Capítulo 3: O chamado do Metal (2)

Do momento em que saíram da sala grande, atravessaram metade do castelo seguidos por um curto séquito de homens de armas até os frontões da entrada, parando no estábulo. Os servos abaixaram a cabeça e cumprimentaram o duque de uma forma que o cavaleiro admirava. “É como se fosse um pai para eles”, pensou. “Não seria diferente para mim?”
Assim que os animais foram preparados, um séquito curto de quatro cavaleiros e o duque desceram a estrada para baixo. Os pedaços que despencaram do chão equivaliam a quase uma carruagem; as beiras pareciam desgastadas com um padrão intricado tão familiar a Ereken que só o gerava desgosto. A natureza tinha levado para baixo gramíneas e rochas, mas pedaços tortos e gastos ainda restavam como se o conteúdo, mas não a casca, tivessem caído.
E ferido sua filha.
— Tenho que resolver isto — disse o duque em alto tom, não esperando respostas.
A Vila do Rio e as copas alaranjadas da floresta desapareciam dos olhos dos cavaleiros conforme desciam o cavalgar. Desciam em um trote controlado, sempre à esquerda para evitar novos deslizes. Um dos cavaleiros assobiava, mas sua boca logo secou ao vento frio.
A Vila ainda estava distante quando chegaram ao solo firme, a Estrada de Tijolos Dourados que levava desde o Ducado, seguia pelos pântanos e altiplanos até o Vale, e de lá para a Cidade de Diamante. Theolor Beesh ergueu o braço e expulsou todos os cavaleiros.
— Estou bem guardado.
Ereken abriu um sorriso silencioso. Retomou as rédeas do alazão castrado e acompanharam um ao outro em silêncio até a vila, onde os guardas abaixaram a cabeça, com o semblante exalando respeito, ao duque. Uma pequena muralha de paliçadas envelhecidas cercaram a pequena plantação de onde brotaria trigo, cujo centro era uma alameda curta de algumas faias e figueiras e lichieiras.
Pequenas casas de madeira escurecida tinham suas chaminés cuspindo fumaça conforme o dia iniciava; o fluxo de pessoas saindo de suas casas aumentava, tal como as casas. Das ruas de terra batida brotavam casas de madeiras mais claras e repousavam urzes e folhas, que ora eram rebatidas juntas do vento para perto e para longe.
Aldeãs varriam as portas enquanto eles passavam, e o Cei observou guardas patrulheiros retornando para suas casas, camponeses levando suas enxadas e foices afiadas para colher os últimos frutos do inverno e pastores levando o gado para pastarem nas proximidades, acompanhados da força do rio.
“É como se os terremotos não tivessem chegado aqui”, pensou Ereken.
— Duque! — falara um homem de barba grisalha, erguendo a mão que não segurava a vara de pescar. Theolor esporeou seu cavalo, que diminuiu a velocidade. “Não conheço este”, pensou o Cei. Respirou o vento frio e pôs seu cavalo para perto do seu mestre, de modo que pudesse intervir em risco de algo. — Aonde vai, meu lorde? Posso ajudar?
— Apenas estou passando, Vinz. — Ereken sentiu um nó na garganta. — Como vai a filha? — questionou o duque, descendo do animal. Logo em seguida, apertou a mão do velho senhor. O Cei também desceu, e sentiu o cansaço abater seus olhos por um instante. Forçar-se a acordar.
— Acabou de sair! Foi junto da filha e de outras moças ao rio, para lavarem roupas e outras coisas de mulher.
— Bem, bem — riu o duque. — É no caminho. Vamos!
Os dois voltaram aos cavalos e seguiram em trote lento. O sopro frio da natureza fazia os olhos de ambos ficarem secos; o cavaleiro sentiu suas mãos soltarem as rédeas, pouco a pouco. Agarrou-as com mais força. Fizeram uma curva ao leste assim que viram a primeira das poucas bifurcações da vila, uma estrada que levava para a região mais alta e curva. Havia rochas e árvores com raízes expostas, exalando cheiros fortes e, alguns, doces como um bom perfume, conforme a floresta voltava a se desenhar nos olhos deles e desapareciam as casas.
— Nunca teve muita gente aqui — falou o duque, olhando para seu castro no meio das montanhas. — Me pergunto o porquê.
Ereken calou um bocejo. Virou a face, então respondeu:
— Minha esposa uma vez disse que havia coisas ruins escondidas entre as faias.
— Ah, sim; diabos, gigantes, dragões, fadas sorrateiras e unicórnios que seduzem e violam donzelas. Contos de cavalaria antiga; contos de heróis de outrora. Hoje em dia restam só mataposas, rubrolinos, serpinas… Não valem de muita explicação para mim.
— Os heróis de hoje lidam bem com essas coisas.
De súbito, o duque parou o cavalo de uma vez só.
