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    “Dou uma continuidade a uma palavra antiga minha: indecisão é medo. Fraqueza é medo. Medo não surge sem razão.”

    Izandi, a Oniromante

    Tão densa era a Floresta dos Traiçoeiros que, se as folhas não tivessem desvaído com o inverno, não haveria luz chegando a Ereken e conde Siward. 

    Independente disso, esguios galhos retorcidos enforcavam-se entre diversas decíduas e imponentes pinheiros, transformados em casa para ninhadas inteiras de esquilos brancos e gatos da floresta; pássaros em migração tardia e galos da vila anunciaram o dia, que era calado pela sombra das montanhas Minya, Hinnya e Kifya, chamadas na Língua Comum como Três Irmãs. 

    Faziam parte da Cordilheira que separava Aarvier de Greatedan, mas eram maiores do que as suas irmãs no horizonte de ambas — enormes, cobertas de neve até o topo dos picos irregulares como um pente quebrado.

    Os dois homens andaram com cuidado para evitar galhos caídos, restos de arbustos e qualquer coisa que emitisse barulho além de suas barrigas; procuravam o animal desde que a noite caiu — sozinhos. A princípio, tinham uma equipe maior e quatro cães farejadores habilidosos, mas conforme entraram fundo na mata, os cachorros começaram a hesitar — e os homens também.

    As habilidades de caça de ambos eram ótimas, mas o que caçavam não era um animal qualquer, era uma fera altamente inteligente. E faminta.

    “Disseram que era um comedor de folhas”, pensou Ereken “, todavia não acho que seja mais possível crer nisso.” Não imaginava ser impossível que um inverno rigoroso fizesse um herbívoro comer carne, no entanto, o inverno desta vez estava bastante quente.

    Além das montanhas, que já estavam brancas, a neve tinha feito um tapete curto e facilmente removível. Em comparação com o inverno que Hydele nascera, era um mês de frio muito fraco. Isso deixou-o com uma coceira atrás da orelha.

    “Devo ficar alerta.” 

    Entraram em uma zona ainda mais densa. O conde apagou sua tocha sem pensar duas vezes ao notar galhos secos mesmo dentre os montes de neve, já Ereken não precisou de uma tocha. A noite e o dia não faziam diferença para si desde os cinco anos.

    Estudou com atenção a falta de luz entre as trepadeiras congeladas e falta de roedores nas tocas nas árvores. A branquidão sobre o solo e sobre os galhos negros estava cinza aos olhos deles. 

    Esquadrinhou a pequena clareira onde estavam. Levados por um tíbio vento, reparou pelos enovelados sendo movidos vagarosamente. Ereken reparou na direção de onde o vento veio, então estralou o braço esquerdo — letárgico.

    — Daqui em diante, conde — se abaixou e tomou um fragmento de fêmur de ovelha —, não haverá muita luz — fitou um fino caminho de fragmentos de tutano seguindo até o sopé de um pinheiro —, e devemos olhar para cima.

    — Entendido.

    Ereken sorriu ao ver Siward embainhar sua espada vermelha e sacar uma lâmina curta. Fez o mesmo, uma curta espada comum que usava para raspar madeira que estava guardada no alforje. Tentou manejá-la com a mão esquerda, mas a letargia não a deixara. Movia-se, mas era como se fosse um toco pesado.

    Rapidamente, puxou a manga grossa do seu casaco e apertou, com o polegar, dois pontos no antebraço. “Não adianta de muito”, notou. A mão ao menos se mexia melhor. Passou a adaga para a mão direita e esquadrinhou o topo dos pinheiros no seu campo de vista.

    “Há quanto tempo não faço isso?” O festival de caça no outono não fora um grande prazer. Já conhecia cada pedaço daquela floresta, e ocorreu o terremoto que podia ter ceifado sua filha. Ereken sentia-se grato por não ter perdido a filha, ainda assim, se entristecia.

    Poderia ter brincado no festival — ter mais uma vez se vestido de cetim e palha, ser a Rainha do Outono. “Mas, mais uma vez, ela se fere com minha presença sendo insignificante.” Fechou a mente para o sofrimento da filha. “Tenho algo que posso fazer, agora.”

