Capítulo 27: A corte das donzelas (1)
“Bert era assombrosamente bom em lutar sobre cavalos. Descobriu isso muito cedo, e uma festividade de solstício antes do primogênito de Theolor Beesh morrer aos olhos do pai. Em uma liça, derrotou Rheider Beesh e, não obstante, o derrotou no chão também.
Desde aquela época, já demonstrava ter um… aspecto anormal.”
Izandi, a Oniromante

Ainda que a poucas horas da chegada, conseguiriam ouvir a torrente poderosa do Canal das Flores e o impacto da água com a Barragem. Todavia, o Canal estava parado, calmo. De cima dos últimos momentos de elevação leste do Vale, as águas estavam álgidas, embranquecidas como cristais e paradas feito pedras soterradas.
Haviam chegado no Vale, ao condado dos Lennarsen ao final da tarde, e Bert mal conseguia raciocinar com o quão grande o Castelo das Garças era grande. “Afinal, era tão enorme que suas muralhas derrubadas viraram uma estrada inteira… O cacete! Isso deveria ser história para criança dormir!”
Conseguia contar seis pares de torres de vigia, feitas pontudas como lanças, do lado de fora das muralhas, e entortando seu pescoço, o triplo existia no Castelo das Garças! “O maior castelo do reino, na maior cidade do reino…” Bert nunca tinha viajado até o Vale; já passara próximo, pelo Ode dos Pássaros, mas sempre tomou caminho em direção da Colina dos Pessegueiros. Nunca tinha visto ela com olhos adultos.
O castelo teria de ser grande. Afinal, antes de castelo, fora a arma que empalara um dragão-real que cobria as nuvens do céu.
O Canal das Flores abrira um buraco entre montanhas como um machado partia uma árvore, onde o Planalto Cinzento se desfizera singelamente como um talude à direita. Uma distante planície existia detrás do rio, que serpenteava há mais tempo do que saberia contar, mas à esquerda, debaixo das muralhas, centenas de árvores haviam se emaranhado e criado alguma espécie de elevação assustadora, e, mesmo sendo madeira, sustentava a fronte das muralhas como se fosse chão. Ainda se recordava de quando o viu pela primeira vez.
As últimas forças de Better Bloemennen cercavam o Vale e quase extirparam os Lennarsen; o futuro conde Howard Lennarsen e sua esposa, Maena, foram deixados vivos por mera razão de terem se escondido bem no bosque do castelo. A batalha fugiu para onde uma ruiva gestante, um castanho jovem e um Bert raivoso e garoto, e no meio de uma batalha, o castanho derrubou um cavaleiro e pouco depois foi chamado de herói.
Todavia, à frente de Bert e do cortejo real residia uma colina muito mais alta, que se desbotava irregularmente como picos da Cordilheira, uma parede de rocha esculpida por um pedreiro gigante e cego. Aos olhos cinzas de Bert, deveria despencar. Invés disso, muralhas negras cercavam todo a cidade do mundo afora.
Foram bem recebidos pelas bandeiras da Garça Negra dos Lennarssen, do Olho que Chora dos Beesh e o Pavão Coroado dos Bloemennen, pendurados sobre as muralhas e nas armaduras de um séquito de cem cavaleiros muito bem preparados, além do próprio Conde Lennarsen.
E assim o séquito fez. Entraram no castelo ao som de trombetas glamorosas, e tiveram um jantar cheio de… alguma coisa. Vou procurar Jeanne. Não a vi e não a vejo. Espero que eu a encontre antes de você, Bert, lhe dissera Rheider. Parecera-lhe um bom aviso, mas ignorou. Não tinha nada a ter com uma garota sardenta que lhe apontou uma espada, muito menos a noiva de um amigo.
Encontrou um servo levando costelas de veado no caminho, e antes mesmo de terminar de comer, encontrou um servindo vinho. “Deveria buscar mais educação”, pensou. “Mas ainda não aceitei o pedido do rei, então se dane.” Pouco vagueou pelo chão ladrilhado dos Lennarssen. Sentira vontade de explorar os lugares importantes. Conhecer a Espada, o Calabouço, quem sabe até a sala onde os ossos de Eszes, o Empalado.
Perguntou a saída para um servo, e assim que lhe fora indicada, balançou a cabeça, sorriu e seguiu o caminho, que deu para uma escadaria profunda, rodeada de uma alta janela de vidro. Havia um bosque ladeando o lado direito do castelo. Enquanto desceu a escada, ouviu latidos de cães e observou cavalariços levando os cavalos assustados para os estábulos.
Ao longe, barcos a remo repousavam num porto ao horizonte, quase invisível, mas visível era a cidade preenchida de pessoas e de neve. Os portos da Cidade de Ferro eram um lugar quase mágico, se lembrava bem. Ah, se lembrava. Encontrara o melhor dos charlatões lá, rodeado de rameiras baratas e tabaco.
