Índice de Capítulo

    “O coração de mãe é o único capaz de perdoar de verdade todos os atos de maldade. Testemunhei isso centenas de vezes nos meus sonhos.”

    Izandi, a Oniromante

    A Boca do Leão era muito mais ameaçadora de perto; de cá, Faina conseguia ver toda a Capital de cima. Era uma vastidão tingida de branco: desde as casas, com chaminés altas e pungentes, cuspindo fumaça, à floresta de nevadeiras e pinheiros.

    Neve cobria a estrada que levava a capital até o portão ao oeste, que, mesmo sendo inteiro de gelo-velho, estava branco e coberto de branco e mais branco. “Longe do horizonte, até as Goryystren devem estar soterradas de neve.”

    Faina nunca sentiu que odiava tanto a neve quanto sentia agora. Nevascas eram comuns durante a Noite. O céu estava tão escuro, coberto por nuvens tão escuras, que sequer Viynezir e Sajanter estavam visíveis — e já fazia tempo demais que estava. A neve já havia formado uma camada tão pesada e grande que casas à beira dos declives estavam enterradas até a metade. Como levaria sua mãe ao mar assim? 

    Tinha que agradecer à Noite, pois — dizia Mirta e todos os outros — que estava tão frio que o corpo ainda não fedia. Ordenou que os que sabiam da marcenaria para construírem um féretro para Auta; e seu coração se impacientou ainda mais. Se a nevasca a impedia de se mover, também poderia impedir os Caras-Queimada de saírem ao sul. “Mas as Agulhas são muito mais frias do que aqui… Lá é Noite o ano inteiro… Talvez saibam andar sobre a neve!’

    ‘Meu filho!”

    Imediatamente tomou jornada para o Templo do Leão. Juntou um séquito de homens para protegê-la, além de Mirta. A viagem foi surpreendentemente longa. A Montanha do Leão sempre pareceu estar a um passo de distância, mas ir lá pela primeira vez foi um choque aterrador de tão longe; e quão mais trotavam os cavesões, mais assustadora ela parecia. Quando finalmente chegaram, percebeu que ainda demoraria muito: subir. 

    Havia uma estrada pouco curva, mas estava coberta de neve e de névoa densa. Foram quase dois dias de subida, com animais descansados e homens bem alimentados — e toda vez que ficavam em silêncio, Faina chorava de medo pelo filho. Era aterrorizante… “E se tiverem queimado seu rosto também?! Eu o reconhecerei?”

    Sentiu amargura consumir toda sua alma, como se seu coração rejeitasse a ideia. Não!, era como se dissesse, enchendo seu sangue com espinhos. “Eu o reconheceria em qualquer lugar. É o meu filho!”, gritou consigo. Quando se recuperou das lágrimas, percebeu a carruagem parando e Mirta se agarrando intensamente às pelagens. Logo abriu as portas, fazendo uma névoa densa e, imaginou a Arrundria, fria entrar. Mirta se agarrou às pelagens e contraiu a barriga com mais força; seu nariz avermelhou e o tremer dos seus dentes piorou.

    “Preciosa”, pensara, com um sorrisinho amargo no canto da boca. 

    — Vem. — Ofereceu a mão. 

    — Está… frio… demais aqui… 

    — Lá dentro não vai ser diferente — respondeu Faina, agarrando o ombro que Draziz apertara; os inchaços provocados pelo Cara-Queimada ainda estavam roxos na sua pele. — Mas acho que será menos pior do que aqui.

    Mirta balançou a cabeça e lufou as próprias mãos. “Você decidiu seguí-la”, repetiu a sacerdotisa para si. “Juraste sob os pés de tua mestra em um féretro seguir e aconselhá-la, ser a serva-calente de Faina. Não quebre as juras…”

    — Esto…u …indo — respondeu, segurando a mão da nova mestra. 

    Faina deu-se pouco tempo para ver a extensão de suas terras, que de cima pareciam menores do que sua palma, então voltou-se para dentro da Boca do Leão: o Templo. O Templo do Leão era mais bonito do que seu castelo, gostava de pensar Faina. Fora escupido dentro da boca do rosto da montanha, na caverna entre os dentes da face de leão. Suas presas eram como pilares caiados por neve densa, a língua era como uma escadaria alta e íngreme; a cada degrau, mais cristalizada pelas camadas de gelo ficava, fundindo-se às paredes azuis serrilhadas de estalagmites. 

