Capítulo 18: Súbita melhora (1)
“Como é difícil buscar boas razões para fazer o que quer quando seu querer é idiótico. É ainda mais árduo quando o idiótico é o que se precisa.”
Izandi, a Oniromante

“Para onde vou?”, pensou Bert. A saída de Ereken fora quase que imediata. Não esperou ordem ou concordância. Abandonou a conversa junto dele. Queria pedir um último combate antes do seu pai adotivo ir para o lugar dito como inóspito, todavia não esperava que ele fosse partir sem nem parar para ver a filha e esposa.
Preferiu livrar a cabeça. Ser envenenado e não saber por quem já ocupava muito espaço.
— E aqui estamos… — disse à Hydele e Willmina. — O tio já foi, com um grupinho de uns seis caras e o conde Siward — riu. — Aquele velho mal acordou e já inventou de trabalhar.
Conde Siward surgira assim que Ereken terminou de anunciar sua partida, surpreendendo quase a todos ali. O duque já esperava por isso. Bert sabia que estava rodeado por heróis de guerra, que combateram os eztrielizianos na última tentativa de invasão e impediram a tentativa de Better Bloemennen de unificar os Cinco Reinos, vencendo seu caminho sanguinolento com todas as desvantagens possíveis. Bert gostava desse tipo de história.
Mas seu objetivo maior era outro, e nele não havia glória de ser intitulado de Cei, Ceire ou de herói.
Hydele e Willmina estavam deitadas na mesma cama feita às pressas, ambas pálidas e em estado horrível. Boticários da Vila do Rio foram chamados para ajudar a socorrer os desmaiados, porém nenhum soube o que fazer com as duas além de fecharem as feridas. Várias vezes, nos poucos minutos que Bert ficou lá, ambas convulsionaram como se estivessem sobre o tambor de um menestrel. Um boticário velho as deu canho-salgueiro em doses cavalares para que ao menos não sentissem dor.
“Não vão acordar tão cedo.”
Bert tentou se levantar, segurando a região onde foi ferido. Fora tratado pelo cile, que por muita sorte o achou jogado no bosque interno enquanto procurava por ervas medicinais. Você teve sorte, muita sorte. Seja lá como for o que te cortou, não era grande o suficiente para rasgar muitos fundo, ele disse. “Ainda dói.” Não fora a primeira e nem a última vez, mas cada uma era pior que a anterior.
— Enfim, acho que vou ficar com vocês duas. — “Assumir o papel de homem da casa”, murmurou internamente, fitando o anel de sinete que Ereken deixara. “Não tenho o sangue de nenhum dos dois.”
Com o máximo da gentileza que conseguia ter, tirou o anel e pôs no dedo de Hydele, e ficou horrorizado. “Agora entendo as luvas, tia.” As queimaduras em ambas as mãos eram horríveis, os dedos com carne cicatrizada eram ainda piores — enegrecidas como a podridão que ficava mesmo quando se cortava o pedaço estragado da maçã. “Elas não são de ontem”, percebeu. Conhecia de sua mãe adotiva somente o que ela quis contar… “E não me contam nada além do que já vi.” Franziu o cenho e suspirou.
“Ao menos estou aqui.”
Bert decidiu usar melhor o seu tempo de modo que não saísse de perto das duas. Fechou os olhos e focou em respirar. Deixou o ar inflar seu peito até o limite. “Mais fôlego”, pensou, lembrando-se do pai adotivo. “Preciso de mais fôlego, de mais meios. Preciso suavizar a mente e deixar que ela trabalhe sozinha, como sempre.”
A letargia dos seus extensos treinos mentais começaria em pouco.
O pátio de pedra polida salteada se formava conforme parava de sentir sua respiração. O material e forma das solas dos sapatos surgia do nada, formando-se como gelo no frio, e até o peso de cada peça de roupa pressionando a pele e impedindo o calor de ceder à neve. Lembrou-se de cada um das mínimas sensações que teve e imaginou os outros tendo, e gradualmente cada fragmento dos detalhes unia-se numa tapeçaria mnemônica de vidro.
O peso da armadura do oponente, o som de suas respirações durante os movimentos e paradas… Afundou até nas próprias sensações. Ambos foram espalhafatosos nos movimentos — Ereken por querer dar uma apresentação do que podia fazer para a filha, Cei Gherrit pela armadura e espada pesada. E, no entanto, nenhum detalhe além desse vinha do de armadura cinza. Não conseguia recordar de tê-lo ouvido realizar um arfar sequer.
“Se imaginar mais detalhes por como o vento bateu em mim, talvez possa ver mais do que vi.”
Afundou. Seu treino mental de sempre… Para Bert, a sensação era de se deixar ser levado ao fundo de um rio, porém um rio de lama pesada e densa. Seus sentidos iam sumindo. O primeiro era sempre a visão; não podia enxergar. Frang, o greatense que o ensinou, dissera que a visão era a inimiga e inspiração de toda a verdadeira visão — fazia questão de matar essa sensação primeiro. Em seguida o olfato. O odor dos feridos desapareceu, mas não antes da sensação do calor…
— Dói…
— …Senhor…
— Deuses…
— Não sinto meu braço…
— Não consigo me mexer.
Ele ouvia.
A extensão da facada por dentro fora sentida quando os adoecidos o interromperam, ardendo como um tenaz quente. Juntou forças para ignorar. “Já recebi feridas bem maiores!”, gritou consigo. Pouco por pouco, os detalhes e sensações estrangeiras tomavam forma…
— Seu Bert? — ouvira a voz madura de Nianna.
“Maldição. Tava quase pronto!”
— Boa noite, Nianna — suspirou, abrindo os olhos enturvecidos. Notou-a sentada à sua frente. — Como está?
