Capítulo 17: A insanidade da neve
“Afoite o couro
e o tome pela foice.”
Izandi, a Oniromante. Excerto de “Mistérios da Pedra de Gelo”

— Aaahh! — agonizou. Filetes de lágrimas escorriam dos olhos negros da mestiça. A maravilhosa Dançarina das Ondas cura os marinheiros feridos com seu choro, era o que Mirta e sua mãe sempre lhe contaram quando criança; mas as suas lágrimas não curavam Auta de maneira alguma. Estava morta. Morta, de uma forma que até a mais inocente das crianças saberia que estava morta. — Aaaaahh!
Faina agarrou o cadáver de sua mãe entre os braços.
— Ay rieq… — sussurrou Mirta, à frente da porta de metal de vulcão. — Ela já se f…
— Cale-se! — crocitou Faina. — Cale-se, cale-se, cale-se! — “Mãe! Mãe!” Apertou Auta com mais ardor. Estava sem calor, sem nenhum dos calores que acolheram e cuidaram Faina por todos os momentos da sua vida. “Está fria… Fria. Isso é o frio?” Catarro escorreu do seu nariz; seus olhos pareciam sangue jorrando água.
“Mamãe… Mãe…”
Finalmente fitou a flecha; atravessava do estômago até a lombar. Sangue congelado quebrou enquanto puxou a flecha, e a dor lacerou o coração de Faina quanto mais ela puxava. “Mãe… Isso é culpa minha. Se não… ah!”
Mirta se ajoelhou.
— …Faina…
Faina ergueu o rosto e fungou profundamente.
— Onde está meu filho?
— Fai…
— ONDE ELE ESTÁ?!
A Esposa de Deus pôs as mãos no regaço, com assombro, tristeza e terror nos olhos. Tentou resvalar o rosto, mas suas costas e joelhos amoleceram e então caíra com o rosto no chão.
— Me desculpe… — sussurrou, com a voz engarrafada em ranho.
No entanto, fora agarrada pelos ombros e soerguida de uma vez. Desviou o rosto e cobriu-o, escondendo constrangimento e lástima. Não queria ser olhada pela amiga. “Não consegui sal…”, tentara falar, mas de chofre fora levada a um abraço.
— Conte — sussurrara Faina, com um tom igualmente choroso e muito mais enregelante. — Me conte quem fez isso. Quem te feriu… Quem matou mamãe e onde está…
Como um rugido de um cavesão cansado, Mirta irrompeu em lágrimas de novo. A Esposa de Deus meneou a cabeça; a Primeira viu os olhos já secos de chorar. Respirava tensamente. Sentia a barriga contraindo e o peito inchado, e atrás dos ombros da amiga, cerrava os dentes com tanta força que estralavam por cada segundo que elas continuavam abraçadas. Segundos que pareceram horas às enlutadas. Mirta abaixou os olhos.
— E-Eu… estava com sua mãe quando você saiu do castelo. — Enxugou as lágrimas no braço magro. — Ela tinha acabado de dormir com seu marido, ambos cansados estavam. Mestra Auta tinha um rosto feliz e satisfeito como não via há bastante tempo…
Olhou para o cadáver da mestra; de chofre explodiu em choro de novo.
— Um bom tempo se passou, e então Krazdoro começou a chorar novamente. O troquei, mas ele também estava com fome. Então o levei para Likotza, pois não tenho leite, e pouco depois, voltamos eu e Mestra Auta para os quartos… Deixei… Krazdoro com ela, então fui esquentar água para rezar… lá fora… Quando… Quando… — Enxugou as lágrimas de novo. — Quando voltei, vi duas ou três vintenas de homens roxos correndo para dentro do castelo… e me escondi. Minhas pernas viraram galhos secos de salgueiro, Faina!
Abraçou-a com mais força, mas aquilo não lhe parecia nada. A cada palavra da amiga sentia o sangue fervilhar e subir a cabeça com algo ardente, brasante, que retorcia seu pensar e fazia até a sedosa voz dela lhe encher de raiva. Uma raiva muito maior do que a que sentia pelo bisavô…
— Mas eu consegui entrar. Senti o fedor do ferro por todo lugar, e tudo tinha virado uma cacofonia desastrosa de gritos, ferro e espirros de sangue; um alarido infernal. Entrei escondida, fugindo da batalha escorada de joelhos nas paredes. Mas quando terminei de subir a escada, havia um homem com a pele roxa, coberta por pelagens e com ferro liso e raivoso.
