Índice de Capítulo

    “Como já lhes disse, a Casa Godwill foi a primeira a ter em mãos o poder dos dragões-reais. Mas havia um poder que tinham desde sempre, desde antes de virarem reis: o poder de chamar atenção.”

    Izandi, a Oniromante


    — Já estou acordado — avisou o id Baene. Na verdade, mal tinha dormido. O Cei que lhe acordou era um homem cobertado por uma armadura esmaltada, com pele visível somente na viseira, e era só isso que conseguia dizer.

    Rei Rikard Godwill prometa que teria somente os melhores protegendo seu irmão e esposa, e até agora estava satisfeito. Não faziam barulho andando e pareciam saber cada palavra que era dita entre as paredes do Palácio.

    Ofina dormia pesadamente na cama de plumas, com um meio sorriso no rosto e a barriga cada vez maior. Não era o tipo de mulher que acordava cedo; ele também amava isso nela. A pergunta certa seria: o que não amava nela? “E é por este amor que farei o que deve ser feito.” As decisões já haviam sido tomadas. “Sei o que deve ser feito. Me enfiei na vereda do inferno.”

    — Deem-me espaço para me vestir.

    Os dois cavaleiros prestaram uma mesura e saíram do quarto. Ezekel despiu-se de suas sedas e pôs o terno woulevita verde musgo, com um laço de marilã no pescoço. Calçou luvas e botas bem amarradas e penteou os cabelos, com o nó mais viril que conseguia fazer. “Mas não basta.”

    Pôs o anel de sinete da Casa Godwill e, logo em seguida, sobre o ombro e torso, uma longa faixa cor de musgo com o brasão dos Godwill: um Imperfeito sobre a terra verde, um dragão-real voando e uma árvore de sangue.

    — Orgulho do Céu, Sangue das Eras.

    Se levasse Ofina consigo, com certeza teria atenção maior — no entanto, não queria arriscá-la em mais nada. A maneira que Lawwell Goldwey fez sua filha vestir-se para ele foi sinal claro. Apertou o nó laço e fitou a espada, repousando sobre uma mesinha.

    Sua bainha era de couro tingido de branco, com alças negras enleada com botões dourados. O guarda-mão era simples: madeira recheada de metal, entalhada no formato de uma meia-lua à esquerda, mas o lado direito inclinava-se e descia loução até o pomo, protegendo os dedos.

    Ezekel a pegou e cingiu a cintura.

    Os cavaleiros da nova Guarda dos Cinco esperavam-no logo depois da porta para acompanhá-lo, todos com armaduras lustrosas completas — mas desta vez, com todas as ombreiras da cor verde-musgo. Uma das aias da esposa levou ao id Baene uma bandeja com frutas cortadas para seu desjejum, todavia não tinha tempo.

    O único momento em que a Cidade de Diamante inteira estava no mesmo lugar era quando o sol raiava, mesmo no inverno: na praça losangular, fronte ao Palácio dos Cinco.

    Cei Sefriri tomou frente dos outros Guardas e levou-lhe a Coroa dos Acenos, repousando sobre uma almofada de veludo.

    — Quero que vejam minha cicatriz — foi o que respondeu o id Baene, sem hesitação na voz. — Mas mantenha-a perto de mim.

    Ela meneou a cabeça e prestou uma vênia profunda.

    — Está bem mais calmo, Vossa Graça — ela respondeu, se ajoelhando, e os outros cavaleiros fizeram o mesmo, um gesto como se dessem à Cei o papel de comandante.

    Deu o sibilo de um sorriso e estendeu a mão.

    — Conto convosco, Ceis.

    Todos eles bateram no peito em uníssono.

    Cei Sefriri e Cei Hunter seguiram Ezekel enquanto os outros três ficaram para guardar o Palácio e Ofina. Pouca sujeira ainda restava no Palácio senão as rachaduras e queimaduras causadas por Natharel e objetos derrubados pelo terremoto ocorrido à noite passada. Eram grandes, ameaçadoras, como se um dragão-real tivesse brigado com outro dentro de um lugar apertado. Ezekel tinha medo delas.

    Passou pelo corredor onde matara pela primeira vez. Seu estômago revirava; ainda se lembrava de como o homem empalideceu ao choque da lâmina voando.

    Os frontões do palácio pareciam tão distantes…

    Logo foram abertos por meia centena de escudiamantes, cujos elmos e lanças de douradas fletiam o fraco sol e escudos azuis-claros pareciam o céu de inverno, cinza. E puseram-se em marcha. Ezekel recusou cavalos e recusou a liteira. Com uma olhadela, encarou o Ninho do Dragão. “Conto contigo, Natharel.”

    Sob a colina do palácio, uma longa praça esbranquiçada era enchida por gente a cada segundo. Fora feita sobre grandes tijolos brancos no formato de uma estrela de quinze pontas, onde a última ponta escalava como uma estrada para a residência do id Baene, o Palácio dos Cinco, de onde o destino da Cidade de Diamante e de todos os Cinco Reinos costumeiramente mudava.