    Seguiram pinheiros à dentro.

    — Vê alguma coisa? — Siward questionou, aproximando-se. Respirava profundamente. “Sua visão já não serve de muito”, pensou Ereken.

    — Não vejo de importante nada além de restos de ossos na neve.

    — Maldita cama de folhas — riu o conde; o barão notou um pequeno sorriso no rosto envelhecido, tão parecido com o seu. — Há um vento fraco fluindo contra minhas pernas, mas o acima dela está parado… — Tocou o queixo. — Há algo se movendo.  

    Apertaram o passo, apesar de que os pinheiros estavam próximos demais para facilitar isso. Tinham que encontrar a fera logo. E foi então que Ereken reparou uma poça de sangue congelada pouco à sua frente, respingada em uma linha quase reta. Sussurrou para o conde e abaixou-se. Neve a circundava, e fitando por cima, achou os restos mortais do peito de ovelha. “Nevou na noite passada.”

    Temeu que a parte mais significante do rastro tivesse sido ocultado, então seguiu com os olhos um possível caminho.

    “Norte… não.” 

    Prestou mais atenção nos pinheiros: estavam quase grudados uns nos outros. E riscados. Marcas das garras. Eram profundas num único ponto, então riscavam para baixo e apareciam de novo longe.

    “Ele subiu. Saltou de árvore em árvore até a próxima presa?”, sorriu, uma pequena inquietação tanto alegre quanto de susto. “Um comedor de folhas consegue fazer isso?”

    Certificou-se que não estava sendo visto quando deixou seus olhos incharem. O manto da luz pálida, cinzenta e cálida foi transposto por uma gama de cores invisíveis aos olhos de Siward e uma clareza de detalhes longínquos que todo caçador sonharia em ver.

    A floresta escura e densa, com paredes de pinheiros, virou uma tela de detalhes claros como o dia. “Galhos quebrados”, notou “, gotas de sangue congelado, pedaços de carne… A boca é grande, mas a fera não tem dentes poderosos.’

    ‘Demora para comer. Estes restos têm horas… Não, dias. Ele começa a comer aqui e segue para outros lugares para enganar caçadores?”

    — Seguiremos ao meu leste.

    — É um caminho difícil para o tamanho do animal.

    — Não faz diferença para ele. Ele salta pelas árvores.

    Notou o conde semicerrar os olhos e tatear uma árvore próxima. “Estes arranhões…”, pensou o conde.

    — Algumas estão cobertas com neve ou gelo, ou até sangue congelado — apontou Ereken para uma direção. — Todavia todas seguem a mesma direção.

    Siward cruzou os braços e ficou de olhos arregalados. Uma lufada branca saiu de sua boca.

    — Você tem olhos excepcionais.

    — É de família — riu Ereken, engolindo o riso ao notar que não deveria ter feito a piada. — Digo, de experiência.

    — Experiência não me fez enxergar no escuro — falou o conde, tateando mais árvores. — Tenho ao menos o dobro da sua nisso, jovem.

    Ereken riu com os dentes, dando de ombros. Logo partiram pelo leste do barão: o caminho era horroroso para homens tão grandes. Tiveram que engatinhar, escorar-se entre pinheiros e tomar cuidado redobrado com o chão em que pisavam. O rastro de sangue congelado em gotas aumentou, e o de restos também. Encontraram um filhote de ovelha com olhos arregalados e língua roxa, sem nenhuma das patas; uma cria de lobo sem o rabo e uma das pernas…

    “Estamos no armazém dele?”, indagou o conde, guiando-se pelo som dos passos ajoelhados de Ereken. “Não. Isto não é um armazém! É um abatedouro!” 

    Quando atravessaram um grande pinheiro com a figura de uma alta mulher esculpida como numa pira, ouviram o barulho como o de alguém se lambuzando da comida, numa curta clareira próxima de uma aureira, cujas folhas cor de ouro continuavam a espalhar o cheiro de mel, e um figueiro-sagrado emitia calor.