    Um guia logo surgiu, vindo as pressas como se estivesse atrasado. “Não avisei ninguém de minha vinda.” 

    — Salve, guia do templo — falara Faina, no tom menos triste que conseguia fazer. Mas foi respondida por um barulho gutural, percebendo que o homem, corcunda, era mudo. Quis abraçá-lo. Controlou-se; não tinha tempo para isso. 

    O guia logo os levou para dentro da Boca: doze metros de escuridão circundavam-os em toda direção além de seus pés, e mais altos ficavam conforme adentravam as cavernas, cujas paredes pareciam gelo-velho puro. Pouca luz passara a entrar: as tochas ficaram do lado de fora. Pouca coisa era mais proibida do que o fogo no Templo do Leão. “Devemos contar com a vontade do Deus Branco de ser encontrado”, pensou Faina, clicando os dentes.

    Os homens da Rieq estavam andando desordenados, ela pensou. Conforme seguiam o guia, Faina percebia que ficava mais quente, ao mesmo tempo que mais escuro. Pisar fazia cliques e estalidos demorados, e toda vez que alguém gemia de frio, o barulho ecoava por dentro da caverna por longos segundos. O gelo se tornava ainda mais escuro. Ao começo, conseguia ver as estalactites e estalagmites e seu pingar, formando um gelo escuro como se a água lá dentro estivesse morta, enquanto o chão parecia mais rachado. 

    Um momento um dos homens soltou um grito. Pisara em uma pequena estalagmite, e antes que conseguisse tirar seu pé de lá, seu sangue já tinha congelado e sua perna ficou uma palidez que crescia. O guia do templo foi mais rápido, e com o porrete que guardava nas costas, transformou a perna do homem em fragmentos de carne congelada. Dois dos outros vinte lhe ofereceram ajuda; os outros vacilaram em seus passos e engoliram em seco.

    — Não pisem onde eu não pisar — falou Faina, olhando para eles com as costas erguidas e uma voz acalentadora. Andava descalça, pois não se dera tempo para cuidar das suas roupas: o mesmo couro e pelagem de quando dormiu. — Por favor, fiquem perto de mim.

    “O gelo atenderá minhas preces; por meu filho e por meu pai.” 

    Ela deu um passo em frente, seguindo o guia com um passo temeroso. Mas olhou para trás. Mirta estava muito para trás, paralisada, com seu rosto moreno e arredondado em uma cor fantasmática de branca. A Primeira correu todos aqueles metros para tomá-la pela mão. Recebeu uma olhadela vacilante e olhos quase chorosos, escondidos atrás de pelagem.

    — Você vai voltar inteira, te prometo. — Mostrou um sorriso amarelo. 

    “Você é quem mais sofre aqui”, pensou Mirta. “O que posso te oferecer além de ajuda?” Pegou a mão direita de Faina, cujos dedos estavam azuis como se pintados, e nela sentiu um calor que não esperava lá dentro. Sentiu seu coração se aquecer. Então andou. 

    A cada passo mais escuro tudo se tornava. Quando olhou para trás, viu que não tinha mais uma luz entrando pela boca da caverna: era o negrume cálido atrás e um ainda mais escuro e frio à frente. Gelo logo cobriu não só o chão, mas o teto também. Camadas cada vez mais grossas surgiram conforme cada passo, e os olhos de todos ali começaram a se acostumar com a escuridão. 

    Foi então que começaram a reparar que o gelo das paredes estava entalhado: havia esculturas em gelo. Homens e mulheres; crianças e mortos à direita e esquerda. Reparou e conseguiu diferenciar Sakonnya, a Generosa; Krastan, o Caçador das Ilhas Quentes, que, fazendo cinco naus, saqueou e invadiu as Ilhas Quentes e voltou com cinquenta barcos; Svaory, que continuou sua caçada; Tereme, o Incestuoso, que teve filhos com todas suas mulheres, filhas e netas, representado como cheio de doença e filhos doentes; Draziz da Faca de Gelo; Rieq Svaor, o Fratricida… Além de centenas de outros que não conhecia. 

    “Meu destino é acabar em uma dessas”, se lembrou. Rieqs não eram enterrados na neve e gelo. “Estou na cripta divina.” Apertou Mirta contra sua barriga.

    Depois de passarem por mais uma vintena de Rieqs que não reconheceu, os olhos dos que não tinham cedido a exaustão ou frio miraram em uma bifurcação na caverna, uma maior do que as outras. Havia nos lábios da entrada uma feita de madeira, madeira velha e de cor cristalizada pelo gelo que a congelara: era uma porta arqueada, grande o suficiente para que Faina pudesse entrar sem se abaixar — coisa que podia contar com uma mão só.

