Índice de Capítulo

    Um cavaleiro acordou poucos momentos depois de Bert recomeçar seu treino mental. Quis ter com o ele, porém estava fraco demais para conversar. Um boticário administrou uma erva fedorenta em sua boca, e ele logo caiu de sono. Pouco depois, fizeram o mesmo com Hydele e Willmina, mesmo que já estivessem desmaiadas há mais de dias, rijas como rochas.

    Agora a noite tomava o castelo com intensidade; seus olhos começavam a pesar. Ele saiu do banco com suas costas estralando, e, coçando sua ferida, vestiu seu cachecol e luvas. “Que dia…”

    — Hmm — ouviu um gemido. 

    Virou o rosto pesado vagarosamente em direção de onde tinha ouvido. Reconheceu alguém se mexendo entre as várias camas e biombos. “Deve ser alguém que não conheço”, concluíra, então foi para sua casa dentro do castelo, para a cama onde mal cabia direito por ser alto demais, todavia não dormiu direito. 

    Já estava acostumado a poucas horas de sono, mas esta noite fora horrível. Bert passou ela inteira fitando o teto, sentindo as costas doendo e mexendo os dedos. Ao tentar dormir, tudo que conseguia pensar era em Ereken indo embora com o séquito do conde Siward.

    “Nem prestou condolências para esposa”, gritou consigo.

    Passou todo aquele pedaço da noite cerrando os dentes, mas não aguentou mais do que isso.

    O céu estava coberto de nuvens pesadas, gotejando neve longe da floresta, mas Bert foi brandir a espada antes de desjejuar. O pátio estava vazio — como era comum no horário —, cheirando a flores familiares e o solo estava frio demais para andar descalço. Bert tirou as botas e as luvas, então se concentrou; sua mente alinhada o fez ouvir melhor: passos, pequenas rodas girando e chamas bruxuleando.

    Ignorou os barulhos e riscou o ar com sua espada. Dente de Hiena fora feita com o intuito de ser leve e rápida. Tinha pouco mais que meio quilo para quase um metro de lâmina, letal e tão afiada quanto qualquer outra. Ter a forjado com suas próprias mãos, na Cidade de Ferro em Greateann, era um grande orgulho seu. 

    “Linda como no dia que te fiz.” Nunca pensou que sangraria tanto por um pedaço de ferro. Nem que beberia tanto. “Os rapazes do Torneio de Ferro devem estar morrendo de saudades de mim. ‘Ravel, o Cão Sarnento!’, eles gritam!” 

    Com uma imagem mental, reformulou a aparência do único oponente que o deu trabalho lá: uma mulher alta, de cabelos loiros esverdeados dançantes; belíssima, mas sem uma curva de peito. “Até Nianna tem mais”, pensou com um sorriso no canto da boca e atacou o fantasma.

    O sol surgia cinza entre as nuvens quando enfim terminou e embainhou a espada. “Vai nevar forte hoje. Vou ver as duas, assim que comer algo.” Rumou para dentro do castro, de onde viu um desânimo quase contagiante. 

    Boa parte dos servos que ainda trabalhavam seguiam somente por amor ao duque, mas sua mente e rosto estavam pálidos de luto, com olhos vermelhos e andar cansado. Os corpos estavam guardados em uma sala-fria para serem examinados pelo cile, impossibilitados de rituais funerários. 

    Mesmo assim, assim que entrou na cozinha, encontrou pão, queijo, mingau de aveia e vinho servidos para ele e todos os cavaleiros em guarda. Agradeceu com olhos pesados. Assim que desjejuou, a neve começou a cair. Subiu as escadarias do castro até a segunda muralha, onde dentro era a longa e nada aromática sala do medista. 

    — Senhor Zwaarkind — ouviu Bert. Rapidamente se virou para onde jazia um sofá vermelho ao lado de algumas das estantes com vidrarias e ervas moídas e um pequeno altar com os Símbolos dos Quinze; Cei Witernier Nariz-Vermelho estava ajoelhado; parecia ter terminado de uma longa reza.

    Bert abaixou a cabeça. O do nariz vermelho vestia uma simples brigantina e mantinha uma espada comum amarrada ao cinto, diferente dos olhos — o tom ametista fazia Bert erguer o lado direito do lábio.

    — Senhor Zwaarkind — disse de novo, pondo os cabelos para fora da testa —, peço perdão por tudo que fiz.

    — Hã?

