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    “Parece tão mais velha do que o bisavô”, imaginou Faina. No entanto, ela notou que talvez fosse até mais: a velha tinha as costas mais recurvas do que a idade permitiria a um Homem, longos cabelos grisalhos tocavam e se prendiam ao chão, aos lábios enrugados e boca sem dentes, aos cílios longos e à roupa. 

    Estava descalça, e vestia somente um fino robe de uma camada quase transparente de liéve, que deixava seu corpo flácido à vista de quem a olhava.

    — Aah — palrou, com muita dificuldade, seus sons pareciam se misturar na saliva nas paredes da bochecha. Seus olhos eram vermelhos como sangue, por mais que não conseguissem ficar muito abertos. — Mia… descen…dente. 

    — Mãe-da-Neve? — questionou Faina.

    — En…tr…

    E a velha se virou, dando um passo longo e torto para de onde tinha saído. 

    — Não vai? — bravejou a velha.

    A Primeira achegou Mirta em si com mais força. 

    — Obrigado, Mãe-da-Neve — saudou Faina, forçando a Esposa de Deus a saudá-la também. A velha austera se apoiou na parede e deu passos ritmados, lentos, e as duas foram. — Não saia de perto de mim — sussurrou.

    Mas Mirta somente suspirou e permaneceu naquele lugar difícil de andar, acompanhando sua mestra e amiga. Cresceram sempre juntas e, mesmo que fora constrangedor quando Faina dissera que lhe desposaria, já não achava tão inconveniente e vergonhoso a forma que era tratada. Principalmente por perceber que não olhavam para ela, e sim, à Rieq. 

    “Que escuro é esse lugar”, pensara, ainda desconfortável. A respiração pesada de Faina e gotas de sangue quente caíam sobre seus cabelos e ombros. “Que lhe seja dado um caminho seguro. Que Krazdoro e Nikol sejam encontrados.” Não acreditava em nenhum dos deuses de Faina, mas rezou enquanto adentravam pelo assoalho escuro. “Que sejam achados seguros. Que não haja busca de ferro!’ 

    ‘Acalma-te, Mirta. Decidi que a serviria independente disso.”

    O som dos passos da Mãe-da-Neve escoavam no assoalho, as distraindo pouco a pouco da súbita onda de fraca luz. As duas protegeram os olhos e pararam de andar, mas a velha seguia como se elas não estivessem ali. 

    Assim que se reacostumaram, notaram dezenas de altares com vasilhas de barro; olhando para cima, estalactites pingavam uma água azul demais para ser água.

    — Gelo-velho? — questionou Faina à Mãe-da-Neve, mas fora ignorada. Se fosse o gelo que construíra as armas de armaduras do primeiro Arrundria, que arma dos Cara-Queimada poderia detê-los? O mesmo gelo, que compunha o Trono de Gelo, sobrevivente da quase extinção do seu sangue, mais de mil anos de guerra e a incêndios?  

    Entretanto, a velha permaneceu calada; a passarela, infinita. Conseguiam ver uma luz no fundo e uma cálida e fraca saindo do teto. Apertou Mirta.

    — Quando chegaremos, Mãe-da-Neve?

    — Apressada… É filha de… quem?

    — Sou rieq Faina, filha de Nikol, que é filho da Rieq Manne e do Rieq Kozen, filhos de Rieq Razzin.

    — Aaaah… Razzin…

    A velha parou de andar. Com uma grande tremedeira, como se suas pernas e braços fossem virar água, ela começou a se erguer. Era muito mais alta do que parecia; subitamente, foi como se muita cor tivesse voltado ao seu corpo velho e flácido. 

    Moveu o braço, esquálido, enrugado e ossudo, cujos músculos mais pareciam sacos de água, à direita. Havia um buraco na parede, com mais um altar de sacrifício.

    Mirta empalideceu, e seus dedos enfraquecidos logo encontraram com os de Faina. Até ela, que sempre negou boa parte dos conhecimentos dos deuses de Norq’Riq, se lembrava dessa tradição. “Tão cedo?”, pensou, e suas pernas tremeram mais do que as da velha. Um tênue suspiro fugiu da sua boca.

    — Eu não tenho nada para sacrificar, Mãe-da-Neve.

    — Tem de sacrificar! Deus nenhum atende sem sacrifício. Tem a mulher!

    Mirta tocou os braços de Faina, que não sentia os dedos macios da amiga por estarem enluvados. Queria sussurrar “Está muito bem”, mas não conseguia… Como se água invadisse sua boca, água salgada, tempestuosa… “Está tudo bem, minha amiga.”

