Índice de Capítulo

    “Ah, não há tanto que consigo dizer sobre a mãe dela. Há realmente pouco a se dizer, pois pouco com ela consegui sonhar: eis uma de minhas particularidades, afinal. Entretanto, mesmo com relativos poucos sonhos, sempre tive muita certeza de quem era.

    Willmina era infame até aos deuses que adorava. “Ah, não há prazer maior do que vê-la sofrer!”, é o que imagino que pensem.”

    Izandi, a Oniromante

    — Onde está o outro? — Rei Rheider Beesh levou a mão ao queixo imberbe, fitando todos de cima do cadeirão, onde estava sentado com todos os seus ornamentos reais: um cetro de plumas de pavão, sua coroa de ouro e marfim, existente há mais de mil anos e uma espada de rubis e penas incrustados na lâmina de olmo.

    — Vossa Majestade — respondeu Ereken, levantando a cabeça —, perdoe meu filho. Não o vejo desde o duelo, mas garanto que, se ele está ausente, não é em despeito a vós.

    Willmina balançou a cabeça ao reparar o olhar fixo da filha e o semicerrado do rei. “Onde está, Bert?”, cerrou os punhos. “Tenho certeza de que gostaria de estar aqui. Sempre quis sair!” 

    Por estar grávida, foi-lhe permitida estar sentada — junta de Hydele, por ter o corpo aleijado — durante toda a cerimônia. Para ela, já havia passado do tempo de acabar há muito mais tempo.

    No momento que o duelo acabou, foi de imediato aos seus aposentos junto de Nianna e Hydele afim de se arrumarem — e fez com muito gosto, penteando e vestindo as duas como se ambas fossem irmãs de sangue. Pela primeira vez, vira sua pequenina filha pedir para usar um justilho. “Talvez… talvez não seja mais tão pequena”, percebeu. 

    Hydele crescera quase meio palmo desde o começo do outono. Willmina a trajou com um vestido verde, da bainha de bordados cor de ouro e uma anágua cor de sal, adornou seu pescoço como um colar de quinalfero-âmbar e o colar novo, e calçou-a com sapatilhas novas. Ficara tão bela que desejava que a cerimônia acabasse em uma frase, para descerem à Vila do Rio e comprar uma pintura.

    Todavia, mais de uma hora havia passado e nada acontecera além de perguntas do rei sobre as proezas de Ereken na Barragem, um eventual sorriso da princesa Salile, um servo levando-a água e os constantes olhares do príncipe para sua filha — e às vezes para si. Willmina perdera a paciência havia muito. Temia o que aconteceria quando o menino fosse rei — o que julgou não estar distante. 

    Sua Majestade muitas vezes estava com um olhar alto; noutros momentos, foi como se não lembrasse do que estava acontecendo. “Terás de controlá-lo bem, Nianna.” 

    Coff! — tossira o rei. Cobriu a boca com um lenço de veludo. — Coff! Coff! — Willmina ouvia a garganta do homem grunhir, como se estivesse preenchida por algum óleo pesado que a obstruísse até os pulmões e além. O duque pôs a mão no ombro do amigo e trocaram um olhar preocupado. O rei lufou e arfou pesadamente. De relance, conseguiu perceber uma mancha escura no lenço.

     De súbito, o rei levantou-se.

    — Cei Ereken Zwaarkind — tossiu —, fui eu bem informado de seus feitos na Barragem. — Desceu do estrado e a aproximou a espada do ombro de Ereken. — Duvidei de tal verdade. Tomei-a como inverossímil, como um devaneio de guerra do meu íntimo amigo e vassalo, o duque a quem o meu sul inteiro dá honras. Todavia, hoje testemunhei parcela do que me foi contado, feito de abrir os olhos. Honroso foi teu feito!

    — É uma honra seu elogio, Vossa Majestade.

    — Eu quem o proclame, Cei Zwaarkind. — Das papas das suas bochechas cansadas, pequenas marcas e rugas diminuíram com o pequeno sorriso que surgiu. — Não há honra maior para um rei do que proteger seu reino, e não há honra maior para o reino do que honrar os que o protegem.

    Pela primeira vez, Willmina viu o tom de voz do rei mudar. Não parecia o homem rígido que obrigara um casamento entre seu filho e a filha de seu amigo. Notou as olheiras inchadas abrirem um leve sorriso de olhos; à sua frente, parecia rejuvenescer. Era difícil perdoá-lo. Mudara tanto de sua vida em curtos dois dias. Odiava mudanças, todas elas.

