Capítulo 28: Prece e palavra (2)
“Como já lhes disse, a Casa Godwill foi a primeira a ter em mãos o poder dos dragões-reais. Mas havia um poder que tinham desde sempre, desde antes de virarem reis: o poder de chamar atenção.”
Izandi, a Oniromante

“Acalme-se!”, gritou-se! Seu coração doía! Era como se uma artéria tivesse se rompido e seu sangue vazasse como suor congelante — em pleno inverno! As costas dos seus olhos ficaram pesadas, frias e seu coração doía! “Já falou a primeira frase! Continue!” Quanto significado seria perdido?! Ezekel enfraqueceu-se e agarrou os cotovelos. Os olhos alheios não haviam o abandonado!
Notou o brasão de alguma árvore dourada, um de uma espada em chamas… notou os mendigos se aglomerando enquanto tudo ficava mais escuro.
— Hahhh! — arfou, afundado numa sensação que seus olhos saíam junto de sua voz. Afogado, estava sendo esmagado pelo peso da pata que ele próprio…
— O que está acontecendo com ele?
— Está pálido!
Ezekel tremeu. A cabeça de Artreni era tão curta assim? Desequilibrava-se…
— Alguém o envenenou!
— Alguém o salve!
— Salve nosso bom id Baene!
— Alguém tire ele dali!
— Arranjem remédio!
“Hã?”
— Salvem nosso bom senhor!
“Hã?!’
‘Bom senhor?!”
Tão brusco quando o voo de um inseto num dia chuvoso, Ezekel voltara a si. Fez que não. Cobriu os olhos com a mão. Concentrou-se no exercício ensinado pela velha ama de leite. “Minha timidez a trouxe”, pensou. “Não me condenará uma segunda vez. Não”, e olhou para a multidão, assustada e admirada com Artreni, assustada e admirada por cem escudiamantes treinados… Então Natharel tocou no seu braço. Seu sangue fervilhou numa onda de certeza.
— Não podes fraquejar naquilo que você propôs, meu irmão — afirmou ele, com a voz aveludada que confundia seu sexo, mas oprimia todas as outras dúvidas como um carrasco. — O terremoto caiu como uma luva. Não perca a chance.
O Draconeiro habilmente desmontou a gorjeira metálica e vestiu-a em Ezekel, no id Baene. “Fui eu quem me condenou.” Esquadrinhou rapidamente a multidão. Identificou o garoto banqueiro, lordes vassalos de sua Casa acompanhados de bajuladores; nobres que existiam praticamente só dentro da Cidade, estudantes de Ocas Ciled, rameiras, órfãos, meia dezena de vagabundos roubando carteiras…
Limpou a garganta.
— Meu povo, citadinos dos Cinco Reinos, de Wouleviel! — chamou e parou por um segundo, admirado poder da artificiaria. “Os ciles de Ocas Ciled são aliados de apreço impagável.” Sentia-se amarrado, acorrentado; quase não se mexia senão pela boca. — Eu não sou daqui — falou secamente. O silêncio de antes sumiu no mesmo momento, mas a gorjeira ainda era poderosa. — Não fui criado aqui, não cresci aqui. Fui erigido sobre os montes e muralhas verdes, longe daqui. Uma terra verde e pouco movimentada senão pelo estrídulo de grilos…
Limpou a garganta mais uma vez. A praça rapidamente fora tomada pelo silêncio outra vez, e o sol, pela primeira vez em invernos, não fora sujo por nuvens carreadas — viram sua feição de medo controlado com clareza. “Lembre-se do que falar, Ezekel!”, pensou, e notou os estudiosos de faixa laranja à azul, com diversos entalhes.
Vira bajuladores, dos que iam a Sala do Debate toda manhã possível, prometendo-lhe uma estadia pacífica e gozosa quando seu ordenato acabasse… Notou os olhos do menino banqueiro, tão experientes, que penetravam sua alma mesmo com uma diferença de anos. “Não há mais volta.”
— Não os conhecia e não sabia de suas dificuldades. Eu fui egoísta! — estreitou os olhos. — Odiei cada momento quando soube que viria aqui: que haviam me escolhido… E, no entanto, vós me acolhestes. Jogaram flores e seus grãos como graças a mim, minha esposa e meus vindouros filhos… em pleno final de outono. Por quanto pagam pelo pão que não puderam fazer graças às boas-vindas? Sacrificaram mais do seu suor do que deveriam. E, no entanto, há vivacidade nos seus olhos. Felicidade!
Olhou de soslaio. Havia um quê de orgulho no sorriso do Draconeiro. Havia um quê de comoção nas poucas faces que conseguia enxergar com clareza.
— Estamos no meio do inverno, rumados para seu fim, um terremoto abala nossas casas e, ainda assim — parou para respirar — há felicidade em vossas faces! Estarei convosco por somente dez anos, mas sinto que não poderia mais sair daqui… Ou é o que gostaria de pensar.
Súbito, Artreni clicou a língua e bateu os dentes do focinho parecido com o bico de uma ave, esboçando uma ira orgulhosa na sua face escamosa e achatada.
— Uma hansa de homicidas, versados na arte da faca, invadiu o Palácio dos Cinco e tomou a vida de meus cavaleiros e servos. Isso aconteceu há dias. Escondi isso de vocês, peço perdão. Sei que perderam vinte e um irmãos, irmãs, esposas e esposos, e sei que pedi para que sofressem calados! — continuou, cabisbaixo. — Mataram seus irmãos, esposas, maridos… Aproveitaram-se da ira de Morahte e os passaram à vil e fria faca!
Ouviu uma criança chorar. Entre o silêncio e sua voz, ouviu mais um choro. Ouviu lamentos, baixos como uma reza de véspera aos Quinze.
Ao lado do menino banqueiro, Aretes de Kaios, filho de Faio, um homem vestido à moda citadina, porém de aparência estrangeira — a mesma pele amorenada e oleosamente brilhante, cabelos cacheados mal cortados — tomou fronte e saiu da multidão, levantando a voz:
— Foram os Eztrielizianos, Vossa Graça!?
Natharel empalideceu, mas o sorriso na sua face tomou horizontes claros de vitória. Não era o desejado. Queria causar mais comoção. O povo da Cidade de Diamante não sabia o que era Eztrieliz… Mas sabiam o que eram governantes enlouquecidos, id Baenes sedentos por seu dinheiro, dos seus grãos, animais, mulheres e crianças.
Todavia o tumulto surgiu. Rapazes se enfileiraram detrás dos escudiamantes e de cavaleiros, os estudantes de Ocas Ciled conversavam entre si, os lordes ali balburdiavam e os citadinos rezavam. Rezavam…
— Não — respondeu Ezekel a eles. — Não posso afirmar. Pegamos alguns, porém nada falam, nem perante os Símbolos dos Quinze! Riram e pisaram nos sinais dos Deuses… Por favor, me ajudem. Me ajudem a trazer a justiça dos Deuses a eles!
“E os levar à morte.”
— Haverá um Conselho dos Cinco em plenos direitos de guerra — bradou, erguendo o punho com a espada em mãos, embainhada. — Me encontrarei com os reis de Wouleviel e discutiremos o que fazer com eles… Que caminho prosseguir. Meu povo!
Deu um longo passo, ficando de cabelos ainda mais em pé, como o tronco de uma árvore. Sentia um choque permear seu corpo e ouvia Artreni respirando.
— Preparem-se para guerra, mas, por favor — devolveu a espada ao boldrié —, rezem pela paz.
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