“E pra lá eu vou!”, pensou. Mas não prestou atenção o suficiente no caminho. Assim que pôs os pés em chão sólido, reparou uma terra fofa e mal pisada. Pinheiros altos meandravam há poucos metros de distância. Sumagreiras tortuosas e azevinhos escuros esbanjavam o cheiro dos troncos congelados, no entanto, percebeu árvores que não conhecia.
Uma estranha árvore de tronco branco tinha galhos como fios ao vento, balançando em idas e vindas, e mantinha folhas e flores mesmo no inverno, folhas escuras que se misturavam como se fossem parte da noite e flores vermelhas que pareciam saltar dos galhos, caindo como se cansadas.
— Senhor Zwaarkind! — chamara uma voz feminina que ouriçou os pelos da nuca de Bert. Princesa Silale vinha à passos vagarosos pela direita, seu longo vestido alvo quase zurzindo na neve com seus curtos passos. Um manto cobria-lhe as costas, e um toucado sem véu, amarrado ao pescoço, refletia a luz da Lua Branca em sua região metálica. Assim que Bert tirou da boca o osso de porco, Silale cobriu a boca e deu uma risada muda. — Pensava que estarias no banquete.
— O salão é fechado demais para mim — mentiu. Pouco atrás dela, dois cavaleiros e Cei Merzt tinham suas botas metálicas chapinhando a neve, e um filhote de husky branco escorava-se carinhosamente nas pernas da princesa, balançando a linguinha. Percebeu que ficou tempo demais sem falar. — O cão e a lua fazem-lhe bem, princesa, mas não esperava que gostasse de cães. — Cruzou os braços.
— Ah! — Abaixou-se, e o cão ergueu o focinho e abanou o rabo. Ela afagou-o entre as orelhas. “Isso não é postura para um filhote de lobo”, disse-se, mas para o cachorro. — Esta menina não é minha. Estou levando-a à sua dona, aliás. Gostaria de me acompanhar, Senhor Zwaarkind? Sua companhia ser-me-ia muito bem-vinda.
— Eu…
— Cei Merzt, Cei Holdyn e Cei Lowan, por favor, deixe-nos a sós — falou ela e sorriu aos cavaleiros. “Os olhos cintilam”, pensou Bert. Estralou os dedos, mas antes que partisse para a outra mão, ela deu longos passos até ele e segurou seu braço. — Esse homem é o campeão de meu real pai. Estarei bem segura.
O Zwaarkind engoliu em seco e corou um pouco. “Campeão.”
Os três cavaleiros entreolharam-se e abaixaram a cabeça antes de ir; já a cadela veio em disparada para a princesa.
— Obrigada por aceitar guardar-me, Bert.
— Você sequer me deu escolha — disse, com a boca mal aberta e voz seca.
— Se dissesses “não” invés de “eu”, então ainda estaria eu com eles — falou, abaixando os ombros e fitando-o por trás deles. — “Sim”. “Não”. Falei bem rápido, não achas?
“Mulher maluca”, disse-se, dando um suspiro chistoso e vendo-a de costas.
— Muito bem. Onde a maldita dona desta cadelinha está? — Tentou erguer o braço, mas a princesa entrelaçou seu magro braço no dele. — É bom que seja um lugar com boa comida — a husky saltou e ficou de pé na sua perna —, e vinho.
— Posso somente garantir uma boa paisagem, hmm-hum — melodiou, apontando com a cabeça para um caminho de terra amarelada e cascalho.
Bert tirou os olhos da grande filhota e deu o primeiro passo. O caminho passava próximo da árvore que não conhecia, e ao ladeá-la, um cheiro ardente cruzou por seu nariz — azedo e ardido, que deixou sua língua seca e nariz ouriçado. Foi uma única fungada, mas já tinha certeza que nunca mais passaria por perto outra da espécie.
Já era o segundo castelo sulista que conhecia por dentro — e também o segundo que possuía um bosque dentro. O dos Lennarsen conseguia ser ainda maior. Pinheiros e lariços rodeavam-se ao lado de toras de carvalhos mortos, retos e sem galhos, mas cheios de casulos de mariposas congeladas; e mariposas vermelhas e douradas voavam singelamente de um lado para o outro.
Um par de borboletas cruzou poucos centímetros à frente dos lábios da princesa, que abriu um largo sorriso ao vê-las subirem no ar, vagueando até um azevinho coberto de trepadeiras escuras e congeladas. Uma espécie de sebe se formava à direita e esquerda dos passos de ambos, composta de galhos altivos e úmidos de neve, que rebrilhava à luz.
Logo o caminho fez uma curva e elevou-se. Bert engoliu em seco ao ver outra das árvores de folhas roxas, e desta vez eram grandes amontoados de dezenas ladeando o caminho curvado para esquerda. A cadela deu passos mais velozes e ultrapassou os dois, sumindo da vista deles.
O espadachim sentiu a garganta fechar antes de sentir o cheiro da árvore.
— Não vou passar por aqui — grasnou. — Nem…
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