Capítulo 22: A Cordilheira (2)

Assim que acordou, se equipou e tomou viagem. Seu séquito partiu com cavalos muito bem descansados.
O conde seguia com a dianteira pelo caminho. As Três Irmãs os fitavam enquanto tomavam uma sinuosa elevação onde pedras e raízes congeladas jaziam à direita, e uma bela vista do terreno irregular dos restos do Planalto Cinzento, onde aclives pesados e colinas suntuosas erguiam pinheiros e decíduas tortas e neve.
À direita, a Cordilheira os cobria com suas sombras e olhos por mais centenas de léguas. À esquerda, o terreno do Planalto era a forma de um grande talude com fracas colinas esbranquecidas, que caiam subitamente para pastos planos por léguas e bosques, que caíam para mais e mais, até chegar aos pântanos do Canal das Flores.
“Como Hydele reagiria vendo isso? Essa vastidão branca?”, pensou; a imaginação o deixou triste.
O caminho agora tendia a abaixar até chegarem a terra dos Hoones, onde finalmente encontrariam a estrada para a Fortaleza-Montanha.
Havia pouca neve na estrada, que era quase uma alameda com árvores decíduas cá e lá, mas então a estrada subiu como o ápice de uma escarpa. O conde parou seu castrado subitamente, o virando para o lado.
— Cuidado. A partir de agora, a civilização morre. Não comam tudo, preparem suas flechas e afiem suas facas. Porto-Bastilha está a vista de cá. — Parou, fitando o norte pelo ombro. — E comportem-se! Não estamos mais em território nosso.
Em alguns dias de viagem, um talude se formaria para uma paisagem plana de dezenas de léguas cobertos de neve, vilas subterrâneas e moinhos poderosos — conhecia uma ou duas Casas que lá trabalhavam, mas não gostava do leste. Nunca gostou do leste de Aarvier, todavia, de todas as regiões, era a mais fértil. O Sempre-Verde, de onde se tirava trigo mesmo no inverno…
No entanto, a hoste não seguiu pela estrada. O sol estava forte para um inverno, com poucas nuvens no céu, mas cavalgavam há quase dez horas sem parar. Seguiram à direita, e ainda mais acima, para voltarem às montanhas. Ereken sorriu grandemente por aquele momento da viagem. Pararam para acampar à beira da estrada, poucas toesas longe.
— Barão — chamou um rapaz de uns vinte anos. — A gente ergue as barracas. Arranja carne pra gente! Não deram nem um maldito boi pra…
— Eles perderam gado — bravejou o conde. — Não os culpe por isso, garoto.
— Tá tudo bem — respondeu o barão ao conde, tirando um bolinho de mel de uma trouxa. — Nunca fui bom em armar barracas.
Comeu um doce de mel e mexeu o braço esquerdo como se para forçar o sangue a correr. Deu um salto pesado para cima, então seguiu para o bosque à direita. Tinha decíduas bem espaçadas: faias, carvalhos e olmos, recebendo tanto a luz fraca do sol à esquerda, coberto por nuvens cinzas, quanto as últimas sombras da Cordilheira, ficando imponentes ao pôr do sol.
Imaginava a garota correndo pela neve, Bert enterrando-a e Willmina enfurecida com o comportamento dos dois. De repente sentiu tanta dor no coração… “Agora só a verei quando for uma mulher completa…’
‘Talvez nem veja o nascimento do meu filho…”
— Talvez não veja nenhum dos dois crescer — sussurrou-se.
Sempre tarde demais, ele ouviu. A memória maldita sempre retornava — uma névoa verde que caminhava devagar, todavia com a força de uma fera, áspera como uma lixa de metal. “Devo encher a mente com a caçada. Será melhor assim. Vejamos o que posso encontrar aqui…”
Retirou a faca do alforje e começou a andar em passos silenciosos. Dessa vez não tinha ajuda de nenhum cão de caça, todavia o bosque não era nem de perto tão obstruído quanto a floresta. Em alguns minutos de caminhada, reparou coisinhas quase tão brancas quanto a neve escondidos em um arbusto esbranquecido. Poderia ter deixado passar, mas um olho vermelho piscou e Ereken imediatamente jogou a faca, que penetrou o pescoço do coelho gordo; e antes que morresse, seu amigo chiou e saltou rápido.