    Sempre vieram com as piores mazelas.

    — Levanta-te, Zwaarkind! Que teus outros membros também se levantem, se for-lhes possível. Independente de onde estejam. — O rei tocou a longa espada no assoalho do salão e, após segundos sussurrando na antiga língua de Aarvier, a entregou a Ereken, que se ajoelhou, a segurando pela lâmina e pomo. Hydele também ficou de pé. — Traga o decreto!

    Quatro servos em fila, muito bem vestidos, trouxeram à frente do rei almofadas de plumas e veludo. O rei pegou o pergaminho e o leu rápido e com cuidado.

    — Em reconhecimento coff!, de seus atos de bravura, lealdade e de honra para a Aarvier, é meu prazer e dever declarar que, de agora em doravante, da tua, aos filhos de seus filhos e todas as gerações vindouras de tua semente e do teu braço forte, teu sobrenome eleva-se a Casa Zwaarkind. Isto garanto pelo direito exercido por mim, Rheider IV Bloemmenen … coff! rei de Aarvier, senhor dos Pântanos Floridos às Planícies das Águas, das Montanhas Fronteiriças ao Planalto Cinzento, sangue legítimo dos Farenos e Veranos, e filho de falecido rei Ruihejer, afirmo com minha vida tua honra, graça e dever eterno para com o reino.

    — A honra e a graça são nossas! — afirmaram os três em uníssono.

    Houve aclamações. Palmas altas pelos lordes enfileirados e notas suaves dos musicistas. Willmina suspirou e, ao notar a olhadela séria de Hydele, ficou em pé. A menina falava palavras em tom baixo, quase silenciosas; palavras de uma sílaba sem qualquer sentido para quem as ouvisse. “Truque de concentração? Está tramando algo”, pensou de queixo erguido e peito assustado. 

    O rei lhes entregou o pergaminho e continuou:

    — De agora em diante, são barão Ereken Zwaarkind e baronesa Willmina Zwaarkind, e seus filhos herdarão seu nome. 

    — A honra é nossa, Vossa Majestade! — responderam os três.

    Em seguida, o rei fitou a segunda almofada. “O que vem agora?”, pensara ela, mas logo percebeu.  

    — Ainda é de teu direito um brasão de armas. Em virtude do que vi mais cedo — sorriu com a ponta dos olhos —, pedi, ainda que as pressas, que lhe fosse feito um. 

    Tomou a pequena costura e a mostrou: em linhas azuis, laranjas e vermelhas, sobre uma cachoeira, uma espada cruzava um coração rodeado de aureiras, sumagreiras e faias altivas em outono. 

    — Espero que seja do seu agrado, barão.

    — É uma honra, Vossa Majestade. — Prestou uma longa saudação. — O que imaginava era semelhante.

    — Então ambos somos homens de pouca imaginação. Que lastimável. — Fechou os olhos e fez um sorriso reto como um traço.

    Willmina cerrou os olhos; a piada fez com que todo nobre da região, e os que seguiram o rei, rirem quase que descontrolados. Um sorriso nostálgico projetou-se no rosto de Ereken. “Nalt sempre tinha piadas assim”, ela pensou e logo seus ombros arquearam e olhos semicerraram de tristeza. Sejam felizes, seus miseráveis, e você, Elouan, que queime em todos os infernos, ele dissera. Suas últimas palavras. 

    “O que fiz? Não deveria ter permitido isso. Planejávamos em ir embora assim que fizéssemos cinco anos aqui… E agora, até o homem a quem julgava ser um adversário de nossa paz, de repente, parecesse-me amigável. O que fiz?”

    O rei tomou o conteúdo das duas últimas almofadas: um anel de sinete, posto no dedo de Ereken, e braceletes de ouro, entregue a Willmina e Hydele. “Frio”, pensara a menina, e logo o rei passou a ler o conteúdo do último pergaminho:

    — A Casa Herwian infelizmente extinguiu-se, e de sua linhagem não restam herdeiros. Suas terras, que estão às margens sudoestes do Canal das Flores e do Rio Lijje, a Colina do Veio, será repartida entre a Casa Zwaarkind e a Casa Myllec, do norte. Ademais, declaro agora que há ainda mais razões a festejar. — Ergueu os braços. — Sentemo-nos, comamos e bebamos em honra de um bom dia neste inverno!

