Capítulo 24: Lugar de neve eterna (2)

De onde vinha, dias com névoa assim eram comuns, tais quais quanto dias chuvosos. Nunca fizeram diferença para Ereken, todavia gostava do ar frio ou úmido. As montanhas de lá tinham o ar seco, mas não por calor: eram altas, talvez mais altas do que as dali. O Zwaarkind se lembrava de quando esteve numa planície pela primeira vez. Seus pulmões se encheram de ar com a força que água caía de uma cachoeira, um impeto tão forte que parecera esmagar todos os seus órgãos.
Aqueles que o seguiram eram o contrário. Um deles quase caiu do cavalo, respirando vacilante como a última chama de uma vela, mas fora socorrido da guerra por outro que percebeu a quase tragédia. Ele o amarrou na sua sela e sua égua carregou os dois. Outro começou a espirrar tanto e sentir tanto frio que, quando tirou sua luva para se aquecer em uma fogueira, seu mindinho direito desgrudou da mão fácil como rasgar um pão, e não sangrou.
— Vamos ficar aqui por dois dias — falara barão Ereken, sem as roupas grossas contra o frio e desembainhando sua espada longa. Não teve tempo para trocá-la com a do duque: era a espada que usava desde que virou seu vassalo, uma de lâmina longa e guarda-mão em formato de meia-lua. — O melhor jeito de se acostumarem com o ar é respirando. Venham contra mim!
O conde somente lufou pelo nariz e observou. Conseguia ver detrás da névoa a Fortaleza-Montanha visível como uma enorme seta negra e escura estirada como se para rasgar a garganta de um gigante.
Quando partiram de viagem, um deles sugeriu que era hora de cavalgarem sem parar. Estavam tão próximos quanto o fogo e um morto. Saíram em um dia cálido e escuro, mas ao cair da noite todos viram uma larga ponte unindo a montanha onde estavam com a fortaleza.
Preservada em totalidade pela neve. Ereken surpreendeu-se com ela e a contemplou: seguia perfeitamente reta da montanha Hérfya à montanha Rhwya, feita de algum material ancião mais branco do que mármore, que não emitia barulho ao ser pisoteada e lhe dava uma sensação estranha quando tocava.
“Reconheço isso de algum lugar… mas de onde?”
Quis descer do cavalo e arrancar alguma lasca da ponte para levá-la ao cile, ou talvez à Hydele. Agarrou seu peito e meneou a cabeça. “Foi a minha decisão. Rápida, impulsiva, mas minha. Devo colher as consequências disso.”
Decidiu desistir de imaginar o material e apenas contemplou o espaço. Mais de um quilômetro de ponte alta, com espaço para quatro carruagens passarem lado a lado, balaustrada e branca sobre um vale congelado onde nem água passava. Nem calor. Estava tão frio que maior parte dos homens tinha dificuldade de respirar.
“Coletes e capas não adiantam mais.”
Mas do outro lado estava ela, a Fortaleza-Montanha. “Casa”, ele pensou. O topo da montanha onde ela jazia era uma inclinação fácil de andar até para uma criança, e era larga o suficiente para erguer uma pequena vila, com casas confortáveis. Invés disso, era um visionário de guerra. “Estamos em guerra”, lembrou-se. “Ela só não foi declarada…’
‘Espero que não seja.”
Os portões duplos da frente eram largos paredões, grandes o suficiente para passar quatro carroças lado a lado, feitos de rocha escura e irregular como carvão, mas com partes brancas que como a ponte. Uma rocha que parecia devorar a luz do céu e, junto da névoa, até os olhos de quem tentava ver seu topo.
Pilares de metal e madeira envernizada estavam escuros, cobertos de neve e com até estalactites pontudas e longas. Ao lado das pilastras e do portão, uma grande muralha altiva, negra como se à noite tivesse roubado suas cores, e cercava quase todo seu horizonte.
“Talvez houvesse flâmulas aqui”, ele pensou “, todavia não adiantaria de muito. Duvido que os olhos de alguém normal conseguiriam vê-las.”
Acima dos olhos havia ela, acima dela somente o céu. De onde estavam mal era possível ver as ameias das primeiras torres. Não era a construção mais alta que Ereken já vira, todavia era a única que parecia ser formada por várias fortalezas juntas, como se milênios de guerra e vigília tivessem as juntado, amontoadas como corpos.