Ereken enfiou a mão no alforje, mas reparou que não tinha outra faca. Enquanto isso, o animal já tinha saltado mais uma toesa inteira e correria para dentro do bosque. Geralmente não se importaria, mas pedido era pedido. Neve levantou do chão como um montículo. Ereken disparou-se e correu, mas o coelho menos gordo virou para trás e saltou a esquerda num momento, fazendo o barão se arrastar meia toesa na neve e bater o ombro numa faia, causando uma dor estridente; neve despencou na sua cabeça.
Mas ele não se deixou ficar parado. Devagar como não deveria ser, uma onda de ahvit se deslocou do centro do seu peito e correu até a palma da sua mão enquanto o coelho saltava em uma direção quase reta. O laranja assumiu uma névoa pesada e densa na sua mão direita.
E então uma flecha atravessou as costelas do coelho, que chiou alto antes de uma flechada de misericórdia na cabeça.
O barão fez o Ahvit desvencilhar como uma lufada de ar frio. O fluir o deixou desconcertado, rangendo os dentes como se tivessem o humilhado. Ele se levantou e deu as costas para a caça morta.
— Conde.
— Dois coelhos não dão para dez homens — disse, tirando a aljava do ombro. — Caçar sozinho não é divertido, garoto.
Uma onda de admiração abriu os olhos de Ereken, e ele exibiu um sorriso despretensioso. Algo no tom do conde provocava um instinto de companheirismo forte no barão. Já tinha ouvido de muitos que eram parecidos. Tinham o mesmo tom de cabelo castanho-ocre, uma altura próxima e o porte físico era parecido. O Conde porém tinha rugas e olhos de um avô. ”Enquanto eu não criarei meus filhos por impulsividade e burrice!”
Cerrou os punhos com força para machucar alguém.
— Vamos mais para dentro da floresta, conde…
Conde Siward Sirgen meneou a cabeça, com as olheiras cansadas parecendo ainda mais pesadas. Ele jogou a aljava para Ereken.
— Sabe usar?
— Não é meu melhor.
— Com olhos como esses, barão?
— Sou melhor com a espada.
— Imaginei isso — começou a caminhar. — Homens com bons dotes investem em uma coisa só e ficam com ela até não precisarem mais. Dinheiro, contratos ou casamentos políticos; mas armas nunca deixam de ser investíveis. — E seguiu caminho.
Os dois seguiram calados mata adentro, enquanto o Sol minguava e as duas Luas apareciam detrás da Cordilheira, deixando a face das montanhas ocultas e sombrias. Os olmos rapidamente deram lugar a diferentes espécies de carvalhos com galhos retorcidos, cobertos por trepadeiras densas e de cor morta conforme andavam. Ereken reparou no animal primeiro — uma coelha gorda, pesada como se gestante. Puxou a flecha e disparou; de repente ouviram o barulho de água caindo vagarosamente.
As árvores inclinaram-se levemente para a esquerda, subindo um monte baixo, de umas três toesas de altura e escarpado. Retirou a flecha do peito da coelha antes de olhar para todos os lados. A luz tênue caía em direção da escarpa do monte, e ao lado de lá, um pequeno lago se formava, mas logo corria em direção oeste, serpenteando. O conde se aproximou primeiro e, ao ver, sorriu.
Havia uma escultura entalhada do monte, uma formosa mulher de olhos fechados e sorriso singelo e maternal, segurando um pequeno jarro de barro. Vestia de um um amarrado a cintura e torso nu, com cabelos protegidos por um toucado e um véu; e na sua saia, três crianças de alturas diferentes seguravam-na. “Quem a fez?”, pensou Ereken. Esquadrinhou o melhor que pôde em busca de alguma assinatura, mas não viu nada além de traços em alguma língua que não reconhecia.
Siward se distanciou da escultura para ver melhor, então se sentou à beira do lago, coçando a barba agrisalhada. Havia no homem um sorriso calmo da boca aos olhos, um que fez Ereken perceber que não sairiam de lá tão cedo. Enquanto começava a preparar os coelhos para a sangria, percebeu o conde tirando um embalado de couro e um pincel de carvão irregular, como se muito usado.
