Capítulo 19: Sangue Antigo
“Era inegável que a maior arma dos Reinos do Oeste eram seus dragões-reais, que não cuspiam fogo e muito menos dominavam o clima, mas por vantagens morais e sua incrível capacidade de deixar o terreno mais pesado.
Não somente, na história da guerra dos Reinos do Oeste, vários dragões-reais têm seu nome inesquecível na história. Eszes, Careninre, Fendal e Xenrir foram os mais legendários da Casa Godwill. Diz-se que os primeiros ancestrais desses quatro explodiam seus inimigos em chamas e derretiam as pedras de uma fortaleza somente de estarem próximos, mas não consegui aprofundar as raízes e sonhar com nenhum deles.”
Izandi, a Oniromante

— Durma, amor… — ciciou Ezekel. — Você precisa melhorar…
Sua Ofina esboçou um pequeno sorriso hipócrita e tocou a têmpora ferida de Ezekel antes de fechar os belos olhos. Um boticário velho — muito bem pago para permanecer em silêncio e não ouvir nada — tinha administrado uma dose de um remédio suave comprado de uma Irmã dos Perfumes. Ela está bem, fora o que ele disse, e os bebês continuam fortes.
Queria que toda sua reação ao saber que eram gêmeos fosse de felicidade, todavia, sua mente dava voltas entre calafrios de medo e vazio de dores; insignificância. “Fui completamente insignificante… Atrapalhei mais do que ajudei. Se fosse um pouco mais forte!”, bravejou consigo; seu braço se enchia de furor e gritava para golpear a parede… “Mas até para isso eu hesito…!’
’Está bem”, repetiu para si com as mãos trêmulas. “Minha Ofina está bem. E é só isso que importa.’
‘Que dias lamentáveis.”
Ezekel retirou-se de perto dela e tentou acalmar os espinhos no coração, desamarrando o laço do terno woulevita. Era um lugar espaçoso, no entanto mal arejado pela ausência de qualquer janela que fosse. Apesar disso, era confortável; o tamanho da casa de um plebeu nas bordas da Cidade de Diamante era somente a cama onde Ofina estava deitada.
Estantes de nefrita, com vinhos, água e livros jaziam envernizadas nas paredes enfeitadas com tapeçarias e afrescos em paredes, cobertas por relva-ornamenteira brilhante como o sol refletido no orvalho. Baús com filetes de carne seca estavam enfileirados próximos de espadas e armaduras completas, jogos de cartas e até jogos infantis estavam guardados e empoeirados.
O piso era brilhante e calmo como as paredes espaçosas, de cores azuladas de aventurina, e Ezekel conseguia ouvir o fluxo de um talvez riacho pelas paredes. Talvez fosse tão calmo e agradável quanto a Mata dos Grilos, onde nascera e passara quase toda a infância.
“Depois de fugir com Ofina, Natharel nos desmaiou rapidamente e nos trouxe para onde estamos”, imaginou. Quando acordou, já estavam lá. O Draconeiro ficou com eles por tempo o suficiente para trazer o boticário, então fora embora sem dizer onde estavam, a quem pertencia ou a razão do ataque à sua pessoa. Imaginava que tinha sido levado à Flassam, em algum esconderijo dos Mynsom. “Sua Casa é aliada da nossa Casa há mais de dois mil anos, desde a época de Carenire.”
Sua atenção foi capturada em direção da porta de metal. Seis batidas cadenciadas à porta do quarto real temporário. Era o sinal de que era um aliado. Ezekel deu passos divagares e calmos. Agarrou a maçaneta com os dedos tremendo, respirou fundo e tentou abri-la, mas seus olhos voltaram para a adaga descansando no seu cinto. “Pesa”, cerrou as sobrancelhas. Abriu a maçaneta de uma vez.
— Irmão.
— Onde está sua arma? — gritara Natharel, tomando-o pelos ombros. — E se eu fosse um hostil?!
Ezekel balançou a cabeça. “Está mais pesada do que quando uso a coroa.”
— Irmão…
— Eu sei — entrou. — Perdão. Já faz mais de uma semana desde o ataque, mas ainda não confessaram nada. — Apoiou-se numa parede, coçando a cabeça. Natharel vestia sua roupa de Draconeiro: uma vasta camada de couro de dragões-reais falecidos, costurados como um colete sobre a camisa de lã cor-de-musgo e calças de couro cosido e malhado como vestes de equitação. Possuía brilhantes alças de apoio, luvas escamosas e cotas e placas de metal cinzento.
