entrou em chamas.

    Sentiu gosto da sua própria chama. Sua garganta entrou em chamas.

    Viu o filho repousando nos seus braços, viu seu povo a mirando, com olhos trêmulos.

    “Eles também são meus filhos.’

    — Ahh…

    Seu coração disparava.  

    — Aahhh…

    Algo áspero riscava sua pele. Algo frio. 

    — Aaahh… — Ouviu-o bater. — Aaahh…

    Azul. Forte. 

    RAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAHHW!! RAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAaaaahw!! — Sentiu-se sem ar. Ouviu algo. Não sabia dizer se eram batidas, altas, fortes. Ouviu o crepitar, passos. — Aawh…!

    Acordou seus olhos marejados, enturvecidos e embranquecidos pelo fogo brilhante. Seu coração parecia estar cheio de rochas e neve. Turvo e vertiginoso… mas um sorriso surgiu na sua boca. Levantou uma sobrancelha e tentou ver. Seis fileiras de homens estavam de pé, e ela tentava observá-los com alguma certeza do que via.

    “Rugi?”, suspirou, sentindo uma doçura nos seus lábios. “Acho…” 

    Sentiu os dedos voltarem para o corpo, vertiginosos e letárgicos. Os dedos dos pés demoravam, ainda mais letárgicos. A confusão nos seus olhos não sumia; fitou o lugar, os contornos dançantes, as pessoas se misturando com os arredores. Sentiu algo quente escorrer sobre seus pés e algo frio pesar na sua cabeça. Sentiu um toque calejado e gentil no ombro, além de um beijo na bochecha.

    — À Rieq! — gritou alguém. E outro continuou. Suas orelhas doeram. Os aplausos pareciam o bater de asas de centenas de tordos enfurecidos.

    “Consegui? Eu tenho… que erguer minhas costas…”

    “Onde está Krazdoro?” Estudou seus arredores confusos, sentindo algo queimar da sua barriga ao ventre. Olhou-se confusa. “Pareço mais magra?” Mas não continuou a pensar sobre isso. Olhou para sua direita. A gato continuava com Krazdoro entre os braços, mas agora estava… Não conseguia perceber.

    Os Chefes ganharam um contorno mais duro. Seu pescoço balançava e respiração vacilava, mas aos poucos ia conseguindo discerni-los. “O na esquerda é Tihimil… ou é o do meio? Todos são tão barbudos… E engraçados! Sinto que posso pisar neles! Sou tão grande… mas minha mão está pequena… azulada?”

    Viu seus dedos. Suas pontas estavam azuladas, como um verniz das árvores do sul, que Draziz uma vez presenteou-a. “Eram assim antes? Eram? Não sei… Que seja! Estou com fome! Estou com sede! Sinto que posso devorar um cavesão inteiro! E estão bonitas… As unhas… Onde está Krazdoro? Está chegando a hora de mamar…” Tateou um dedo no outro. “Parecem normais… Acho que estou louca! O Deus Branco prega peças comigo agora! Posso rir!”

    Quis virar a cabeça e olhar para o bisavô e xingá-lo até a boca cair, mas quando mexeu o pescoço, despencou sobre o ombro do cadeirão. “Huhu, isso foi divertido! Doeu um pouquiiinho!”

    — Rieq Primeira — avisou a serva dos deuses; Faina viu-a como se seu rosto enrugado e flácido fosse o de um cavesão —, os Seis Chefes querem se apresentar e dá-la presentes.

    — Que veeeenham! — gargalhou. — Gosto de presentes!

    Faina viu os contornos destorcidos do Chefe Jaromir Veilodyr. Achou que fosse um bicho. Ele expunha seu arco recurvo de madeira anciã e rosto tatuado. Trajava um manto longo de lã, coberto por lascas de madeira, entalhes negros como carvão e couros de ave. Faina conseguiu ver isso com muito esforço, e ainda assim não tinha certeza do que via. 

    — Jaromir Veiliodyr, Chefe do Ferrão do Norte e das Vilas Verdes, se mostra à Rieq Primeira. — Sua voz ribombante soou engraçada. Seu servo trouxe um barril pesado, acompanhado de um rapaz alto com não mais que vinte anos. — Te dou hidromel e meu mais novo, como esposo ou servo de prazer, como você quiser.

