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    “Bert era assombrosamente bom em lutar sobre cavalos. Descobriu isso muito cedo, e uma festividade de solstício antes do primogênito de Theolor Beesh morrer aos olhos do pai. Em uma liça, derrotou Rheider Beesh e, não obstante, o derrotou no chão também.

    Desde aquela época, já demonstrava ter um… aspecto anormal.”

    Izandi, a Oniromante

    — Não vou passar por aqui — grasnou. — Nem…

    — Não — interpôs a princesa, olhando-o com um semblante orgulhoso — largarei de você enquanto não devolver a Nira à sua dona, e ela não está longe, meu amigo.

    As sobrancelhas do homem arquearam.

    — Nira, como a Rainha Rubra?

    — Acredito que sim, mas sua delicada dona também tinha uma tia com esse nome.

    Bert encheu os pulmões. Num instante e um gesto, passou sua mão por baixo do joelho da princesa e a outra por baixo das costas. Antes de avermelhar o rosto, ela gritou, e o vento atingiu seu rosto. Seu corpo se prensou no dele, e seu toucado quase fugiu e se misturou ao púrpuro das árvores e nas estranhas estátuas.

    O espadachim bateu o pé direito e inclinou o corpo, então explodiu para a curva, e disparou novamente, seus pés no ar e os braços dela amarrados no seu pescoço. Uma longa clareira baixa, como se escavada. Árvores sem folhas os cercavam por uma vintena de metros à frente, onde todo o relevo se erguia com uma escada de degraus desgastados cobertos por limo escuro.

    Três altos e tronos de pedra talhada e madeira estavam lado à lado, e logo abaixo dos degraus, uma longa mesa oval estava servida com castiçais acesos, velas rosadas, doces e bules. Bert enfim soltou a princesa, que até arfando tentou manter sua graça.

    — AH! Era este o amigo que falou, Vossa Graça? — questionou uma voz risonha. Bert piscou duas vezes para ter certeza do que via: as gêmeas estavam sentadas à mesa. Dyne e Myna. Eram gêmeas idênticas, mas Bert já tinha aprendido como diferenciá-las muito bem.

    E ao prestar uma vênia, Bert reparou a filhota de husky sendo lambida por dois huskys puro-sangue adultos, um negro e uma albina, e uma ninhada de quase vinte cachorrinhos alvinegros esperando-a para brincarem nos pés da moça na ponta da mesa — na mulher.

    Totalmente negra, imaginara o homem, como se engolindo ar. O negrume em fios de sua cabeça era do mais puro azeviche, tão escuro como uma noite em fios, amarrada em duas tranças que ultrapassavam o grande busto. Camadas de negro vinham das botas de cano alto, e negros eram os anéis que ela tinha no dedo. Ainda que a veleteto os fizesse brilhar, os bordados dourados de mariposa mal eram visíveis pelo vestido que a cobria até o pescoço. Seu queixo era longo, pontudo, e ainda mais a palidez de sua tez.

    — Ah, Silale minha amiga, imaginei que nosso conselho seguiria somente entre mulheres — comentou ela, afagando a cabeça de Nira. Sua voz era grave e feminina como a de Jenna. — Ocorreu-me que discutiríamos sobre o conto de Tiel e Nira, mas a presença deste nos fará pensar em planos de conspiração, vejo.

    — Não sou tão belicoso — respondeu Bert, com os pelos do pescoço e os da barba rala ouriçados. “Quem essa aí pensa que é?”

    Silale aproximou-se da mulher e beijou-lhe as bochechas, então sentou ao seu lado.

    — Permita-me apresentá-lo — mirou-o com os rosto. — Este é Bert Zwaarkind, futuro membro da Guarda Real.

    Myna e Dyna deram uma risada quase uniforme. Dessa vez não tinha decote para que Bert as olhasse como um animal, mas a doçura das vozes o deu saudades. A mulher, porém, ergueu as sobrancelhas e fez um sorriso audaz.

    — Zwaarkind? Ah, o bastardo do Herói, Ereken Zwaarkind, o Duas Espadas?

    Bert cerrou os dentes e o punho.

    — Não sou bastardo, sou adotado. — “Minha vida seria bem mais fácil se Ereken fosse capaz de deixar bastardos.” Bateu levemente no peito e deu um passo à frente. — Já a vós não reconheço de nenhuma das sabatinas no ducado, senhorita.

    — Ah! ele não me conhece. — Cobriu a bochecha com a mão. Silale serviu-se com chá, enquanto as gêmeas sussurraram numa língua que Bert não conhecia. A mulher pareceu perceber todas essas coisas. — Agradável estão os ventos de hoje. Muito bem, posso perdoá-la por isso, Vossa Graça minha princesa.

    Princesa Silale fechou os olhos.

    — Vós não sois retentora de rancor.

    Ela bufou suavemente.

    — Se dizes, então não devo ser. Sente-se, Bert Zwaarkind — apontou para uma das cadeiras. Bert cruzou os braços, mas o cadeirão velho e frio era surpreendentemente confortável. Myna sorriu para ele, mostrando o pescoço num menear. — Conheces o Tiel e Nira, suponho?