— Quem foi o culpado? E os dragões-reais?
Natharel estudou rapidamente todos os lugares visíveis pelo lugar onde estava.
— Bieeuni fyr ddea-cibezhego, evne.
Ezekel fechou os olhos. “Na nossa língua, então?” Estava cansado demais para conseguir pensar nela, independente de já ter nascido sabendo falá-la. “Não tenho tido cabeça para muito…”
— Nitix, ker-evne. Folzh — respondeu Ezekel.
Natharel foi embainhando Eclipse, esquadrinhando o “novo” quarto real em busca de possíveis perigos enquanto dizia:
— Di ornae shireuni odfa. Ka bet leie os yoch daybeuni fyr khire Ngoshiale fai Lorelaych apes, kowri yusht sher seiny rwords. Lay sher lenn olha di khorsh.
O irmão mais novo sentiu uma forte dor de cabeça. “Então eu não era o alvo; fui somente um extra, facilmente eliminável.” Um fraco vento saiu de suas narinas, fraco como foi durante todo o ataque. Aos seus olhos, uma escuridão cansada tomara as formas e silhuetas do quarto. “Eu sou uma piada.”
— Evne, uni shir odfa? — questionou Natharel, com olhar apreensivo e preocupado.
— I shireuni ker-odfa, ker-evne — mentiu Ezekel. “Já sou um homem-feito, um adulto, uma autoridade da lei de união entre os Cinco Reinos e em poucas semanas também serei pai.” Contraiu os músculos das pernas. “E quase tudo isso perdi em uma noite.”
Estava com o coração cansado. “Sinto saudades da Mata dos Grilos”, pensou. Lá era tudo tão mais simples… tão pacífico…
Tocou a cicatriz na têmpora e sentou num banco longo que jazia tão sujo quanto suas roupas. Fitou Natharel também ceder e descansar. Pouco viu isso. Seu irmão tinha quase o dobro da sua idade e metade da de Rikard, mas sempre estava pronto para lutar, se esgueirar em algum charco de lodo ou caverna para capturar insetos e aranhas para ele, brigar com os sobrinhos e treinar com seus amigos de espada; e ainda assim, esbanjava da aparência juvenil e feminina dos Godwill, sua plena beleza sobre-humana.
Desabotoando a couraça de voo, Ezekel por um instante viu o rosto da mãe que não chegou a conhecer. “É verdade, tia Halle costumava dizer que Natharel era idêntico a nossa mãe.” Lembrou-se novamente da Mata dos Grilos. Havia dezenas de pinturas dela espalhadas pelo palácio que chamavam de casa de caça, pintadas desde óleos a grãos moídos. A Matriarca da Cultura de Wouleviel, a chamavam.
— Por quanto tempo ficarei aqui? — continuou, ainda na língua dos dragões. — Ofina dará à luz em breve.
— Se for por vontade de Rikard, até eu me casar e dar ao menos três filhos à nossa Casa — desdenhou com um sorriso amarelo. Ambos riram, mas não o suficiente para limpar o mal-estar na mente de Ezekel. — Irmão…
Os dois sentiram o sangue correr e esquentar. Natharel notou seus pelos se ouriçando e Ezekel de repente cobriu a cabeça ao sentir os cabelos ficando de pé. Uma ventania súbita fez o teto tremer. Ezekel de imediato tomou a adaga, que agora parecia mais pesada do que seus braços, e ficou em riste; mas o Draconeiro permaneceu calmo.
As veletetos rodopiaram, quase desgrudando de suas superfícies, e as telhas tilintaram; o bule de vidro teve seu chá azedo respingando e os castiçais com unguentos dos Quinze se apagaram. Um estrondo comparado a um terremoto forçou as dobradiças a abrirem e poeira cair do teto como uma chuva pesada, mesmo que só por um segundo.
Ezekel correu para a cama e serviu seu corpo como escudo para Ofina, que dormia como vinho num barril. Todavia o fervor no seu sangue subitamente calou toda aquela preocupação; domou sua mente com calma. Reconheceu o que chegou, o Sangue Antigo fluindo nas suas veias lhe contou. “Ruyach?’
‘Mais do que ele?”
