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    “‘Nós, de Aavier, somos os que mais sofremos das invasões de Eztrieliz’, afirmou o então rei Better Bloemennen. ‘Somos sempre nós que nos ferimos primeiro, que sangramos primeiro, que morremos primeiro. Houve alguma vez na história um greanalger inocente morto pelo Império?’

    Se mantivesse esse pensamento em silêncio por ao menos mais dois anos, Wouleviel teria deixado de ser uma ideia e virado um fato consumado: cinco reinos com um rei; um rei de um reino.”

    Izandi, a Oniromante


    — O vento é bom, não acha, Cei Zwaarkind? — sussurrou o príncipe Howan, vendo o sol nascer do topo da muralha do castelo. Coberto por nuvens cinzas cheias de neve, a luz descia lânguida sobre Bernnevir, trajada de branco e com o azul do Canal das Flores. Do barbacã conseguiam ver a cidade inteira de cima, pois o castelo fora erguido no auge de uma colina escarpada ao norte da capital.

    “Gosta de estar aqui quando não está bêbado?”, era o que Bert queria dizer. Segurou-se. Todavia agora tinha a língua de refém. Prestou um juramento à princesa Silale na frente de mais gente do que poderia contar, e nunca gostou de quebrar suas promessas. “Pra começar, nem queria isso.”

    Silale não o deu tempo para dizer sim ou não, e Bert não fez questão de reagir direito. Ela pegara sua mão e o puxou até a entrada do castelo, seguida por Jeanny, Myna e Dyna e Rheider, excessivamente feliz e a sussurros com a noiva abandonadora de sardas. Onde as quatro mulheres pararam, Bert demorou para perceber servos do castelo, senhores recém-chegados dos portos e a figura de Sua Majestade em um solar.

    — Juras proteger os fracos? — perguntou a princesa, e Rheid a entregou sua espada com um sorriso vingativo na face. Bert corou e continuou. Jurou proteger a honra de seu rei, proteger seus senhores e seu povo. Jurou sangrar e morrer por sua princesa, em nome dos deuses que não amava e ancestrais que odiava. “Agora terei de cumprir com essas malditas juras”, pensou.

    E também porque Cei Gherrit estava ao lado do príncipe, com a postura mais ereta que Bert já testemunhara.

    “Esse cara parece uma pilastra.”

    Bert conhecia pouquíssimas pessoas que chegavam próximos da sua altura. Mais altos, conseguia contar em dois dedos: Ereken e Cei Gherrit — e mesmo sendo tão grande, sua armadura era a mais sem graça de toda a Guarda Real. Placas de metal cinza. Não que a de Cei Bert Zwaarkind fosse melhor; até porque não vestia uma armadura.

    “Eu dou conta.”

    — Aliás, Cei Zwaarkind, o que faz aqui? — falou o príncipe, virando a cabeça e soltando a ameia. Cei Gherrit o acompanhou. — Que eu saiba, é o guarda pessoa de minha adorada irmã.

    — Ela ainda tá dormindo.

    O príncipe bateu as palmas.

    — Então é um madrugador…

    Bert o ignorou e virou o rosto. “Eu tinha que avisar ele de alguma coisa, não?” Já tinha se habituado ao novo lar, mais espaçoso e novo — e ao novo trabalho. Proteger uma princesa… “Me deem um cavalo branco!”

    O vento do amanhecer continuou a tateá-los, amainado pelas nuvens. “Vai nevar pesado hoje.”

    — É um grande teste…

    — O quê, How…

    — É Vossa Alteza, Vossa Graça ou sire — cortou e agarrou uma ameia.

    Bert cerrou os dentes, mordendo o lábio; seus punhos cerravam com força para sangrar.

    — Perdão, Vossa Alteza — se virou para onde o príncipe olhava. — O que seria um teste?

    — Tudo — deu um passo à frente e se apoiou entre as ameias. Era baixo para a idade, comparou Bert. O príncipe não chegava ao seu peito, tinha braços magros e cheirava a medo de sangue. — Sinto que recebi um grande amor ao ir no Ducado. De repente, sinto que tudo é um teste, um grande teste que recebi por este amor.

    “Oh, sim, és um enviado dos Quinze!”

    — Sei que está rindo de mim em suas faculdades! — crocitou o príncipe, com o cenho franzido e dentes rangendo de ira. — Acha que estou fazendo alguma piada?! Que sou um pantomineiro sedento por atenção e dois lírios de madeira para comprar uma maçã e saciar a fome?!

    — Jamais, Vossa Alteza.

    — Estou falando sério, Cei Zwaarkind. Muito sério. — Levou a mão à boca, como se fosse bocejar. — Sabia que as gêmeas da Casa Serrenn tinham noivos, cavaleiro?

    “Ah, essa de novo não…”

    — Soube de rumores que alguém invadiu seus aposentos, com ambas fracas pela bebida, e as desvirtuou. Seria trágico se fosse verdade.

    — Espero que não seja, Vossa Alteza — achincalhou Bert, ocultando o tom de voz para um sério. “Aquelas ali se desvirtuaram muito antes de eu chegar, e com muitos.”