    “Agora temos terras nos nossos nomes? É o fim de minha paz…”

    Uma mesa redonda fora traga e posta com cadeiras luxuosas na frente do trono. Duque Beesh sentou-se ao lado do rei, junto de Ereken. Príncipe Howan tentou sentar-se ao lado de Hydele, porém o grande Rheider Beesh sentou primeiro. “Onde está Bert? Estou começando a me preocupar.” 

    A princesa, para sua surpresa, sentou ao seu lado. Pareceu-lhe admirada; Willmina não desgostou da menina. Sobre os ombros, algo como um xale encouraçado cobria um manto de veludo vermelho; sobre ele, seus cabelos tricolores repousavam bem penteados nas duas tranças, parcialmente cobertos por um barrete de flores. Azul era seu vestido, o mesmo tom safira dos olhos. “Difícil acreditar que uma donzela, tão linda como ela, não tenha um noivo.”

    A baronesa observou o salão, buscando o filho em olhadelas. O ovo de dragão-real, presenteado à Casa Beesh, fora posto num pedestal de granito e quartzo, enfeitado com faixas de seda e penduricalhos, como estava todo o salão. 

    Outras famílias nobres tomaram o lugar com longas mesas e menestréis; pensou ela que toda a comida que fora juntada para a Vila do Rio no festival de caça teve fins indesejados. O planejamento de Hydele e do cile para a colheita do ano que vem — e desse — fora atrapalhado. “Uma tarde de cálculos à toa.”

    Não demorou muito para que as delícias do banquete passassem a serem servidas. Willmina teve apenas que aturar poucos minutos de brigas silenciosas entre o duque o rei, além de sussurros entre as meninas à mesa. “Formaram bela amizade”, pensou. Mas Nianna estava com ombros reclusos enquanto falava, e de tempos e tempos Hydele pronunciava mais palavras sem sentido.

    Um servo entregou-a chá adocicado com mel, mas logo serviu a todos um porco perfeitamente defumado. Peças de pato cozido e mingau de grãos com bacon e temperos, vinhos de uva e lichia e maçã, bolos de cebola doce e batatas cozidas com queijo derretido e bacon chegaram antes que terminasse de comer o primeiro prato. Estavam saborosos, e, mesmo estando com fome, não pôde saboreá-los tanto quanto Hydele, Ereken, Rheider e Theolor.  

    “Comem tanto”, riu. “Ah…”, suspirou, alegre como a filha mantinha classe mesmo comendo muito. “Tantas coisas amaldiçoo… Mas isto pode ser bom. Pode ser mais paz. Sei que virá. Os Deuses atenderão minhas preces.”

    Fitou de soslaio. Enquanto si, que grávida ainda estava no segundo prato, o rei mal tinha comido metade do primeiro.

    — Baronesa — chamou o príncipe em tom cortês, ajustando a gola do seu tabardo de veludo e arminho; o inchaço não sumiu. Limpou a poca com um lenço e continuou: —, soube que sua filha é bem dotada com o canto.

    “Tocando em meu orgulho como mãe? Ah, pensas que me esqueci de tê-la chamado de ‘feiosa e magra?’”

    — …Minha querida filha recebeu boas graças dos Deuses, Vossa Graça — levou um bolinho de cebola frita à boca, com todos os bons modos que construiu na infância. 

    Willmina notou Hydele ficar mais cabisbaixa do que vermelha. Sua filha nunca fora boa em lidar com elogios, sempre soube disso, mas ficar triste com um era coisa nova. De repente, a menina balançou a cabeça suavemente e respondeu:

    — Agradeço, Vossa Alteza. Sua Alteza sua irmã, havia pedido para que eu cantasse hoje. — Com muita graça e educação, Hydele saiu de sua cadeira, apoiada na bengala; a princesa e Nianna logo a seguiram. “Arquitetaram isso ontem à noite?” — Espero que seja do agrado de todos aqui.

    Willmina sentia seu coração parando. Sua menininha mal tinha coragem de cantar na frente do seu professor. “Há ao menos cem pessoas aqui, minha pequena!” Fez uma curta prece e saltou da cadeira, contudo sua pequena já estava no meio do salão, sentada em um cadeirão alto levado por servos, junta de uma harpa alta em formato de “C”, de osso de dragão-real, com cordas que mal conseguia ver, em seu colo.

    Todos do salão imediatamente travaram seus olhos nas três, principalmente em Hydele.