    Faina a soltou. Olhou para a Mãe-da-Neve e suspirou profundamente, como se buscasse no seu espírito alguma resposta. Seus olhos avermelharam de choro mais uma vez; o ar entrava como uma tenaz quente no seu coração. Apertou o braço esquerdo, e de repente se viu cerrando os dentes com força; sentia o sangue fluir, fervendo…  

    — Não pretendo sacrificar minha amiga — dirigiu-se à velha num salto, ficando cara a cara com ela. — Quero-a do meu lado, ensinando meu filho sobre o mar e além. 

    — Mas você não tem mais filho nenhum, mestiça!

    Faina sentiu o sangue explodir. Sua visão focou e ficou tudo mais claro, uma luz que sentiu cegar a voz da sua cabeça; agarrou as roupas da Mãe-da-Neve, e quando se deu conta, a jogou contra à direita. A velha deu um grito rouco e tentou se manter de pé, mas deslizou e tropeçou uma dança. 

    Tentara se apoiar, balançando o corpo velho, mas o joelho estralou como ela não sentia há anos e deslizou, então bateu o lado direito do corpo na parede congelada, fazendo um curto alarido que ecoou por todo o lugar.

    Faina arfava, seu coração pulsava raiva e a mente ardia. Notou Mirta fitá-la com olhos tremendo de medo. Como se fosse atingida por um raio, deu um passo trêmulo para trás e arfou. A Mãe-da-Neve arrastou-se pela superfície de gelo, deixando um rastro de pele e sangue quente, escorrendo pela parede e pelo chão.

    — Está bem, Mirta? — indagou, com lágrimas escorrendo dos olhos. 

    — …sim…

    Faina a abraçou fortemente de chofre.

    — Desculpa. Desculpa desculpa desculpa!

    Mirta olhou para baixo — não via os próprios pés, mas tremiam e vacilavam. Num acesso de coragem, balançou a cabeça e limpou a garganta. A cor se recusava a voltar para suas mãos, porém sentia o sangue bombeando. 

    — Não… Você não fez isso por mal — pigarrou. — Ela me mataria… — Deu um sorriso amarelo. — Você me salvou, Ay rieq. É minha heroína.

    Faina deu um sorriso igualmente amarelo e enxugou as lágrimas. 

    — Não brinque comigo assim… — respondeu. Ela fitou a velha, caída e com sangue escorrendo devagar. As duas logo ficaram em silêncio, ouvindo somente o crepitar de alguma coisa; o fluir de algum líquido mais forte. Faina voltou-se para o altar: era idêntico ao que mataram o filhote, mas de frente para uma porta redonda de gelo-velho. — Um… sacrifício… certo?

    Mirta olhou para a Primeira com um olhar nervoso.

    Faina puxou dentre os seios fartos a adaga que Drazis a dera, e de repente percebeu que já faziam dias desde a última vez que Krazdoro foi amamentado por ela. “Fome! Meu filho está com fome…!” Moveu o queixo para cima, como se para fazer a lágrima voltar para dentro dos olhos.

    “Eu não tenho tempo para isso! Não deveria estar sequer aqui. Sei cavalgar! Poderia estar em busca, e melhor do que os mortais que sentem frio!”

    O sangue explodia — e o azul nos seus dedos ficava cada vez mais azul. Percebeu sua respiração se descontrolar. De chofre, ela saltou e agarrou a Mãe-da-Neve por baixo da barriga. A velha tentou grunhir, mas Faina não a deu tempo. Correu com suro escorrendo pelo rosto ensanguentado e jogou sua ancestral no pilar, e sem se dar qualquer outro tempo, rasgou com a adaga da nuca até o coração.

    — Ha… Ha… ahf… Ahf…

    O sangue escorreu, pintando como Caminhos de Fogo. Faina tomou o sangue e maculou seu rosto e cabelos, e repetiu isso até a branquidão da sua pele ficar inteiramente vermelha. Sentiu seu coração se entristecer mais. “Derramei mais sangue de mulheres em uma semana do que guerreiros em sua vida toda…’

    ‘Não chore. É por Krazhii. Seu Krazhii!”

    O ar rugiu. O obelisco de sacrifício tremeu e um vento forte saiu pela porta de gelo-velho. Mas dessa vez Faina não se deu tempo para se dar de escudo. Viu uma abertura minúscula, libertando o som de um fraco flume e tênue névoa esparsa, e disparou seu corpo para dentro.