Ereken rapidamente ergueu a flâmula da Casa Beesh, que carregava consigo desde que saiu do castelo: o Olho que Chora branco em um fundo azul-ânil, e o vento forte e gélido que os atingiu a fez flamular como fogo em palha.
— Barão. Conde! Fomos informados de vocês! — trinou um soldado, um homem de quarenta anos cuja barba estava coberta de neve; seus dentes tremiam. — Abraaaaaaaaaaaaaaam!
De imediato ouviram uivos do vento “quente” saindo da Fortaleza-Montanha. Era ainda maior por dentro! Como por quase toda viagem, conde Siward tomou dianteira. Suspirou cansado, como somente a idade avançada poderia permitir, e entregou seu palafrém a um cuidador, então seu séquito fez o mesmo o seguiu.
Algo nessa fortaleza fazia as pontas dos lábios de Ereken subirem. Por dentro era ainda mais escura: talvez a mesma rocha escura, ainda que iluminada por um archote ou outro. “É quase como se não tivessem erigido-a, mas esculpido-a da pedra”, refletiu Ereken. Qual seria a mão capaz de entalhar uma montanha? Uma coisa antiga, uma fera lendária? Foi então que reparou que algo assim não seria tão irreal e distante.
Havia marcas de garras longas por todas as torres e ameias que conseguia olhar. Na torre mais próxima, destroços de tijolos estavam espalhados pelo chão, cobertos por pouca neve; mas marcas fundas de garras — dois para frente, uma para o lado, segurando como um anzol profundo.
O barbacã da muralha estava pior, com quebradiços nas ameias e outras esmagadas. Meneou a cabeça para ver se outros lhe olhavam, fez seus horizontes ficarem mais coloridos e detalhados.
As torres mais altas estavam arranhadas como um travesseiro deixado ao chão numa casa com dezenas de gatos.
— O que está fazendo olhando para isso? — bradou o guia barbudo. — Esse lugar tá podre tem mais tempo caindo do que eu tô vivo!
Haviam quatro escadarias em espiral para as torres do primeiro pátio. Foram pela do noroeste para chegar às ameias, e então, após mais alguns minutos de caminhada, chegaram a uma torre abobadada, tingida de vermelho e com o brasão azul de um leão-nadador cosido a uma flâmula hirta, congelada.
Um vento quente — ainda frio, mas quente o suficiente para que lembrassem não estarem em nenhum inferno congelado — os atingiu: duas lareiras acesas brasavam ao redor de uma longa mesa de rochas polidas sobre o assoalho de tijolos escuros, onde estava sentado Ceire Joran Cyreck, trajado na longa túnica malhada e aspergida de Ceire, vistosa com o Símbolo de Funci, o Grilhão, e uma jovem mulher, em pé no postigo da janela e de braços cruzados.
— Já disse para descer sair dessa fortaleza, criança.
— Já disse que faço o que quero, velhote! — bravejou ela, com uma voz infantil demais para o lugar onde pisava e a expressão de ira. Um preto… azulado caía de sua cabeça, amarrados em uma faixa azul clara, enleada em cinza com um símbolo que Ereken não conhecia, parecendo com uma boca cheia de dentes. Seus ombros estavam cobertos por uma pelagem grossa, e usava botas longas que chegavam até os joelhos, com detalhes que não lembravam o barão de nenhum lugar que já viu em Wouleviel. — Perdi meu marido, minha única chance de viver como gente por esse lado, por causa deste lugar maldito e só saio daqui quando arranjar um novo…
— Não arranjará marido aqui, criança — continuou o Ceire, meneando a cabeça com uma mão cobrindo os olhos. Sutilmente, se virou para a hoste.
— Ceire — saudou o conde, e em seguida o resto dos homens do duque.
— Conde Siward — saudou o Ceire, projetando uma saudação religiosa de sua ordem.
A jovem saltou para o chão, de braços cruzados e olhar de águia para os que entraram, esquadrinhando-os, até que parou no barão como se fosse uma presa.