    Observou os trêmulos olhos amarelos-âmbar da filha; estudou com o coração partido sua menininha. Ela abriu a pequena boca de lábios finos, respirou fundo e emitiu uma simples nota na harpa. De repente um sorriso deleitoso surgiu na face aquilina da filha, como se aquela singela nota fosse uma onda de deleite inexplicável. 

    Já Willmina reconheceu qual música seria cantada. A detestava. Só a voz doce da sua filha conseguia fazer a dor da canção ser vencida. Antes que tomasse mais qualquer força para interrompê-la, os olhos alheios fixaram nela; e Nianna tinha posto a mão sobre o ombro da amiga.

    Sua menininha respirou fundo e fechou os olhos. Deixou o ar sair vagarosamente e respirou…

    Qolen khe drařaľilen, ľaoceinaír dyotem, Nifař?

    Líalen ri um berenren sæ zen?

    Ekdaren griardæ ro må, 

    æliren beeľænaír grurålár zu. 

    Líalen farin śárad di ţa tmikre? Åh, Nifař!

    Nifař, Nifař, Nifař!1

    Skad Hakel iedartúr zen

    Malshoen u vyalkte, Nifař!

    Niad luthennen må ko, máylael ľaoceinaír rå

    Um hælzy u ţa dyot lár grååter, Nifař…

    Nifař… Nifař… Nifař!2

    Sentiu uma lágrima descendo a bochecha. “Tão linda… Ah!” Ereken apertou-lhe a mão direita com um sorriso cheio de orgulho. Poucas vezes na vida pôde sentir tanto orgulho como agora. Sentiu um vento ameno vindo de dentro, uma onda de alegria singela e cheia de ânimo. Sentiu-se abençoada. 

    “Tantos erros cometi… Mas agora, agora posso sorrir. Sorrir, sorrir e sentir orgulho. Algo de mim deu fruto feliz…”

    — Ei… Nós erramos, meu syåsonike? — ela sussurrou, segurando o Sangue Prometido no cilindro de vidro em seu colar. — Em continuar aqui?

    — Não. Definitivamente não. 

    — Tem certeza? — Encostou o pescoço no peito do marido.

    — Até meu último suspiro.

    — Isso pode virar nosso lema — riu, tocando sua barriga engrandecida. — “Até Meu Último Suspiro.”

    “Tenho que ver os fatos, observar as verdades tal qual fez o Profeta no deserto. Minha menina não é mais uma criancinha, eu não sou mais jovem para fugir e ninguém se lembra de qualquer nome meu além de Willmina”, suspirou. “Tudo antes disso está morto.”

     “Farin śárad ta”, wakeat za zen, Nifař!

    Řalq qidhæ u podem śo ţa araorn!

    Berenid ri sæ zen eandr,

     Malfid te ze qydr,

    Um śárid te, um śárid ľe, um śárid ľe!3  

    Kérentór ţa firiř ashiqid

    Nailen um trayfio u inpoosktor gråtor, Nifař…

    Nedherid u åmdto adæs!

    Šyaliřem spiialún: “máyla aydæs zen?”

    Syid um ţa heshuř, saurdif.4 

    Willmina secou as lágrimas. Sua filha pronunciava um Otaneák quase perfeito, e com sua voz doce calou até os sons dos menestréis no salão. “Dissera a mim que meu ventre era amaldiçoado, maldito morto!”, bufou com peito erguido. “Mas nenhum outro ventre faria isso. Não errei. Meu futuro é aqui.’

    ‘Hum? Que odor é este?”

    1. Tradução do Otaneák: Por onde andam suas asas vermelhas, Nifař?/ Por que não o trazes a mim?/ Teu trinar me castiga, de dor me é festim./ Por que fô-lo de mim tirar? Ah, Nifař!/ Nifař, nifař, nifař![]
    2. Tradução: Teus olhos negros me doem/ Que de tristeza me afogam, Nifař!/ Leva-me a ela, que tuas asas me entoem/ Pois de dor já não consigo caminhar, Nifař…/ Nifař, Nifař, Nifař.[]
    3. Tradução: “Já se foi”, dizem-me eles, Nifař/ Mas sei que ‘m ti pode-se confiar!/ Que o trarás de volta,/ Que ele baterá à minha porta,/ Que não se vá, não vá, não vá![]
    4. Tradução:Em cristal dormir terei/ Em rija dor que não labuto, Nifař…/ Por dela longe morrerei./ Do teu bico gorjeia: “Ela canta por mim?”/ Já não há suportar, cederei.[]

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