Capítulo 3: O chamado do Metal (1)
“Ereken era um pai mais do que cuidadoso e, como esgrimista, não era o tipo de pessoa que causava segundos encontros. Amava sua família acima de tudo, disposto a sacrificar tudo de si por eles. Quando o temido dia chegou, fez o que tinha de ser feito sem hesitar…
Nenhum deles nunca soube.”
Izandi, a Oniromante

O negrume das olheiras deixara uma marca sobre a face de Ereken.
Seus sentidos lutaram para acostumar-se à mistura de odores espalhados pelo ar úmido da sala. Prateleiras de ferro enfileiradas tinham vidraças etiquetadas com folhas de cânhamo, cicutas, calêndulas, funchos, as venenosas flores de neve, saliva de alpi, exsudato de espinheiro, flores que nunca vira embebidas em algo fedorento; e mais meia centena de folhas postas para secar próximas de uma pequena lareira. A iluminação fraca quase escondia as leves portas duplas. Deixavam sua respiração pesada.
Saíra de lá poucas vezes, não indo às reuniões de seus sires e deixando seu filho à guarda na porta. Uma vez ou outra, via Willmina saindo da sala ala, com olhos ainda mais pesados e vermelhos que o seu. Mesmo gestante, se recusava a comer. Da ala, ia para a pequena quiesa “escondida” no castro; de lá voltava para rezar de joelhos ao lado da filha.
Depois dos pátios, para realizar sua profissão de Mestre de Armas e de cavaleiro, a ala do medista talvez fosse o lugar que Ereken mais visitava dentro do castelo Beesh, pensava ele. Com certeza era o da esposa.
Bert estava sentado no chão de rocha polida, olhando de soslaio para a janela com olhos pesados quando Ereken chegou, luz pálida e azulada projetando-se sobre eles.
— Filho… — chamou Ereken; o rapaz trajava camisa de lã sob um colete sem mangas, contrastando com os cabelos castanhos hirsutos. O cachecol vermelho, branco e amarelo adornava o pescoço esguio. — Alguma novidade?
— Não, tio — o rapaz se levantou, estralando os dedos e com um olhar de desgosto estampado. — O careca não me disse nada que já não tenha falado antes. — Deu de ombros, balançando a cabeça.
Ereken aproximou-se, querendo sentar ao lado do filho. O rapaz olhou-o com estranheza, mas ignorou e esticou as pernas. Ver Bert assim — desanimado — era tão estranho quanto ver Theolor Beesh, seu duque, desinteressado por espadas e esgrima.
— É culpa minha, tio — afirmou o rapaz, cobrindo o rosto. Ereken notou uma grande espinha no queixo reto, com fiapos de barba a fazer. — Se tivesse voltado, isso não teria acontecido…
O pai bufou uma curta nuvem de vapor. Já ouvira a história do cachecol. Ficou enfurecido ao ponto de ouvir os dentes estralarem, mas já havia passado.
— Está se preocupando sem necessidade — afirmou o pai, pondo a mão sobre o ombro do rapaz, quase tão alto. — Caíram pedaços de teto também em nossa casa, e uma estante na biblioteca caiu e esmagou uma mesa.
Bert deu um sorriso amarelo e estralou os dedos de novo, esfregando as mãos. O outono acabava, os frios ventos do inverno chegavam pela janela, espalhando o cheiro das ervas. Ereken fitou o lugar mais uma vez, lembrando-se de como trazia sua filha para cá em todo verão.
Está fraca, ardendo pior que fogo, lembrou-se das palavras do cile. Aos seis anos, tivera uma febre tão grande que nem sangrias resolveram. Os gritos de choro da esposa e os gemidos silenciosos da filha agarraram seu coração com uma mão de espinhos. Estar presente na ala era espinhoso. “Ninguém vem aqui por boas razões.”
— Além do mais — o rapaz bateu as mãos, parecia completamente revigorado —, não sou eu que faço terremotos. São os gigantes!
“A capacidade dele de limpar a cabeça é exemplar”, riu Ereken. Era seu garoto.
— É, sim. — Por um instante, pareceu ficar mais aliviado. “Mas eles estão mortos há milênios.”
De súbito, o rangido da porta se ouviu quando o velho cile saiu. Ambos detestavam ter que ver o velho e suas roupas que de pele só deixavam o rosto de ovo a vista, sem um único fio de cabelo. A toga branca do medista era justa, de gola e mangas apertadas, sem um único detalhe. Ereken levantou-se de supetão e levou as mãos aos ombros do senhor, que já trabalhava para os Beesh há mais de trinta anos.
O pai já suava, frio como gelo.