— Enfim um bonitão! — ela rugiu, jogando os cotovelos para trás. Ereken sentiu-se constrangido. — Ei, você, macho alto! Qual seu nome?
— Isso não condiz ao momento, criança — interrompeu Ceire Cyreck, agarrando a cabeça da jovem como se fosse uma pedra. — Há quantos anos, meu amigo.
— Há quanto tempo digo eu, amigo — respondeu o conde Siward, apertando a mão armadurada com uma manopla. — Como vai o irmão?
— Não o vejo há mais de dez anos — respondeu, com tristeza na voz e nos olhos azuis enfraquecidos pela idade. — Fez parte do meu juramento aos Deuses desistir dos meus laços de família. Peço que não me faça este tipo de pergunta, meu velho amigo.
Ceire Joran Cyreck não tinha altura a seu favor, todavia usar uma armadura de metal em um lugar tão frio era digno de admiração. Sua barba bem cortada agrisalhava o resto do rosto, que não parecia ter envelhecido tanto: como um homem ainda na casa dos trinta, com poucas rugas e queixo imponente. Os amigos fizeram um abraço de punhos.
— Barão, amigos, este é Ceire Joran Cyreck, um amigo de longa data. Combatemos muitas batalhas juntos durante nossa juventude, e há décadas virou o comandante desta fortaleza — voltou o rosto para o Ceire. — Como já deves saber, viemos ao comando de Sua Majestade e do conde Beesh. O que houveres de ordenar, faremos.
— Ótimo, ótimo… — falou o Ceire. Ele afastou-se de todos, ainda segurando a jovem pela cabeça (por mais que ela ficasse gritando e socando sua barriga) e passou a visualizar os papéis em sua mesa, segurados por uma espada cuja guarda mão era uma estrela de quinze pontas. Ele a soltou, e a garota ocultou o rosto corado de vergonha e humilhação com um sorriso sério e arrogante. — A verdade é que temos muito trabalho a fazer, ao mesmo tempo que não há nada. A Fortaleza-Montanha não é um campo de guerra para se lutar todo dia. Aqui o vento sussurra como se fosse um diabo, pássaro nenhum chega para entregar cartas e nosso único dever é esperar até o inimigo chegar ou enviar mensageiros. Não poderemos sair daqui senão sem permissão, e a comida congela assim que sai do fogo. Seu suor vai congelar e seu único jeito de não congelar é se movendo, balançando aço até os braços caírem. A — voltou o olhar para os jovens, com olhos julgadores e pesados — mulher mais próxima está em algum vilarejo a só os Deuses sabem quando, e se não tomarem cuidado, seus membros viris congelarão, assim como seus dedos, orelhas e olhos.
— E essa ao seu lado? — falou um dos homens da hoste de Ereken, apontando e sorrindo.
— Se tocarem em Thirtu, corto-lhes a cabeça.
“O problema mais velho numa guerra”, aprazou-se Ereken. Não era um problema que chegou a conhecer, mas os outros sim. Fome, frio, calor, falta de mantimentos e equipamentos de qualidade… Nem sua habilidade era capaz de garantir coisas fáceis quando suas ordens eram de ficar. “Mas um Ceire não deveria ser casto?”
A garota virou o rosto, fitando Ereken de soslaio. O Ceire jogou um galho seco na lareira, então fitou o fogo.
— Algum de vocês já matou um homem?
Os mais jovens se debateram por um instante, mas antes que levantassem a mão ou a voz, ele continuou:
— Muito bem, vão todos para os observatórios. Ficam nas torres ao oeste. Os outros… vejamos… Sim, mais homens para vigia. Imagino que saibam usar arcos. Dispensados! — Virou-se, e deu uma olhadela que fez Ereken quase sentir o braço esquerdo, conforme calafrios instintivos e respeito espalhavam-se pelo seu corpo. — A carta enviada pelo conde afirmou que tu eras um excelentíssimo mestre de armas antes de servir diretamente Sua Graça como homem de armas. Confirmas isso?
— Sim, senhor!
O peito de Ereken acelerou.
— Muito bem. Vocês não serão os únicos a chegarem nessa semana. Estamos cheios de crianças!
— As ensinarei no melhor que posso, senhor!
— Ótimo… Ótimo… Veremos quanto tempo esta fortaleza aguenta.
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