    A primeira coisa que viu foi uma tela de escurirão absoluta tomando seus olhos. Imaginou que seus olhos estavam acostumados com o escuro: uma escuridão ainda maior, no entanto, estava lá — e, ainda assim, conseguia sentir. 

    A água corrente, escapando e escorrendo pelas paredes em direção a um flume borbulhante, era como se pingasse de sua pele; a grama que seus pés pisavam era áspera; o ar que saia de si parecia fogo, um fogo que crepitava.

    O máximo de construções que haviam era um tronco derrubado, coberto por trepadeiras e musgos avermelhados e brancos, sombreados pelo homem que nele sentava, torto como galhos. 

    Vestia couraça sobre couraça, da mesma cor que a barba grisalha e cabelos que fugiam da calvície, que devorara a abóboda da cabeça; os olhos eram brilhantes, cheios de força, mas círculos de olheiras negras, profundas riscavam o rosto, junto de dezenas de tatuagens de carvão.

    — Pai-da-Neve! — clamou Faina, que se jogou aos pés do sacerdote supermo do Cantão-Congelado.

    — Quem é? — ele perguntou, sem a fitar. Seus olhos estavam presos no reflexo profundo do flume, que os circulava como o mar numa ilha, quase inexistente. — Quem é, eu perguntei.

    — Sou… — olhou para o sacerdote, erguendo o peito e pondo força na voz desesperada — Rieq Faina, filha de Nikol, que é filho da Rieq Manne e do Rieq Kozen, filhos de Rieq Razzin. Eu imploro, Pai-da-Neve, me diga onde meu filho está!

    — Ahh… — Já estava enfurecida de ouvir os mesmos gemidos.

    O Pai-da-Neve moveu seu longo braço direito, forçando um movimento doloroso para alguém com tantas rugas e furúnculos, para remover um botão da trepadeira. Faina pensou que ele o comeria. Invés disso, jogou o botão no flume. 

    Com outro movimento doloroso, a Primeira percebeu que o lado esquerdo do homem estava lacerado, ferido de queimaduras de frio; não havia sequer um cotoco de braço ou perna ali.

    Ele retirou um pedaço de um gelo cristalino, muito mais translúcido do que qualquer outro; comparável ao Trono de Gelo. 

    — O que quer, rieq? O mundo de fora não me interessa, adianto — continuou, com a face impassível trancafiada no reflexo escuro do flume.

    — Eu imploro, Pai-da-Neve, me permita saber onde está meu filho… — Juntou as mãos, com lágrimas descendo por todo o rosto ensanguentado. — É meu único filho, filho dessa Arrundria mestiça maldita! Me conte! Sei que sabe! Por favor, Pai-da-Neve! Ele tem menos de dois meses de vida e chora toda vez que está longe de mim… 

    — E o que fará caso te conte?

    — Resgatá-lo! — Agarrou a única perna do homem; suas mãos vacilavam, sem força até para isso. Suas esperanças estavam todas agarradas sob os olhos desse homem: aquele que recebia o veredito dos deuses. Aquele que ouvia a voz deles… — Irei resgatá-lo, irei resgatar ele e meu pai! 

    — E? — Virou o rosto à direita. — O que vai fazer depois?

    Seu coração ardia. 

    — Acolherei os Bárbaros e os Caras-Queimada que quiserem se redimir…

    — E os que não quiserem, Rieq Primeira?

    — Sou jovem, mas meu coração é o coração de mãe. Eu os daria mais uma chance.  

    O sacerdote calou-se. Ficou olhando para o flume, uma água cristálica que fluia devagar…

    — Deixe teu filho morrer e faça mais um.

    A mãe cerrou os dentes. Foi como se seu sangue estivesse parado e tivesse inteiro sido substituído por óleo estragado. 

    — …O que…

    O Pai-da-Neve ergueu a mão à saída. 

    — A nevasca irá parar em pouco tempo, e logo vai conseguir jogar sua mãe nas águas. Volte logo e faça mais uma cria, mestiça. Em breve, a Noite se tornará mais fria do que qualquer outra que já existiu, então Bárbaros e Caras-Queimada vão morrer. Não fará diferença nenhuma se marchar em busca dele. Ou daria perdão aos homens que mataram o seu pai?

    Bombeava fogo. O sangue fervia — e uma tristeza encandeava seu peito. “Meu pai… está morto?”Vá embora. Livre-se do corpo da sua mãe e não vá para o sul. A morte é branca e seu machado é de neve.

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