— Logo com Artrene — sussurrou o Draconeiro, com um tom de zombaria na voz limpa. — Pensei que a ideia era que ninguém soubesse onde nosso irmãozinho estava — se levantou e espreguiçou —, porém vem a nós com a dragão-real mais chamativa da história de nossa Casa…
O Draconeiro Godwill tirou Eclipse da cintura e abriu a porta sorrindo como uma criança; antes que terminasse de abri-la, sentiu algo inquietante percorrendo o ar seco. Sentiu como se o ar ficasse mais áspero, mas já estava acostumado com isso — diferente de Ezekel.
— Vir ered duharazhi! — cumprimentou Natharel, erguendo Eclipse segurada com a lâmina para baixo. — Deixe-a do lado de fora, irmão!
Ezekel fitou de longe a escuridão da noite: conseguia ver menos do que relva e troncos escuros, porém pouco por pouco, ouviu passos gordos pisarem a grama soterrada por neve. Rikard apareceu alguns segundos depois, trajado com roupas de Draconeiro: escamas cinzentas e brilhantes, a pele de Ruyach.
— Ruyach está morto? — sussurrou-se com desânimo. O dragão-real, apesar de tê-lo visto tornar o céu negro quando voou da última vez, era um ancião; o maior que já vira.
Rei Rikard deu tapinhas no ombro direito de Natharel, Comandante-Chefe dos Draconeiros de Greanalg, então adentrou o quarto com um lenço no nariz enquanto retirava as luvas e desabotoava a apertada proteção contra o frio e vento rasgante.
— Vossa Majestade — disse Ezekel, com uma saudação cansada.
— Pulemos as formalidades. Como está a saúde de sua esposa? — Removeu a manta e esquadrinhou o lugar com olhadas rápidas.
— Está bem, disse o boticário. — “O que não garanto sou eu.” — Reagiu bem melhor do que eu àquilo tudo.
— Imaginei; foi você quem matou alguém, afinal. — “Afinal, também, fora criado longe de qualquer intriga”, pensou Rikard com tamanho desânimo. “Foi um erro. Poupá-lo do seu sangue para depois trazê-lo aqui. Agora percebo. Promover Sesje teria sido uma estratégia melhor do que dar seu ventre a rei Alelse. Desde cedo revelou-se mais esperta do que ele…” Refletiu por mais alguns segundos, então deu sua atenção a Natharel, que saiu do esconderijo por um instante para ver Artrene. — Alguma novidade dos criminosos? — questionou de volta na língua dos dragões.
— Nenhuma! — bradou Natharel. — Não abrem a boca por nada. Nada! Maioria foram mortos, mas os que capturamos não reclamam, não gritam, não choram e nada falam, mas se matam na primeira oportunidade. Houve um em que tive que por uma rocha em sua boca para que não comesse a própria língua, mas ele engoliu a pedra assim que saí. Sufocou-se.
— E… — puxou Ezekel. — E aquela mulher de cabelos brancos?
“Que esteja morta, que esteja morta!”, torceu, então seus dedos tremeram e mente escureceu. Jamais imaginou que desejaria a morte de alguém.
— Sem sinal — respondeu o Draconeiro. — Senti que a tinha em mãos e, com um movimento, cortar-lhe-ia os braços fora, mas aquela lâmina transparente tornou isso impossível; a distância era imprecisa, nosso tamanho era parecido, por mais que eu fosse mais habilidoso.
O rei agarrou seu irmão do meio pelos braços.
— Lâmina transparente?
— Bem — respondeu, corado —, me parecia física demais para… para ser uma lâmina de alguma feitiçaria ou ahvit.
Ezekel sentiu suor frio escorrendo. “Estrelênio?”
— Isso é confirmação suficiente! — Rikard apertou uma mão na outra. — Mais do que suficiente. Minhas teorias originais estavam erradas, senão incompletas. — Estralou o pescoço. — Estou voltando à capital. Estamos todos, e agora!
Natharel fechou os olhos surpresos por um instante e então prestou uma mesura. Seu irmão, rei Rikard Godwill, raramente mostrava alguma faceta além da séria e régia, mas desta vez viu uma de raiva. Não o testemunhava assim desde quando seus homens fora quase todos brutalmente esmagados pelas garras laranjas de Mével dos Bloemennen. Ainda sentia o medo daquelas asas que não se feriam com espadas.
Das lufadas quentes do dragão. Da traição.
— Prepará-los-ei logo, meu rei.
— Espere! — bravejou Ezekel. — Ofina não está em condição de voar!