    — O conto do cavaleiro que sequestrou uma princesa, que passaria a ser chamada de Rainha Rubra, prestes a ser vendida pelo pai afim de cessar uma guerra com os Mynsom e Godwill? — respondeu Bert. Abriu e fechou a boca. — Suponho que não conheço.

    — Ah, que pena — disse a mulher. — Meu objetivo de vida seria conhecer um homem que conheça as Sete Espadas de Nira.

    “Sete Espadas de Nira?” A cadelinha latiu, e a mulher de negro fê-la um afago rápido. “Pensando bem, nenhuma parte do conto diz que ela possuía alguma habilidade com armas, para ser chamada de rainha sangrenta.”

    — Não, eu não conheço — respondeu.

    A mulher o deu um olhar seco. Seus finos lábios ficaram retos como uma espada.

    — Ficaria — parou; a princesa lhe serviu uma xícara cheia de um chá de cheiro doce e cor roxeada — alegre se me contasse.

    — É, nos conte! — pedira Dyna. Myna repousou as mãos sobre a mão da irmã, e Silale as entregou xícaras antes de sentar-se. Não tinha mais suor escorrendo no seu pequeno rosto.

    — Já as contei meio milhão de vezes — respondeu ela, de olhos meio fechados. “Uma adulta que gosta de ser bajulada por garotas muito mais jovens”, disse-se Bert, cruzando as pernas. Já a odiava por completo. “Deveria estar fazendo algo mais útil.”

    — Sabemos que o ama — interpôs Myna.

    A husky albina saltou para o regaço da mulher. Sua coleira tinha o formato de uma mariposa, e cintilava de um jeito doloroso de se olhar.

    — De Tiel e Nira, todos, exceto Bert — riu —, conhecem. Então reis Beesh de Aelen travaram guerra contra os Lievhen de Lean, a primeira de muitas. Porém, Eynald Lievhen tinha sua irmã casada com Hestir Mynson, de onde vive hoje Alelse Mynson, o Imbatível, e os Mynson são eternos amigos dos Godwill. Setenta mil cavaleiros preparados marcharam contra Aelen pelo Sul e trinta mil vieram do centro. Os Beesh viram-se obrigados a recuar do Castelo das Garças de seus leais Lennarsen, onde Eszes foi empalado, mas a princesa Nira Beesh não foi com eles.

    “Havia ela apaixonado-se por Tiel, que era bardo e, escondido, espião dos Godwill, e ele deu-a um bebê no ventre. Ao descobrir que seria pai, Tiel ficara tão feliz que desertara e compôs uma longa balada, mas Udher Beesh enfureceu-se. Nira já possuía um esposo, mas ele nunca a tocou por considerá-la feia, e fazia bastardos todas as noites e sequer sabia da existência deles. E Nira entristeceu-se tanto que sofreu um aborto.

    E vendo sua derrota humilhante, Udher teve seu coração amordaçado por medo.”

    Mariposas haviam surgido pelo céu. Bert sentiu uma pontada no seu coração.

    — Mas eis: o esposo de Nira foi assassinado por uma de suas vítimas. Udher decidiu: casá-la-ia com Hestir, pois ainda não tinha esposa e já estava ficando velho. No entanto, antes de casarem-se, Tiel sequestrou Nira, usando as passagens secretas que usava para espionar! E Udher, vendo que jamais se recuperaria, teve o coração parado de vez. Lindo o amor, não? Pois Tiel e Nira a longe fugiram…

    — Essa parte eu já sei — cortou Bert. — Quero saber das Espadas.

    — Não se interrompe uma contadora de histórias, senhor Bert. Tens mais a ver… com ela do que imagina.

    Bert cerrou os dentes. “Quem ela PENSA que é?”, pensou, cerrando os dentes. A mulher fungou; seus olhos estavam marejados.

    — Ao apressado: Nira e Tiel, Tiel e Nira fugiram para a Cordilheira. Ultrapassá-la-iam para Greatean, onde nada aqui importava. E lá, Nira engravidou de novo, e viu ferro ceifar Tiel. Mas, na Cordilheira, fugiu na tempestade de neve e encontrou uma cripta. Velha, antiga e decrepita, e lá repousavam coisas antigas… Espadas ao seu favor.

    Ela soltou a xícara e saltou de supetão, com um sorriso deleitoso na sua pele feita leite.

    — Meu Rheid!

    — Jeanny!

    “Jeanny?’

    ‘Ela é aquela garota sardenta?!”

    Bert fitou-a por trás do ombro. Rheider era alto, mas… Jeanny era tão mais alta que o rosto do Beesh ficara enterrado no torso da mulher no abraço.

    Subitamente, a princesa cobriu seu horizonte, abaixou-se até ficar na altura do rosto de Bert e disse:

    — Não gosto da ceifa, Bert. Nem de ferro. Posso te armar agora?

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