— Suja, cansada e com fome. Como está a… — virou o rosto — a ferida?
— Bem. O cile disse que não foi funda o suficiente, com umas palavras que não entendi direito. — Abriu os braços como se o que disse fosse uma piada. — Provavelmente me atacaram com alguma coisa qualquer. Uma faca de cortar manteiga? Como estão as netas do barão?
— …Como de praxe, pensa primeiro nas outras donzelas — ela riu; havia melancolia no seu tom. — Ainda estão desmaiadas, mas a mais velha acordou. Disse que não sente as pernas… Mas eu continuo mais bela do que elas.
Bert riu. Sua visão melhorara mais rápido desta vez. Fitou Nianna com olhos bem felizes. A garota estava suja demais para a beleza crescente, e estava terrível na bata de medista, justa e apertada de modo a não deixar a pele respirar por menor que fosse o tempo, além de estar fedendo a ervas e catarro.
— E a princesa?
— Por que pergunta dela? — cruzou os braços.
— Tirando as pessoas que perguntei, ela é a única que conheço que ainda não sei como está.
— Você é um péssimo pretendente, sabia?
— Eu me considero muito bom! — Bert meneou a cabeça, sorrindo com os olhos fechados.
Nianna riu e beijou sua bochecha.
— Sei disso.
Bert retribuiu com um beijo nos lábios finos e vermelhos dela.
— Sabe que estou noiva do futuro rei de toda esta nação, não? — questionou com graça e pouco-caso na voz. — E que minhas amigas, inclusive sua mãe, estão na nossa frente, não?
— Ela não está vendo… e duvido muito que o seu futuro rei se interesse por você.
— …ffh — suspirou ela, corada. Desabotoou a bata e deixou-se respirar bem fundo. — Bem, voltando ao tópico anterior… Bem… Para de me olhar assim… Ela está bem, entendeu? Está bem! Só não acordou ainda para termos certeza!
— Obrigado por responder!
— Se era só isso — falara, com muita raiva escondida na voz aveludada —, estou indo. O cile logo vai cuidar deles aqui. Aquele velho noitibó não dorme nunca, então posso sair, comer, banhar-me e dormir por algum instante.
— Eu… — fitou a irmã e mãe adotiva. — Eu acho que vou ficar mais um pouco. — De súbito, Bert sentiu-se com o peito borbulhando e o sangue fervendo. “Contra quem?”, questionou-se. A ferida mais recente parecia ter aberto.
— O cile ficará com raiva. Está espalhando miasma por tempo…
— Ele pode ir se foder!
— …Perdão.
Nianna se ergueu e virou-se para trás. Bert a fitou por um instante de tomar a sua mão.
— Perdão sou eu que peço… Não deveria ter gritado com você.
— Tá tudo b… — Bert a beijou. — …Bem melhor agora.
— Boa noite, Nia.
Ela sorriu. Imaginou que fosse embora, mas ela deu um longo passo para dentro dos biombos, então os juntou como Bert não viu ser possível, com cada dobra se alargando e virando como uma parede de madeira. Logo ela se virou e retirou a touca apertada, deixando o belo ruivo cair como uma cachoeira desorganizada.
— O que vai fazer? — ele perguntou, sentando-se e com um sorriso amarelo na voz.
— Me despedir. Feche os olhos — sussurrou —, Bert, o Amante da Rainha! — falou, com um tom gargalhante na voz. Bert a obedeceu e ergueu os olhos fechados, mas não conseguiu ficar sentado; ouviu algo macio cair no chão. Moveu seus braços como as asas de um pássaro, mas sentiu um sonoro tapa na bochecha.
Abriu os olhos de uma vez e viu algo que compensou o tapa. Contemplou cada pedaço do que seus olhos puderam ver — a coisa que nunca imaginou que teria lá. Se atreveu a tentar beijá-la mais uma vez, mas ela não permitiu.
— Você demorou demais, seu Bert — o empurrou com toda força que seus braços magros conseguiam exprimir. Um gosto amargo encheu a língua de Bert. — Dois dias mais cedo e eu teria aceitado ser a senhorita Zwaarkind com o mais feliz dos sorrisos. Mas está tudo bem, pois eu sou uma mulher paciente.
O bateu mais uma vez. Bert tentou falar algo, mas fora como se uma pedra tivesse sido posta na sua boca e seu corpo estivesse amarrado.
— Não vou estar longe.
Saiu com a bata e cabelos escondidos de novo.
De todas as mulheres que já conheceu, aquela fora a única que ainda não teve nos braços. “E provavelmente nunca terei”, amargou-se. Talvez porque fosse mais nova do que ele? “Acho que porque se parece com Willmina”, refletiu, voltando ao banquinho.
Era algo que achava engraçado. Hydele era quase idêntica ao pai, já Nianna, que não tinha um mínimo parentesco com os Zwaarkind, era idêntica à Willmina. Além do mais, não era raridade ver as três pelo castelo, discutindo assuntos sérios como se fossem mãe, filha e irmã — ou que as garotas não abusasse dessa semelhança.
Houvera uma vez, quando eram muito mais novas, que Hydele e Nianna trocaram de lugares e atazanaram as servas do castelo. Foram descobertas muito fácil, pois o cobre e o vermelho não eram nem de perto parecidos, mas até lá, já haviam sujado muitas salas com neve, comido bolinhos de neve para o inverno inteiro e misturado os remédios do cile. “Os momentos de vivacidade do inverno…”
Seu coração apertou.
Regras dos Comentários:
Para receber notificações por e-mail quando seu comentário for respondido, ative o sininho ao lado do botão de Publicar Comentário.