    Pilares de nevadeira envernizada sustentavam um teto de peles, com galhos amarrados e um altar no centro, onde os Arrundria sacrificavam seus filhos aleijados.

    O outro era gelo sobre pedra nua e escura. 

    — Qual destes? — questionou a Esposa de Deus, escorada em Faina.

    O guia do templo tomou frente e gesticulou com as mãos. Faina e Mirta menearam os olhos em dúvida, mas um dos seus homens desenlaçou um filhote de cavesão, macho, com pouco mais do que um mês de vida. O filhote começou a berrar de frio, ecoando pela caverna. O mudo então pôs a mão dentro do robe, e de lá retirou uma corda. Ele agarrou a boca do filhote, então a amarrou, e o guarda que segurava o animal o segurou pelas patas.

    O mudo saiu para a bifurcação e mexeu em alguma coisa que Faina não sabia o que era, mas no instante seguinte ela ouviu um alarido; o gelo que cobria toda a passarela de cristal frio rachou, despencando grãos de gelo como poeira. Faina protegeu Mirta com o corpo, e o vento beijava suas costas com a asperidade de uma barba.

    Quando abriu os olhos, notou que uma coisa saíra do chão. Era azul, gelo-velho erguido do solo como um obelisco da altura de uma pessoa. Todos ali, menos Faina, sentiam o frio que emanava, tão gélido que vazava um vento branco e pesado. Ela engoliu em seco. “Meus ancestrais mataram seus irmãos e filhos em sacrifício ali”, pensou com amargor na boca e no peito. “Não me diga que…”

    O mudou pegou as duas patas da frente do filhote, enquanto o guarda as duas de trás, e o levou para o altar. Com um movimento quase sincronizado, forçaram a barriga do filhote contra o gelo e o pressionaram para baixo com as patas. Por um instante, o animal só deu um curto berro, mas então berrou alto, e gritou e gritou de dor, como se a corda não estivesse lá. Agonizou, balançou as patas em desespero, mas não lhe pouparam; gritou e gemeu até conseguir rasgar a corda, mas nada adiantava.

    Ele berrou até sua língua ficar roxa e as gengivas ficarem sem cor, e de repente não conseguia mais berrar ou se mexer.

    O coração da Primeira se retorceu; sua face contorceu-se e mordendo os lábios e desviando os olhos. Sentiu-se como Sakonnya, a Mãe de Muitos, quando deu um filho seu para um Gigante da Neve comer: ira, nojo, ódio e repulsa de tudo. “Sakonnya fez o que fez pela paz das Ilhas, e todos os Gigantes da Neve pereceram… Isso foi feito por um conselho. Já derramei sangue de esposas e escravas demais…” Cerrou os punhos e conteve as lágrimas. “É por Krazdoro. Não se esqueça. Tudo por ele.”

    O guia usou uma adaga e verteu o pescoço do filhote morto para uma pedra oca e redonda. Ele se aproximou de Faina e fez um gesto para que soltasse Mirta e abaixasse a cabeça. Assim que ela o fez, derramou o sangue quase congelado do cavesão nos seus cabelos e rosto.

    O amargor cresceu.

    Subitamente, ouviram um grande rangido. O gelo tremeu mais uma vez, com muito mais força. Da porta à esquerda, uma brisa muito mais gélida do que o normal os atingiu com um impacto de um raio. Mirta gritou de susto, mas Faina cobriu-a com seu corpo enquanto a névoa passava; o ar muito mais úmido. 

    Ouviu-se o tremer de dentes e gemidos desesperados, gritos de dor. Quando Faina finalmente saiu de frente de Mirta, imediatamente viram que mais da metade dos homens que as seguiam estavam congelados. Mortos.

    — Hum… — grunhiu uma voz feminina e velha, com o som quase todo preso na boca. — Frac…

    Ecos dos passos soaram enquanto Faina e Mirta corriam para os homens e tentaram socorrê-los, mas estavam tão congelados que sua pele rachava com o toque, fragmentando-se como barro caindo da mesa. Cerrou os dentes, agarrando o braço da sacerdotisa estrangeira, que segurou seus ombros e movendo a cabeça com um olhar enlutecido. 

    Imediatamente, Faina mirou à dona da voz. 

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