    — Pois que bom que não é! — Alegrou-se o príncipe. — Eis mais um teste para mim: livrá-las dessas acusações, pois são amigas de minha irmã desde a infância. Posso contar com sua confiança para isso?

    Bert se ajoelhou; sentia seu cérebro derreter lentamente. “Sinto que enlouquecerei se ficar aqui por mais um dia sequer.”

    — Com certeza, Vossa Alteza.

    Príncipe Howan riu alto e fitou uma nuvem em forma de “U”. Ficou calado por um longo tempo até Bert se levantar.

    — Minha noiva, a senhorita Nianna Beesh, você também tirou a virgindade dela, não?

    Bert cerrou os dentes e apertou suas mãos por dentro da capa. “Esse cara… Eu juro que…”, rugiu internamente. “Controle-se, controle-se…”

    — Claro que não — respondeu após um longo suspiro. — Sou só um cavaleiro, filho adotivo de um recém-barão que nem sabia que herdaria o nome de sua Casa.

    — Não é seu tipo de mulher?

    “Ela ainda não é mulher”, respondeu para si, ignorando que tinha se mostrado a ele e que tinha duas trancinhas; a antiga tradição da nobreza de Aarvier. Observou Bennevir junto com o príncipe, e então pensou em Ereken e em sua fala cavalheiresca.

    — Não sou homem que se equipare a ela — ajoelhou-se —, e agora também sou seu humilde cavaleiro, Vossa Alteza. Seria uma desonra inenarrável.

    Howan o fitou de soslaio, com as mãos detrás das costas.

    — Que ótimo. Que ótimo! — Bateu palmas uma única vez. Ficou calado, como se apreciasse cada gota de água corrente descendo pelo Canal das Flores. — E Hydele, Cei Zwaarkind? Ainda é donzela ou também a desvirtuou?

    Saltou e agarrou o príncipe pelo colarinho, empurrando-o contra a parede do adarve. Cei Gherrit ficou parado. O príncipe tremeu os olhos castanhos e suou frio ao ver os olhos cinzas de Bert ficarem vazios enquanto o braço voava em direção do seu rosto; talhos de rocha se desprenderam da parede com a cotovelada que a acertou. Porém ele apenas arrumou a gola desfeita da camisa de lã.

    — Ouve, Vossa Alteza? O clangor do ferro?

    — …S-s-sim…

    — Significa que os treinos começaram. Sua Majestade ficaria decepcionado se faltasse mais um. Leve isso como um teste… Ah, sim!, era isso o que eu tinha que avisar!

    — S-Sim…

    — Vença seu teste!

    A tarde chegou algumas horas depois. Guardou a princesa, que o dispensou várias vezes — na porta de seu quarto, no salão de almoço e até na porta da biblioteca. Um guarda menor, que olhou para Bert com desprezo, assumiu a guarda; mas a princesa pouco fez senão mandar que o outro também guardasse a porta da biblioteca.

    Os bibliotecários do castelo, porém, a serviam com chá e muita felicidade da face, e por muito pouco conseguiu ver os garranchos que ela desenhava.

    Bert ainda conseguiu visitar a cozinha e matar alguns ratos a pedido de uma bela serva que encontrou, até que fora convocado junto de vários cavaleiros a uma sala a parte; mas fingiu que era noite. Sonhou que estava no Olho que Chora, no pequeno lago perfeitamente redondo que se formava detrás da montanha, de onde a água descia como uma cacheira.

    A água estava quente, sem uma nuvem no céu e os pássaros cantavam, os ventos enchiam o lago com olores e pétalas jasmim, as gramíneas tornavam as beiras travesseiros macios. Sentia o corpo relaxado, e mãos macias desciam pelo seu peito molhado.

    Ela o beijou: ruiva como fogo, de cabelos longos e tranças desfeitas e sedosas dispersadas pela água. Pegou seu membro e o beijou novamente. Crescida, sábia, dos olhos audazes que homens não costumam ter. Era sua mulher ideal, soube disso desde quando tinha doze anos e ela nove.

    Devolveram beijos interruptos e carícias, a derrubou sobre as gramas e introduziu-a em deleite. Ouviu seus gemidos, o filete de sangue escorrendo de sua virgindade e esperou. Iluminou-se nos olhos dela; riram juntos, mancharam-se e cobriram-se de mais prazer. A única mulher por quem fazia questão de se segurar. Esperou tanto por isso…

    Mas agora ela era de outro. Mas agora um segundo beijo surgiu em seu pescoço, e sua dama vermelha desprendia-se do seu corpo para se esconder entre as folhas dos arbustos, e um homem menor e mais fraco a tomava. Outro homem.

    Levantou-se para resgatá-la, porém quando a encontrou entre as folhas, não restava nada senão carcaças sendo devoradas por um lobo branco, de olhos cinzentos e dentes que estavam até fora de sua boca de tão grandes.

    Bert acordou de um sonho horrível.

    Cei Gherrit tocou no seu pescoço. Foi a primeira pessoa a notar que Bert conseguia dormir de olhos abertos e de pé. Fingiu que não dormira, mas estava desconfortável.

    “Que tarde de merda. Até a nanica brincando de boneca é mais interessante.”

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