    Ereken deu um sinal e segurou a espada curta para dispará-la assim que tivesse um ângulo letal contra a fera. Conseguia ver suas costas de pelos hirsutos e negros em anéis, com braços ainda mais longos segurando um animal, que berrava enquanto era comido. Temeu que os pelos amortecessem a morte, porém ergueu a lâmina mirando na cabeça…

    E então a arremessou. Limpo e reto. O negrilapi caiu com a cabeça escorrendo sangue escuro sem um grito ou grunhido, sem qualquer reação. Siward foi até o animal e tomou sua espada para dar paz ao filhote de ovelha.

    Pegaram os corpos e levaram para fora da floresta, onde o conde agradeceu aos Quinze pela luz fraca e invernal, que iluminava o lago congelado na falda do talude. Ereken fitou os rostos de Minya, Hinnya e Kifya e seus estranhos narizes e olhares furiosos enquanto desciam para a vila vazia, afim de entrarem no seu subterrâneo e se livrarem das roupas pesadas.

    As três montanhas eram como um passo à frente das outras, cujos peitos criavam uma sombra que ocultava quase toda a vila e lago, sombreando tudo à frente.

    Chegaram na vila havia quase dois dias, dez noites após sua partida imediata do castelo Beesh, e os moradores abriram os portões da neve com muita hospitalidade. Haviam passado por Árvore Vermelha antes, após cruzar o Rio Invertido Norte por uma ponte. Se seguissem o ritmo de agora, com um clima bom e estradas ainda limpas, estariam em Porto-Bastilha em alguns dias — oficialmente deixando o Ducado Beesh e entrarem no Ducado Hoone. Por sorte, possuíam um salvo-conduto do rei.

    Em sua marcha, foram bem acolhidos por todos as vilas por onde passaram. Em especial, achou o povo da Vila das Ovelhas um pessoal maravilhoso e de bom coração. Acolheram os homens do séquito, os serviram com tortas e lhes deram quartos quentes para descansarem e feno aos seus cavalos.

    Agora retribuiu o favor. Já faziam semanas que seus filhotinhos eram mortos por essas coisas. 

    — Aqui está — disse Ereken, entregando o corpo do negrilapi ao prefeito da vila, um homem de nariz obtuso e cabeça sem um fio de cabelo. — Com este são cinco.

    — Raramente vivem em bandos com mais do que isso, senhor — disse o cile, que não passara da casa dos trinta anos, ao prefeito. — Com isso, nossas ovelhas devem prosperar para o final do inverno… 

    — Mas como os desgraçados invadiam aqui?!

    — Quanto a isso — respondeu o cile, erguendo o óculos redondo pesado e o indicador —, eu tenho uma teoria…

    Ereken não ouviu muito mais do que isso, pois ambos, o prefeito e o cile, foram embora, deixando a carne da fera para os moradores que quisessem o prato exótico. Voltou para o lugar onde fizera sua estadia por esses dias onde a neve estava mais pesada do que o normal, um quarto humilde que um casal que acabara de ter um filho lhe ofereceu: grande o suficiente para uma cama de almofadas e seu baú. 

    Quis preparar um pedaço da carne de negrilapi para o bom casal, então voltou à praça. Por azar, o animal já tinha sido inteiramente dividido. Deu uma fraca sorridela e somente caminhou pelo subterrâneo: fora escavado por provavelmente uns dois séculos, pensava. Aarvier era uma terra que lhe deixava intrigado: existiam montanhas altas, colinas baixas e cavernas profundas — e todas elas pareciam ter sido domada pelos seus moradores.

    E seus rapazes mais novos tinham gostado muito disso. As meretrizes da Vila das Ovelhas praticamente saltaram no seus colos. Havia uma que tinha se oferecido para ele também: uma garota da idade da sua filha, de cabelos loiros que pareciam seda, com um vestido chamativo e um batom mais vermelho do que sangue.

    — Sou casado e amo minha esposa — foi o que respondeu. — Volte para seus pais, garota.

    O pai deu um suspiro longo. Era um bom lugar, e não estava frio demais. Voltou para seu quarto e bebeu um pouco do vinho da Árvore Vermelha que o conde tinha trago. Estavam carregando um estoque para a Fortaleza-Montanha: doze barris fermentados por vinte anos. “Até a espada do conde tem cheiro de vinho”, riu, comeu com o casal e então dormiu.

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