— Você desenha, conde? — Usou sua faca para esfolar a coelha gorda, começando firme pelo peito.
— Não. Ao menos não com costume. Aprendi já quando velho… — Começou a rabiscar o papel. — Eu ouvi seu sussurro antes de sair. Se arrepende da sua decisão, Ereken?
— …Poderia ter… feito melhor.
— Eu penso a mesma coisa.
Amassou o papel e jogou ao bosque.
— Eu tive uma filha com minha esposa, uma única, pois sua saúde nunca foi boa. — Traçou uma reta; dessa vez começara pelo jarro da estátua. Ereken percebeu um tensar na sua voz, um luto doloroso. Não sabia se era pela esposa… — Seu nome era Lyvine — continuou; sua voz se enchera com mais luto. — Era linda, formosa. Puxou para a mãe em todos os melhores detalhes; mas a saúde puxou de mim. Ela saltava e cantava pela Árvore Vermelha, e todo o povo do meu Condado a amava; a chamavam de Deleite das Macieiras.
“Quanto tinha doze, foi realizada uma festa em homenagem ao seu segundo batismo, e lá ela conheceu e dançou com um Hoone. Detestava o rapaz. Era quase dez anos mais velho do que ela. Não os separei, e tardei para descobrir que por dois anos inteiros eles trocaram cartas de amor. Quando descobri, a proibi; mas não de que visse suas amigas, e elas continuaram o serviço. Aos quatorze anos, ela viajou com uma amiga, para um baile, mas não pude ir.’
“E demorara para vir. Culpei o inverno e um suposto deslizamento de terra. Meus homens amavam tanto minha filha que mentiram para mim em nome dela, e a distante mansão onde seria a festa era na verdade há poucos dias de viagem. Não me conformei quando ela voltou grávida e casada com o rapaz que nunca gostei. Aceitei o amor dos dois. Era um casamento legítimo. O que os Deuses unem, somente os Deuses separam.”
Ereken começou a preparar o segundo coelho. Olhou de soslaio para o homem velho — um herói de guerra, que agora dava as costas para um bosque inteiro e desenhava.
— Logo nasceu minha neta — sorriu. — Jeansany eles a nomearam, e era a coisa mais linda que meus olhos puderam ver. Era alegre, inteligente, hábil com as palavras e poesias, e tocava a lira com a proeza de um menestrel com décadas de experiência. Logo toda Árvore Vermelha a chamava de Voz do Deleite, de Beleza do Condado… Senhorita do Vinho.
“Gostava de beber vinho de lichia e conseguia compor poemas e músicas em qualquer lugar e qualquer situação. Quando fez quinze, minha esposa arranjou-a um noivo que cativou seu coração. Queremos nos casar neste ano!, ela gritara a nós. Mas, então, mais uma vez minha filha e minha neta partiram em viagem para um festival ao norte do Sempre-Verde, próximo das terras do seu pai… E aí, Eztrieliz.”
O conde se levantou; a noite já tinha caído.
— Soubemos da notícia da morte das duas enquanto minha esposa terminava de tecer o véu do diadema para o casamento de Jeansany. Ambas foram violadas e mortas e meu genro fora decepado. Saí com dois mil e quinhentos homens da Árvore Vermelha e fiz os malditos sofrerem mais do que uma morte lenta e dolorosa… Mas foi vingança. Parti em guerra, e em guerra guerreei… Mas o maldito “e se?” está na minha mente até hoje.
Pôs a mão no ombro de Ereken, cuja mão estava trêmula, esfolando o terceiro coelho.
— Ele não resolve nada. Resolver os problemas antes que cheguem nos seus filhos é o dever de um pai; de um avô. — Suspirou, olhando para cima. — Você já tomou sua decisão. Vou na frente, garoto. Volte logo; está escuro.
O garoto sorriu, mesmo sentindo seu coração arder e doer; uma batida devagar e áspera. “É o dever de um pai…”, pensou. E logo percebeu que toda sua vida como filho fora o oposto. Lembrou-se das florestas e dos castelos, de estar com um elmo e espada, montado e em ataque desde que o primeiro pelo no seu peito surgiu.
Percebeu que a faca de esfola tinha atravessado sua mão esquerda.
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