De súbito Mirta foi apertada ao ponto de ouvir os ossos estralando.
— Ele te feriu? Ele ainda está vivo?
— S-não. Um filho dos Chefes me salvou dele e levou mais um, que tinha um arco, para a morte, mas ele já estava ferido e caiu das escadas. Eu fugi, corri para o quarto onde imaginei que Auta estaria… Mas ela já estava assim. Foi então que ouvi o choro de Krazdoro…
— Meu Krazhii! — A apertou ainda mais.
— S-sim! — arfou e fez força para se soltar um pouco, com olhos focados nos olhos da amiga. Estavam ambas miseráveis. — Quebrei uma garrafa de vidro e sai devagar do quarto, e vi um homem saindo acompanhado do choro. Ele estava totalmente coberto, então não pude vê-lo direito, mas era baixo e…
— Krazhii está vivo… — suspirou Faina, como se todo o resto que Mirta tivesse dito fosse desimportante. As lágrimas de dor que escorriam devagar se tornaram de alívio também. Esgueirou-se até o corpo da mãe, então descansou a cabeça dela no seu regaço e alcançou a flecha que a matou. — Eram Caras-Queimada, não eram? O que matou minha mãe, tem certeza de que ele foi morto?
— Não sei, Faina… — Juntou as mãos e olhou por trás do ombro; sentia-se congelando, e seus olhos castanhos estavam tomados pelo vermelho marejado de dor. — Todos eles são parecidos.
Ouviu Faina estalar a língua.
A Esposa de Deus apertou os punhos. “Nunca a vi com tanta ira!”
Mirta ficou em silêncio quase contemplativo. Contemplava com o coração cheio de dor da menina que cresceu consigo, agarrada a mulher que fora quase sua mãe. Disse-se várias vezes que foi criada pelos ensinamentos das sacerdotisas do Deus-Azul que sobreviveram ao naufrágio, mas sabia que não era verdade. Airta, Lirolinda, Jara… todas elas a criaram, sabia disso, mas nenhuma delas era Auta.
Sua mãe fora Auta. Fora Auta que a resgatou de se afogar, a custo de perder seu primogênito no ventre. Auta, que lhe ensinara a costurar, a pentear seus cabelos, a cuidar de sua feminilidade…
“Senhor Azul”, rezou “, Pai do Mar, das ondas e esposo das algas, espíritos do mar, estrelas no céu e de todas as mulheres banhadas pelo Mar, acolha a alma de mais uma de suas esposas no seu lar. Que tenha a companhia de seus esposos e filho, prazer e felicidade eterna entre teus átrios.” Fora tudo que conseguiu fazer.
De súbito Faina virou um rosto intransponível às paredes de metal de vulcão.
— Onde está meu pai? Ele está bem?
Antes que Mirta abrisse a boca para responder, a porta de metal de vulcão foi aberta com gentileza rápida. Coberto do sangue de caras-queimada, Draziz tinha sua loriga como flechas pouco penetradas presas na região do ombro e um corte profundo na sua bochecha; um olhar sério e ensanguentado de seus olhos vermelhos observava as duas.
Draziz era um Arrundria do corpo parrudo e mais branco do que a neve, portador de todas as características de sua família. Tinha feições rígidas e um queixo quase quadrado, de olhos vermelhos centrados como os de um leão e cabelos bem cortados, com a barba amarrada em duas tranças, e arfava de cansaço, como se não aguentasse ter tanto sangue sobre as roupas.
Entretanto, Faina não retirou os olhos da mãe.
— Agora é Rieq? — provocou Draziz, se apoiando na parede. — Mandei que não entrasse.
— Não pôde me impedir. O castelo já está limpo? Estão todos mortos? Acharam meu filho?
— Quase todos — respondeu. — Obriguei alguns chefes e novos chefes a pouparem e amarrarem alguns.
Faina ficou de pé com a mãe nos braços.
— Onde está meu filho? Onde está meu pai? Onde estão?!
— Não se…
— Então o que faz aqui?! — ela gritou. — Descubra! Me traga eles!
De súbito sentiu-se devorada pelos olhos de Draziz, que sorriu com o grito leônico da Primeira.
— Às suas ordens, Ay rieq. Vou descobrir. — Deu a volta pela porta, palrando alguma coisa e foi embora.