— Espere, rapaz. Paciência. — O medista soltou-se, então caminhou para a escrivaninha ao lado da janela, onde jaziam jarros com alguns galhos sem pétalas. Assobiou por um breve instante; com uma folha em cone, retirou um pouco de terra. — Certa vez fiquei curioso — falou — e mandei um pássaro-de-voz para outro cile, professor em Ocas Ciled.
Moveu-se em direção de uma das vidraças. Bert e Ereken encararam o velho volumoso; o segundo, cerrando os dentes.
— Quis calcular a altura do Olho que Chora até a Vila do Rio. Números nunca foram grande dom meu, mas me esforcei — moía uma folha de cânhamo com água e uma coisa doce — e fizemos o cálculo. Deu… hummm… quase seiscentos metros. Suponho que do castelo até a vila, tenha menos da metade disso. Ainda assim, sua filha caiu disso… — O velho cile lembrou-se de receber a menina na calada da madrugada, com todo tipo de problema que não conseguia tratar. — Caiu disso e ficou com nada além de alguns ralados, hematomas e umas pequenas fraturas cá e lá. Melhorará antes do inverno, talvez já consiga andar de novo no seu segundo batismo.
Quando o velho virou-se para os dois, Ereken sentiu seus olhos marejarem. “Maldito seja o verão”, pensou ele. Pela primeira vez em dias, deixou suas costas e peito relaxarem, como se despencasse contra a cama.
— Eu disse que ela ia ficar bem — riu Bert, dando um soquinho no ombro de Ereken.
— Posso ir…
— Não — respondeu o cile, frio como a neve. — Um visitante por vez, não posso deixar mais miasma lá e, a não ser que consiga tirar uma mãe de uma filha doente, não entra.
Ereken subiu as sobrancelhas, mas aceitou aquilo. Sua esposa era suficiente com ela naquele momento… “Mas passa ela mais tempo com nossa mãe do que eu, o pai…” Rapidamente lembrou-se da filha, andando sozinha sem que neve tivesse coberto o horizonte. Era um homem. Tinha deveres para cumprir.
— Os Deuses foram bons com ela — afirmou o cile. — Deram uma terra fofa e uma cama de folhas para amortecer a queda.
Ereken meneou a cabeça e piscou os olhos pesados. Um grande ruído ecoou pela sala quando a porta da ala foi aberta.
— Cei Zwaarkind, o sire lhe chama — disse o servo e fora embora.
Com as roupas que vestia e o odor de suor impregnado, pensou em voltar à torre de visitas para pôr o costumeiro jaquetão laranja e amarelo, no entanto, já era tarde demais. Quase como se estivesse dormindo, suas pernas o levaram em direção da grande sala ao final do corredor central do castelo; as pinturas de todas as gerações dos Beesh, depois de reconstruírem o castelo e deixarem de ser reis, o acompanhavam, todos com os mesmos olhos cheios de regiedade.
“Estou aqui por bondade”, lembrou. Os primeiros dias em Wouleviel foram marcados de doença e sangue. Da bondade de seu sire jamais esqueceria. “Poderíamos estar em ruelas e meandros.”
Abotoou a gola da camisa e entrou.
— Digo-lhe e repito, meu sire: os safardanas são eztrielizianos, não malditos dissidentes! — berrou barão Bijik, sentado nas almofadas de um sofá empoeirado com fragmentos do esmalte do teto. Ereken adentrou a sala silencioso, de modo que apenas Beesh, seu herdeiro e os outros dois fidalgos notaram-no. Continuou Bijik: — Devem ter derrubado as Montanhas Fronteiriças para nos enfraquecer, meu senhor, nunca houve antes tantos terremotos!
— Se podem derrubar montanhas, não há guerra a guerrear — duque Thelor Beesh levantou-se. O sol há pouco nascera, todavia já usava as densas roupas de duque. Bijik fitou Ereken com maus olhos, que já estava acostumado. — Como está a filha?
— Ainda desmaiada — respondeu —, mas o cile afirma que melhorará em breve — suspirou pelo nariz, entrando mais na sala caiada. Salpicos de esmalte e fragmentos de rocha pendiam nas estantes e mesas, nos livros e nos jarros de flores.
— Que bom. Ótimo! — Rheider Beesh bateu as palmas, e Ereken sentou-se junto dele. Recém recebido seu terceiro batismo, o rapaz era quase idêntico ao pai, o mesmo rosto angular e gordo; se tivesse as entradas e uma barba grisalha e maior, o confundiria facilmente com seu duque. — Vou dá-la alguma coisa gostosa quando acordar. Hydele é uma garota resiliente para conseguir ficar tanto tempo com minha irmãzinha — riu.
“Nisso é idêntico ao meu Bert.”