    A carta de convocação do rei de Aavier chegara na sua residência no mesmo dia que retornou do seu encontro com os Goldwey. Os Conselhos aconteciam de costume na Cidade de Diamante: no Ninho do Dragão havia uma sala construída em pedra e rocha, arejada o suficiente para que não sentissem o fedor das fezes dos dragões-reais e com espaço o suficiente para decisões importantes serem tomadas. O rei de Aarvier dessa vez mudou o destino para Mão da Queda, a antiga Haleval e cidade mais velha do reino dos Bloemennen.

    “Rikard contou-me que Sua Majestade estava próximo da morte. A mesma doença que levou sua rainha…”

    Resvalou o rosto gentilmente. O povo da cidade se aglomerava pouco a pouco, mas quando o primeiro padeiro gritou, as ruas se encheram como um alagamento desorganizado. “Garantir seu pão, hã”, refletiu o id Baene. Ergueu suas costas, e esperou.

    Mais uma centena de escudiamantes saíram do Palácio, com uma grande barulheira no trotar dos seus cavalos. Ainda assim, sabia que não chamaria a atenção do povo assim. Queria algo para se ajoelhar, algo tão forte quanto o sino do quimtel…

    Como o rugido de um lendário dragão verdadeiro.

    “Que bom que Rikard deixara Artreni aqui.”

    Um piar estridente foi ouvido por todos, com força para calar os céus e a multidão. Todos fitaram o Ninho-do-Dragão, de onde um vulto branco disparou e atravessou o céu como uma felcha. A dragão-real disparou-se pelo céu, rugindo como o trinar de um pássaro raivoso enquanto rasgava as nuvens em direção ao palácio.

    De súbito, ela reduziu sua altura, e o mexer de suas asas causou caos; Ezekel Godwill sentiu seus pelos ouriçarem e o sangue ferver. Uma onda de vento causada por suas asas grandes e afiadas bagunçou os cabelos de todos que não os cobriam, revirou a água do riacho descendente e fez flocos de neve e pão voarem; citadinos gritarem de medo.

    Quase fugiram.

    — Povo! — gritara Natharel, com sua voz potencializada pela artificiaria de Ocas Ciled presa à gorjeira de sua roupa de Draconeiro. — Eis que vosso governante, Sua Graça, o id Baene, veio trazer notícias! Vinde e escutai!

    Artreni piou mais uma vez, todavia seu rosto escamoso e branco não tinha um semblante de ira e terror de uma fera. Era régia, coroada de plumas douradas na sua nuca. Chamativa. A beleza que dera seu nome, e seu rugido esquentou o lugar. Ainda assim, o id Baene esperou: em poucos segundos, mais centenas de pessoas chegaram.

    Nobres da Cidade vieram em seus cavalos, bandidos se esconderam, mendigos pararam de pedir e vieram aos montes, fitando Ezekel com um semblante alegre. O povo se organizou ao redor da dragão-real, que estava sentada, enovelada com as plumas alvas e douradas de asas, com o peitoral erguido cheio de orgulho, como se dissesse “vejam-me!”.

    Mas se amontoavam num misto de admiração, curiosidade e medo. Artreni era uma dragão-real… Quantas vezes um citadino — um plebeu — veria uma dragão-real tão de perto?

    Era enorme, e seu pouso fora tão forte que os ventos de suas asas esfriaram os pães frescos.

    Foi quando a praça e as ruas ao redor estavam tão cheias que era difícil vê-las que ele decidiu sair da colina. Artreni virou o pescoço esguio em direção de Ezekel, então moveu sua esguia e extensa cauda, branca e dourada, para servir de escada. A primeira vez que subiria em um dragão-real… “Agora poderei me chamar de Godwill… Acalma-te, Ezekel!”

    Da ponta da cauda à cabeça larga, Artreni tinha quase quatro metros; sentada e dos pés à cabeça, acertava exatos dois. Seu corpo não era cilíndrico, como de muitos dos outros dragões-reais que Ezekel vira os ossos em Ocas Ciled e em pinturas na Mata dos Grilos; mais parecia uma ampulheta; o título de Chamativa não era à toa.

    Uma súbita sensação eletrizante atingiu Ezekel; sua barriga tremeu e seus pelos ficaram de pé como se puxados. Quantas vezes esteve tão alto, com tantas pessoas lhe observando com atenção?

    Respirou fundo. “Faça o que tem que ser feito! Por Ofina, seus filhos e irmãos!”

    — V.. Vir ered duharazhi! Meu povo! — emanou e deixou sua voz ser emanada, ecoando na vastidão da praça e pessoas; os olhares chegaram. Sentiu a garganta coçar. Quantas vezes gritou tão alto? Subitamente estava escuro, frio. Frio! Seus olhos estavam turvos, distantes. Havia muitas pessoas.

    Regras dos Comentários:

    • ‣ Seja respeitoso e gentil com os outros leitores.
    • ‣ Evite spoilers do capítulo ou da história.
    • ‣ Comentários ofensivos serão removidos.
    AVALIE ESTE CONTEÚDO
    Avaliação: 100% (3 votos)

    Nota