    — Direta ou indiretamente, isso é culpa minha. — Exibia um semblante realmente triste, com sobrancelhas caídas e olhos temerosos. — Minhas ações provocaram isso. Quis defender… — “Ô cara chato”, pensara Bert. — E tudo isso acarretou numa situação perfeita para o assassínio de tantos e feridas em tantos mais… 

    Bert deu quase um salto para trás, contorcendo-se: Witernier tinha o rosto manchado por lágrimas e catarro. “Mas que…” Queria dar um chute no cavaleiro quando ele protegeu o príncipe; não por isso, Bert sabia, mas para aumentar a aposta. Não era a primeira vez que fazia algo assim. Amava a sensação de golpear e ser golpeado, de cortar e ser cortado.

    Trocar feridas com os principais da Guarda Real, os mais habilidosos homens de armas de um rei, era quase que um sonho. “Um sonho que se relevou completamente patético. Quando que vai ser o próximo Torneio de Ferro?!”

    Cei Witernier retirou um lenço do bolso e limpou seu rosto.

    — Tenho que rever meu código e minhas ações. — Fungou. — E, em seguida, tornar-me mais hábil. Há tempo! 

    — Sim, sim — cruzou seus braços com um olhar cheio de interesse —, cara, tem tempo pra ficar melhor.

    — Sim! — Retirou a espada e bateu com o pomo no peito, com uma voz exultante. — Que bom que me entende! Ainda não recebi meu terceiro batismo! Há sempre tempo enquanto não é tarde demais! É isso: pedirei a Sua Majestade por tempo.

    — Sim, sim.

    — Pedirei que me dê a honra de partir à Ocas Ciled, pois há muitos cavaleiros e futuros Mestres em treinamento em Ocas Ciled!

    — Sim, sim… Como é?

    Cei Witernier pôs a espada na cintura e ficou com a postura ereta digna de um cavaleiro de contos. Rapidamente pôs as mãos nos ombros bem mais altos de Bert e disse:

    — Muito obrigado por sua sabedoria, senhor Zwaarkind! És um homem muito melhor do que julguei, tolo eu! — Soltou-o. — Espero que atenda ao pedido de Sua Alteza a princesa, e que o Grilhão nos proteja!

    E foi embora. A face de Bert seguia em branco. “Todo mundo do norte é maluco assim?” Balançou a cabeça e suspirou como se alma saísse pela boca. Assim que descansou da conversa, piscou e voltou-se para dentro da sala.

    A ala do medista fedia a ainda mais ervas do que nunca. “Os boticários fizeram uma festa aqui?”

    Abriu a porta de madeira pesada e sentiu um odor ainda mais forte, que ardia ao subir o nariz, pungente como veneno. Imediatamente desembainhou Dente de Hiena e ficou em riste. Deu um curto passo, observando os arredores a olhadelas rápidas. Cruzou um, dois, três biombos paralelos de um corredor onde havia ao menos cinquenta; não vira nada. Ainda não era desculpa para abaixar a guarda.

    — Tem alguém aqui?!

    Andou em riste. Passou pela cama onde Hydele e Willmina estavam, passou por onde a filha mais nova do barão Bijik estava, completamente desmaiada e pelo cavaleiro que tinha acordado e desmaiado logo em seguida. “Cei Kers, não? Já ouvi falar de você, e combina bastante com o agora.”

    Pelos rumores, era um homem de armas que trabalhava para um vendedor de frutos-do-mar, que ficou famoso por assassinar oito bandidos enquanto dormia. Bert notou a fonte do fedor: o cavaleiro vomitou em cima de si o suficiente para fazê-lo de coberta, e não parecia ser a primeira vez naquela noite. Quis rir daquilo, mas logo traçou um arco horizontal com Dente de Hiena para trás.

    — Hahh — ficara pálida e quase caiu de susto; a ponta da lâmina quase tocou sua real bochecha.

    — Você de novo? — Bert suspirou, embainhou Dente de Hiena e foi abrir uma janela.

    — Acho… — arfou, tentando recuperar a compostura — que tem esse… tom para mim como o natural.

    A princesa deu as costas para Bert e voltou para sua cama, porém não deitou. “Mulher maluca.”

    — O que está fazendo de pé? — A fitou de soslaio enquanto abria mais janelas e botava mais lenha na chaminé. — Tenho certeza que o cile te quer deitada. Descansando.