— Não deveria caçoar de sua irmã, meu rapaz! — brigou o duque, com sua voz de trovão cheia de tom desdenhoso e alegre.
— É difícil — bebericou um doce de inverno, também o servindo a Ereken. — Muito difícil não brincar com quem pula da torre de vigia para o chão quando tem neve!
— Hô! — riu barão Sgaan, com sua voz grasnante e rouca lembrando um pato com raiva. — Então, grande Rheider, tem pulado da torre de vigia? Precisamos de neve para amortecer a queda!
— Hã? — O rapaz balançou a cabeça. Demorou para entender, e só então corou de vergonha.
Os outros adultos riram feitos bons amigos em bebedeira. Barão Bijik tomou para si uma taça chanfrada, cortesia do Barão Sgaan, cujas costas refletiam muito sua idade, já Duque Beesh voltou-se para a janela, onde acima pendiam dezenas de espadas. Não havia coisa que amava mais do que espadas, e foi por elas que dera um lar, um sobrenome e um título a Ereken.
— E as provisões para o inverno, meus senhores?
— Em Pé Molhado, temos mais do que suficiente, meu lorde. Nossos paióis estão cheios. Os terremotos não nos afetaram muito, já que não crescem flores do inverno lá — respondeu Bijik, olhando para Sgaan. — Também compramos mais arcos e ferro, direto de Kierlrúm.
“Arcos”, pensou Ereken. “Se lhe ensinasse a usar ao menos arco e flecha, a fortificaria. É minha filha, tenho certeza de que tem uma ótima pontaria.” O inverno chegaria em breve, deixando a menina viva como raramente ficava. Há pouco, já estava assim. Arcos e flechas nunca foram sua especialidade. Precisaria encontrar alguém que lhe ensinasse…
“Ou talvez a dê uma espada.”
— No Moinho, a situação é semelhante, mas estamos mais ao norte — disse Sgaan ao duque. — De todo lugar, chegam a mim boatos de saqueadores. Entram em aldeias, roubam tudo, matam os homens, estupram as mulheres e somem com as criancinhas. Ouvi que os sacrificam para falsos deuses…
— Eztrielizianos não cultuam deuses — sussurrou Ereken, abaixando a cabeça e fitando barão Sgaan.
Theolor cerrou os dentes com tanta força que pareciam rachar. Barão Sgaan afirmou que já enviara seus homens de armas para protegerem as aldeias, caçarem até o último desses bandidos, e só isso pôde fazê-lo acalmar-se. “Os métodos não mudam”, pensou Ereken, apertando o braço do banco com força para quebrá-lo.
De repente o duque socou a mesa, com força para assustar os homens mais velhos ali.
— Dissidentes ou não, bandidos ou sabem os Deuses o quê, não durarão. Saímos no final do inverno. E Saiam todos! Você não, Cei Zwaarkind. Você fica.
Ereken abaixou a cabeça em respeito enquanto os senhores e Rheider Beesh se retiravam do escritório. Logo em seguida, ergueu a cabeça e ficou de pé.
— Sire? — respondeu quando foram embora.
— Como vai a espada, Ereken? Notei que diminuiu os treinos. Se continuar assim, Jenna roubará seu lugar como meu Mestre de Armas.
— Jenna é talentosa — respondeu com um meio sorriso. — Se o fizer, foi por mérito.
“Mérito”, pensou. Era talentosa, de fato. Aprendia sem que lhe fosse ensinado. Quando a combateu pela primeira vez, quando ela era um broto de pessoa e sua pele estava coberta de marcas, cheia de furúnculos, aprendeu sua instância depois de poucas vezes sendo derrubada. “Ela definitivamente o tem.”
— Ainda duvido muito que esse dia chegará, no entanto — continuou —, melhorara muito, mas ainda não me venceu.
Beesh riu abafadamente pela barba espessa e agrisalhada. Gostava de ver a confiança de seu braço direito, que não era nem senhor e nem fidalgo.
— Muito bom saber que meu homem de armas favorito não desconhece a derrota.
Ereken cerrou os dentes. “Já a vi sim.”
Theolor Beesh levantou-se mais uma vez para pegar a bebida quente, então olhou através da janela.
— Mas não é aí que reside o problema, meu bom amigo. Tenho certeza de que ouviu o barão Darden Bijik falar de Eztrieliz.
— …Acha que eles são responsáveis pelos saques nas aldeias?
— Eles sempre são culpados de todo Mal, apesar de que duvido muito desse caso. Fazem isso há mais tempo do que a Casa Beesh serve a Casa Bloemennem. — Bateu os olhos em Ereken e ofereceu o vinho. — Siga-me, meu amigo.
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