    Faina tentou arranjar alguma graça no rapaz. Era bonito, de feições másculas e pouca barba arruivada, com ombros que exalavam virilidade. E vestia-se bem. As roupas do Ferrão do Norte não eram tão boas contra o calor, no entanto eram mais belas, principalmente quanto ao ouro que rodeava as correntes no pescoço. Mas… não parecia com o homem que a engravidou. “Ele era mais alto”, pensou “, mais branco e mais forte, e mais barbudo! Você é feio!”

    — Aceito o hidromel! — gritou ela, tão tonta que era como se sua voz tivesse mais álcool do que o barril. — Próximo!

    — Filha… — “Não deveria ser assim! O leão acaso estava mal congelado? O fogo estava impuro? Meu irmão não ficou bêbado quando foi Rieq!”

    — Pai — interrompeu —, você está engraçado! Próóóximo!

    Nikol, que nunca fora Rieq, tentou falar mais alguma coisa à Primeira, porém o Chefe da Quinta Tribo se ajoelhou. Usava roupas tão pesadas que parecia estar coberto de metais. “Um chocalho! Ele é um chocalho!”, pensou Faina. Atrás dele, arcas cheias de pele, rochas de vulcão e brilhantes vinham carregadas por servos, além de umas moças de quinze anos, e um homem de não mais que vinte.

    — Boyko Ryba, Senhor do Sopé do Leão e Vulcão Vermelho, se apresenta, Primeira!

    — É bem-vindo!

    — Dou-a como presente, Primeira, quatro arcas de tesouros tirados da rocha e da carne, além de minhas filhas como suas servas e…

    — Aceito até aí. Próximo!

    Faina fitou as trigêmeas. Eram baixas, cobertas de metais e peles, e tinham uma carcaça adornada de uma serpente amarrada no seu pescoço. Estudou-as com mais vontade, desde os cabelos loiros que chamavam cada vez mais sua atenção, aos corpos volumosos, os olhos brilhantes e postura altiva. O coração de Faina borbulhava. “Elas são lindas. As quero.”

    O lugar de uma dama é com sua pele ao sol, dizia sua mãe, que detestava cada parte do vestuário das ilhas. “Mas aqui não tem sol! Vão ser elas! Já que não tenho o… Mas tenho Mirta…”

    Em seguida, veio um homem de cabelos ruivos e olhos afiados, como os de quem passava o dia encarando o céu. Suas roupas pareciam ser feitas de escamas, com joias cravejadas por suas manoplas. Atrás de si, arcas carregadas de peixes, flechas e lâminas, servos fartos, rapazes e mais joias.

    — Skjá Vladein, senhor das Ilhas Brancas, apresenta-se perante à Primeira!

    “É! Ele é o pai do gato que não parava de olhar pra minha bunda!”

    Faina fez um muxoxo e gargalhou:

    — Aceito seus presentes, mas seus filhos não. Mas eu gostei do rapaz, viu? Só diga para Razin ser mais discreto!

    De súbito a serva dos deuses se levantou do braseiro, com o rosto contorcido e revoltado, agarrou a Rieq pelos braços e bravejou:

    — Tem de tomar homem, Rieq! É a tradição! Tem! Os deuses terão raiva! Tem de casar e conceber antes da noite!

    — Mas eu já pari! — Apoiou o queixo no ombro e gesticulou como se tivesse Krazdoro entre os braços. — Meu filhinho é lindo, mas o pai dele foi expuulso pra longe, né, vô?

    Faina riu e deu um fraco empurrão na velha. Notou que Auta vinha correndo, mas a Rieq Primeira já não entendia mais nada. Ela levou sua mão ao rosto; seus dedos pareciam azulados. “Azul… azul… Estou fora de mim.”

    — Tragam-me os outros seis cornos e meu filhinho… E escolho Mirta para desposar! Mirta e Razin, o gato de Skjá!   

    “Sete dias de festa, até a Noite chegar!”

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