Mirta se dirigiu a porta e quase a fechou, mas a Primeira a impediu com um rugido cheio de ira.
— Vamos embora. Tenho que entregar minha mãe ao mar antes que seu corpo seja maculado por animais.
— Faina…
— Estou triste, Mirta. — A agarrou. — Console-me, me deixe chorar e me console… Não posso perder mais. Não posso… Me console… senão não sei o que vou fazer.
E se deu para as lágrimas e o peito amigo até poder voltar a se concentrar em algo além da ira e do medo.
O salão do trono tinha o assoalho pintado de vermelho. Razin Vladein estava sentado sobre uma pilha de corpos de Caras-Queimada, esfaqueando o corpo de um que não deveria ter mais do que quinze anos.
Já haviam feito metade do trabalho que pensou em ordenar: os chefes vivos trouxeram os corpos de seus entes e amigos Chefes mortos; somente Rayko Solnechny e Bogdan Mraziv estavam ali inteiros.
Passou pela fileira de homens e de mulheres chorando paralela a dos mortos; seu bisavô continuava com sentado no trono como se não estivesse morto. Faina sentiu-se preenchida de ira mais uma vez, uma que superava a dor da agressão que sofreu.
Parecia natural. O detestava, tinha certeza disso. Muitas vezes obrigou-a a sair de perto de sua casa, já lhe impediu de ver seu pai e quase vendeu sua virgindade para Rayko Solnechny duas vezes. “Mas por que quero chorar por ele?”
Engoliu toda a tristeza desprezível e pôs as mãos no cadáver do bisavô, o Forte. Beijou sua testa e chorou uma única lágrima. Não demorou para que os Chefes e sacerdotes dos deuses percebessem o que ela faria, mas ela sabia que ninguém poderia impedi-la. Faina sentiu cada olhar contra suas costas nuas.
Um rieq é rieq até que a morte o tire do seu trono, disse um sacerdote de quase cem anos, mas a Primeira não se deixou ouvir
— O rieq agora sou eu, que sou Primeira… Nenhum dos meus resta perto de mim. — Tomou ela mesma os braços velhos e ossudos do seu bisavô e o tirou do trono, o levando devagar até a pilha de corpos onde os do seu povo estava. “Agora são todos meus amados filhos também, e agora estão mortos.” Eram dezenas agrupados, com sangue congelado e pele cinza enfileirados.
E aumentaria.
Ainda restavam esposas e escravos para se juntarem à glória dos guerreiros caídos.
— Ay rieq — falou Radiza Veiliodyr, herdeiro de Jaromir Veiliodyr, morto com uma flechada na garganta —, o que faremos?
— Eu… primeiro quero ouvir o que aconteceu, detalhe por detalhe.
— Não é muito difícil de descobrir — respondeu Razin Vladein, com desdenho e ainda esfaqueando um morto. — Aproveitaram que estávamos todos bêbados e fodendo e nos atacaram. Simples.
— Cuidado de como fala.
— Pare, Solnechny! — bravejou Faina, cobrindo o rosto e tampando o nariz, com uma voz presa em lágrimas quase caindo. — Estou de luto e não quero ouvir besteiras…
Faina juntou os joelhos ao peito e os agarrou, escorando as cosas no trono de gelo-velho. “Mãe…” Quanta morte estava à sua frente…
— Continue, Razin Vladein.
— Mataram meu pai e suas esposas, sobrando só Zjoava, que agora é minha, pois ainda era virgem. Mataram os Chefes Jaromir Veiliody e Boyko Ryba com a mesma flecha, mortos por… — cerrou os dentes e, com a faca de metal de vulcão, cortou fora a cabeça do defunto que esfaqueava — …esse aqui, que também matou minha irmãzinha e meu amigo recém-casado.
“Isso deveria retorcer minha barriga”, pensou a Primeira. “Ainda sinto a ânsia. Ainda há medo, ainda há nojo. Consigo reconhecer isso.” Mas era como se uma voz sombria gritasse do seu peito para o resto do corpo.
— E sobre meu pai? E onde está Tihimil Valke?
— Sobre seu pai eu não sei — continuou o rapaz, descendo do trono de mortos. — Mas vi um bando de caras-queimada fugindo, montados em um animal que nunca vi. Chefe Tihimil Valke foi atrás deles num cavesão obeso. Estava furioso e desesperado.
— E meu filho?
— Desculpa, Rieq, mas eu não vi ele.