    — Nunca fui boa em ficar parada. — Bert ouviu-a tamborilando alguma superfície com os dedos. — Pode perguntar a Sua Majestade, meu pai. Ele o responderá com toda a verdade que sair do seu imenso coração real.

    — Não tô afim.

    Bert ajustou Dente de Hiena e seu cachecol. Ignorou a princesa à sua frente e voltou para os entre-biombos, onde sua irmã e tia jaziam, ainda mais hirtas e de aparência pálida do que ontem. Abriu a janela entre os biombos das Zwaarkind, provocando a entrada de um vento sul tibioso; quando se virou, a princesa estava atrás deles, com um olhar aterrorizado completamente sem cor, como o de alguém vendo um morto pela primeira vez.

    — Pelos Quinze… O que fizeram com vocês…?! — ciciou ela, virando o rosto empalidecido e cobrindo a boca com força, como se para não vomitar e conter-se. 

    O homem meneou a cabeça e retirou um pouco da coberta de ambas. “Hydele precisa de frio. Mas e a tia… ela precisa também?” Balançou a cabeça. 

    Apanhou a neve caída no lado de fora e espalhou pelo peito e testa da menina. As mãos estavam em um estado horroroso. Cada pedaço, da ponta dos dedos ao peito, pareciam ter sido alfinetados por uma faca de cortar carne. 

    “Quem seja o desgraçado que fez isso, vai pagar.”

    — Estou livrando demais as coisas da minha cabeça — sussurrou.

    — Não faz tão mal, assim — arfou. — Soube o que aconteceu. A senhorita Hyd é uma heroína. 

    — Como soube?

    — Isso é insignificante agora, senhor Bert. — Ele a deu um olhar reprovativo para o sorriso arteiro da princesa. — …Bem, Cei Witernier contou-me, quando veio me visitar mais cedo. Ele sempre acorda cedo, e saiu daqui pouco antes de entrares e testemunhar Cei Kers… a purificar seu estômago.

    “Está mentindo.”

    — Ademais, considero-me muito boa em somar as partes do que me chega. 

    — Estou vendo — respondeu com desdenho mal contido. Pensou em pegar mais neve, mas onde suas mãos conseguiam tocar não havia mais nenhuma. 

    — …

    Os dois ficaram em um silêncio desgostoso. Princesa Salile tomou o banco para si e ficou a observar os ventos e o resto da sala. Começou a nevar com intensidade, porém nenhum floco caía nas mãos de Bert. “Uma manhã de azar?”

    — Os Deuses são cruéis — ela falou, suspirando por um longo tempo. — Acredito que vou voltar logo, senhor Bert, para a capital.

    — Só me chama de Bert. — Se apoiou na parede, esfregando as mãos.

    — Pois bem, Bert: os cavaleiros do meu pai estão caídos, maioria desmaiados e Cei Cortiz veio a falecer… — Parou, e, com um tom de voz sedoso e controlado, abriu bem a boca para dizer: — O que pensa de Cei Bert?

    Sua pergunta pareceu ter o clima abençoado pelos seus deuses. A luz cálida fora sobrepujada pela quente luz da veleteto, de modo que cada traço de suas feições femininas ficassem mais destacadas para Bert… 

    — Não está vendo minha irmã bem aqui?! — ele respondeu, borbulhando de raiva. 

    — Contudo ela não iria à Ocas Ciled? — Ela deu um passo longo à frente e se abaixou perto da amiga, balançando os dedos pelo cabelo de cobre de Hydele.

    O rapaz deixou os olhos bem abertos. 

    — …Sim, ela vai. E eu vou também.

    — Não sabia que isso tinha sido acordado. Soube que o duque concordou em ceder alguns homens de armas de confiança para nos acompanhar, inclusive o herdeiro do ducado, dado que quase todos neste castro são possíveis culpados pela tentativa de regicídio… — Soltou Hydele e se sentou, olhando para o céu atrás da janela. “Parece solitária”, ele pensou, mas logo voltou a si. “Que droga é essa?!” — Pensei estares tu dentre os enviados.

    — Eu não soube disso…

    — Não tem problemas. Estou bem, mesmo assim.

    Bert cerrou os dentes e punhos. “Mais uma vez alguém decide algo sem falar para mim!”

    — Mas eu gostaria de ter alguém confiável por perto.

    Ela se levantou de uma vez, cheia de vivacidade.

    — Um amigo…

    “Mulher maluca.”

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