— Mas cavalgou até aqui — riu Rikard —, segurando ela as rédeas do cavalo enquanto estavas desmaiado, id Baene.
Ezekel estremeceu e seu sangue congelou. “Isso é impossível! Ofina mal conseguia subir na nossa cama sem ajuda de um banco de tão grávida! Tirava o que restava das forças para me caçoar a sós, e ainda assim não tão ágil quanto antes…” Sentia seu âmago se contorcer. Não poderia ser verdade. Ter desmaiado em um momento tão crítico… “Impossível!” Não teria chegado tão longe, independente do quão bondosos os Quinze ou qualquer deus estrangeiro lhes fossem. “No entanto, se for verdade…’
‘Então eu seria o homem mais incompetente, fraco e patético que já pisou na vida.”
Agarrou os próprios ombros, sentindo seu maxilar tremer. “Há quanto tempo não choro?”
Não poderia ser verdade. Natharel tinha lhes salvado, e Ezekel tinha certeza absoluta disso. Levantou e foi até Ofina, dormindo como se nada soubesse da morte que lhes bateu à porta. “O que fiz? Deixei-lhe com risco de morrer…’
‘Eu sou simplesmente patético…”
Focou os olhos marejados para a esposa. Estava tão quieta, calma depois de tudo aquilo. “Eu tirei uma vida, mas fui resgatado por quem está sem energias para nada senão dar vida…’
‘Juro, na frente de todos os Quinze Deuses, das testemunhas aqui, do Céu, Terra e Mar, dos Seres do Céu, Terra e Mar, dos meus parentes e do nosso sangue que te amarei e protegerei a ti com minha vida, prometi, na frente dos Unguentos Sacros, dos Símbolos de todos os Quinze, do Tradutor-Mór no grande Quimtel de Lunmas.” Prometera ela dar-lhe a longa descendência, dá-lo amor e apoio, ser o coração da sua família.
Apertou a mão no coração, com os dentes cerrados e uma sombra de aflição nos olhos. Cada pedaço do seu corpo estava pesando em vergonha e desprezo contra si, como se ressoassem patético! inútil! fraco! E aumentava… aumentava sadicamente, como a sombra da noite ocultando as cores de um jardim, deixando jasmins e petúnias mais escuras do que piche. Pela primeira vez, sentiu-se menor do que a pedra no seu anel, presenteado por Ofina depois da noite de núpcias.
Ouvi que brilha no escuro, ela dissera, sorrindo. É mui perfeito a ti, que tens medo de tudo. Seu peito ardeu mais uma vez, ao contrário do gelar que sentia subindo suas pernas e braços. Mas era diferente… “O marinheiro tem luas para guiá-lo… Eu tenho você.’
— Ofina… — Secou suas lágrimas.
“Me recuso a deixar isso acontecer de novo.”
— Estamos voltando — retomou Natharel.
— Ainda não — retomou Ezekel, se levantando após beijar a bochecha morena de Ofina. — Este é o lugar mais seguro e sem ouvidos, certo?
Natharel expirou profundamente, libertando um ar cheio de ahvit que mexeu com as sensações dos Godwill e fez Ofina dar um leve gemido gutural. Ezekel mexeu nos seus cabelos e se sentou com a postura ereta. Rei Rikard cruzou os braços e levantou uma sobbrancelha.
— I feanssaruni awnze ɬitach. Godwillach awnze ɬitach.
“Não nasci para ser um rei grandioso”, disse-se. “Nasci de um homem velho e uma mulher que já deveria estar infértil de anciã.” Juntou as mãos e fitou os irmãos seriamente. “Cumprirei meu dever como uma farsa, se for necessário tornar-me-ei o mais corrupto dos senhores. Serei uma mentira a ser contada pelos anos da história. Não me interessa mais. Já fui inocente por tempo demais.”
— Nossas ações devem ser pensadas sem que o inimigo ouça — continuou. — Somos os únicos com Sangue Antigo ainda puro, os descendentes da Primeira Feiticeira e os Donos dos Dragões-Reais. — “O que sai da minha boca?” — Teremos nosso sangue acima de todos, pois ele é o único que importa.
Pela primeira vez viu um leve sorriso se formar no rosto gordo de Rikard; uma sensação pesada surgia no seu peito, porém não era ruim. Percebeu que a ponta dos seus lábios se levantavam, que seus olhos ficavam mais abertos e que seus dedos não tremiam — e que era tudo falso, falho e estranho.
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