Faina suspirou e fitou o teto alto de caibros de nevadeira envernizados.
— Onde está o herdeiro de Boyko Ryba?
— Boyko Ryba — respondeu Rayko Sonechny — não teve filhos homens. Seu herdeiro é seu irmão, que não estava aqui.
A Primeira ficou sem ter no que pensar. Todo pensamento seu estava voltado em marchar em direção ao sul, transpassando as Agulhas depois da Cauda da Tempestade e levar os caras-queimada ao fio da espada. “Não consigo focar.”
Fechou os olhos. No escuro dos olhos via sua mãe. Imaginava os olhinhos amarelos do filhinho. Enchidos de medo. De desespero. “E se ele ficar com fome de novo?! E se queimarem seu rosto?! Ele não aguentará, não aguentará!”
— Irei ao mar de novo — ela respondeu, fitando o novo Chefe Vladein. — Devo levar o corpo de minha mãe ao mar, que lhe era sagrado.
— Então retornarei ao Ferrão do Norte — disse o novo Chefe Veiliody, que Faina notou ter as pernas tremendo e olhos prestes a lacrimejar. A Primeira se levantou e deu passos cansados até a pilha de defuntos dos Chefes. Havia filhos e filhas e pais dos sangues das Tribos ao lado de escravos ali. Todos cinzas, congelados.
Faina ergueu suas mãos e tocou os pés de cada morto, retirando-lhes as botas. “O rieq tem dever com os vivos e com os mortos”, ela recordou. Ordenou aos sacerdotes que tirassem as armas que mataram essas pessoas fossem removidas, uma por uma, quebradas e então ter os fragmentos postos nas mãos de seus assassinados, mas não conseguiram fazer isso com a maioria.
Seu metal parecia inquebrável, cinza e prateado.
Preparou o corpo das pessoas que não conhecia. Um por um. Logo as esposas e escravas a acompanharam, e todos os outros foram atrás em um séquito silencioso até as nevadeiras mais próximas e cavaram ao redor de suas grandes e expostas raízes brancas cheias de cascas, semelhantes a escamas de peixes. Duas vintenas de buracos foram abertos para enterrá-los.
Faina respirou fundo. As esposas e escravas dos guerreiros que morreram em luta se aproximaram dos buracos. A Rieq observou calada quando jogaram os cabelos para a frente e ofereceram o pescoço.
Pouco depois, um sacerdote mais novo trouxe a Velha-Corvo, a espada do Primeiro Rieq. Velha, de gelo-velho enegrecido como os portões da capital. Sua lâmina era irregular como um tronco, e pesava, claramente pesada demais para quem a trazia. E claramente pesada demais para Faina.
A pegou e pôs toda sua força para jogar a espada para cima, fazendo mais esforço do que no parto de Krazdoro. Então fechou os olhos.
— Kerizzia ay pava otorur, savai — rezou pela primeira esposa que deu o pescoço, a mãe de Razin Vladein.
O silêncio continuou até voltarem ao castelo.
Levaram os cara-queimada para as várias lareiras do castelo. Já tem o rosto em chama, terão o corpo em chama, disse Faina.
Razin e Radiza ficaram em quartos no andar de cima. Os Chefes se dispersaram entre outras partes do castelo e para suas casas ao longe, já Faina ficou sozinha. “Mirta dança ao corpo de minha mãe”, lamentou-se “, e não a acompanho por razões que nem sei. Não sei onde meu filho está, não sei onde meu pai está e, mesmo retirados de minha frente, só vejo cadáveres!” Sentiu seus olhos pesando. Fitou o céu por uma janela fechada.
Não havia um brilho no céu, a escuridão da Noite já tinha o dominado.
— Mãe…
Cobriu os olhos com as mãos. Não tinha a postura de um rieq, de uma leoa.
— Mãe…! Mãe…!
As portas duplas de madeira escura foram abertas. Faina deu uma olhadela rápida antes de erguer as costas. Draziz entrou.
— Não os encontrei — respondeu Drazis, sorridente e com o corpo ainda mais manchado de sangue congelado. Agora, além de uma espada cinzenta, tinha consigo um machado da lâmina prateada, de um metal brilhante. — Lamento, Ay rieq.
— Não — fungou, logo então se recompôs — encontrou Tihimil no caminho?
— Aquele velho não estava morto? — desamarrou nós da loriga. As feridas de Faina latejaram. Engoliu em seco, e seus olhos logo se encontraram.
— Disseram aqui que ele seguiu os cara-queimada em fuga.
— Tem medo de que estejam — livrou-se do último pedaço da armadura — com Nikol e seu filho?
A mente de Faina ligou novos pontos. “É uma possibilidade, mas por quê? Os cara-queimada nos odeiam, mas…”
— Isso não faria sentido. É ilógico…
Drazis balançou a cabeça e riu. Faina sentiu suas feridas latejarem com ainda mais dor conforme seu tio caminhava em sua direção. A Primeira sentiu o coração latejar. De repente ele removeu sua camisa e se aproximou do trono, segurando o queixo da Rieq.
— Não sabe, Rieq Faina, a Primeira?
Forçou um olhar calmo, mas não conseguia de maneira alguma. Seu corpo tremia em desgosto.
— …O quê?!
— Todos os Cara-Queimada são loucos.
Antes que Faina tomasse qualquer ação, sentiu os lábios sujos de vermelho de Drazis nos seus e sua língua dançar por sua boca. O empurrou e logo o acertou um tapa na face, mas de nada adiantou. Foi beijada com ainda mais força. Golpeou suas costelas e rim com toda força que conseguia projetar, mas fora beijada uma terceira vez.
— O único jeito de nos vingarmos — ele disse, e a beijou a quarta vez, tocando entre suas pernas — é os matando.
No quinto beijo, Faina gemeu e cedeu… Algo naquele ato seduziu sua mente. Uma possibilidade de aliviar seu luto? Não era tão inocente assim…
— Sim — ela murmurou, arfando e sorrindo, retribuindo o beijo; Drazis sentiu a raiva na voz dela, e olhar para longe dele o deixou ainda mais animado.
De súbito, sentiu o fio do seu novo machado tremer e tocar sua nuca.
— Não haverá sétimo! — rugiu Mirta. A Esposa de Deus girou o próprio corpo e, com ele tentando desviar, derrubou-o dos degraus de gelo.
O exilado se levantou, com o sangue esquentado escorrendo por sua testa, fitando Mirta enquanto procurava sua espada. Virou a face para trás, mas quando sentiu a ponta do metal tocando-lhe a testa, viu Faina com as feições de um demônio, preparado para tirar a sua vida ou no mínimo o castrar.
“Olhos mais frios do que gelo”, riu Draziz, avermelhado. Tudo nela subitamente parecia animalesco, feroz e desejável.
— Saia daqui. Vá para o Sul e só volte quando encontrar meu filho e meu pai e tiver matado todos eles!
— Haa, haaa! — ele riu e pôs a cabeça no assoalho. — Às suas ordens, Primeira. Espero que encontre um homem bom…
Mirta veio até eles e apontou o machado ao céu, preparada para cortar o homem. Ele se levantou, pôs a camisa suja e sua armadura. Deu uma risada às duas e foi embora.
— Há quanto…
— Nunca… — Faina interrompeu. — Ao menos nunca tinha acontecido antes… Não assim…
A morena meneou a cabeça. Faina sentiu suas pernas cederem e o torso sendo abraçado por Mirta. Quis chorar, chorar por tudo. Chorar como nunca chorou antes. Não se importava por ter sido tocada. Não fora a primeira vez por ele, e nem por outro, todavia justo quando sua mãe morrera? A abandonara precocemente?
Justo quando seu filhinho sumira?!
Sumira por anos, não a visitara quando fora expulsa do seu lar e então viera tão violentamente quanto foi? Quanta crueldade! Conseguiu se encher de ódio pelo seu quase primeiro homem… “Eu quero esquecer isso… Quero esquecer tudo…” Quanto ódio… Quanta ira…
— …Mãe…
— Disse algo, Ay rieq?
Mirta tocou a testa de Faina com cuidado, e de súbito recebeu o olhar feroz e alcoolizado que Faina lhe dera quando estava embriagada.
— Quero dormir — sussurrou Faina, seguida de um suspiro temeroso e cansado. — Quero dormir e chorar. Console-me, minha amiga…
Tomou a Esposa de Deus entre os braços e apertou-a. Depois, foi para seu novo quarto no castelo, jogou-se na cama de peles e penas e chorou. Chorou acompanhada de Mirta. Choraram e choraram até os olhos não aguentarem mais. Tentaram manter conversa uma com a outra, e Faina chorou e gemeu até poder dormir.
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