— Não há muitos heróis hoje em dia — afirmou com voz rija. — Só homens de armas que viveram demais, e talvez alguns que são amados. Heróis de guerra não são heróis de lenda; e só o que resta são guerras.
Ereken fez seu cavalo dar um passo à frente.
— Você viveu demais e é amado por todos aqui. Vale, Moinho, Hellewin ou na Árvore Vermelha. Todo lugar que fui com o seu nome, fui muito bem recebido, e em seu nome.
Um sorriso se formou no rosto de Theolor, que o cobriu com a mão.
— Maldito. Tomara que um rubrolino apareça e devore suas tripas.
O Cei soltou uma forte e sonora lufada pelo nariz.
O duque tomou uma das rédeas e acertou um fraco golpe no braço do seu cavaleiro. Ambos puseram seus animais para trotar mais uma vez, sentindo o cheiro de terra molhada se espalhar pelo ar frio. A trilha formada por séculos e séculos era pequena, como uma alameda natural e mal cuidada, mas cujas árvores reverberavam o barulho caudaloso do rio formado pela cachoeira do Olho que Chora. Viraram à esquerda na trilha, passando pelos restos do que lembrou Ereken a uma torre coberta de musgos e trepadeiras. Continuaram o trote, e poucas toesas à frente encontraram as mulheres.
— Duque! — falara uma delas, uma mulher de quase cinquenta anos, de cabelos loiros e grisalhos, que carregava uma bacia de roupas na cabeça e de roupas vestia muitas grossas. Havia outras mais jovens, menores e maiores. Ereken contara ao menos doze meninas da idade de Hydele, e pelo menos o triplo de garotas em idade de casar. Talvez metade já quisesse, e provavelmente com Bert. — Que bom vê-lo aqui! Vai às ruínas?
— Primeiro garantirei que ninguém as atrapalhem, minhas boas senhoras e donzelas! Ouviram ou viram alguma coisa?
A resposta foi um agradável “não”. Os dois as guardaram até que o barulho da cachoeira tivesse ficado alto demais. O rio era rápido e implacável, mas, naquele pedaço, sem meandros e ribeiros. Urze e gramíneas sem cor restavam às beiras, sombreadas por carvalhos, bétulas e alguns olmos tortuosos, esperando tristemente a queda da neve que as deixaria mortas e congeladas por quatro meses.
As mulheres andaram até a sombra de uma aveleira suntuosa, que ainda resguardava um pouco do brilho do orvalho, com pesados ramos que entrocavam-se e dispersavam em direção das águas, com os frutos espalhados pelo chão como se marchando para o rio. “É uma boa vista”, pensara o Cei, mas logo sentiu um pouco de amargor. “Minha filha está ferida e estou contemplando um rio.”
Os dois as guardaram por quase uma hora, então o duque bebeu da água do rio e chamou Ereken para partirem.
Marcharam ainda até mais próximo das montanhas, que eram as muralhas do castelo desde sempre. O galopar ficara mais cuidadoso. A pequena trilha deu lugar a folhas aurorrubras caídas de copas pouco densas de olmos e faias, mas pinheiros surgiram às centenas, como se comessem luz — mas restava o suficiente.
O duque diminuiu a velocidade e apertou os olhos, apeando o cavalo com todo cuidado para não errar o caminho ou permitir que o animal atolasse as patas em algum buraco coberto por folhas.
— Cuidado com onde pisa, está escuro.
— Imagino… sire — respondeu Ereken.
Reparam ruínas do que parecia ser um muro, rachado e quebrado, cujos detalhes deram lugar a trepadeiras e cogumelos.
— Creio que nunca te trouxe por aqui, Ereken. — Passou por mais uma rocha arruinada.
— … — Escondeu o bocejo e a visão entontecida. — Não, sire.
— Trazia muito meu filho aqui. Era um dos seus lugares favoritos.
— Rheider, sire?
— Jeihann.
Ereken fechou a boca e abaixou a cabeça, cerrando os dentes enquanto os dedos do arrependimento confuso agarravam o coração. Em poucos minutos de trote, viram mais de uma centena de estruturas como a da muralha: restos de paredes em cantos, em elevações ou pisos.
O Cei vira uma escadaria de rochas quase completa, até que ao longe reparou uma que parecia mais conservada do que as outras. O duque se dirigiu até lá, descendo do cavalo.
Ao sopé da maior aveleira que já viu, notou um pequeno estrado coberto por musgo e urze. Duque Beesh desabotoou seu manto e deixou-o cair, levantando poeira. Abaixou-se e, com os músculos saltando pela camisa. Um rugido ficou preso na garganta; o rosto se avermelhou, então depois de segundos respirando profundamente, disparou o estrado para cima: um odor férrico e pútrido atacou-os da escadaria espiral.
— Estou velho! — arfou. — Não piso aqui desde que minha esposa morreu… — cerrou os dentes, cabisbaixo.
O odor do ferro provocou ideias na mente do cavaleiro: imaginou uma forja antiga, ou um algum salão de tortura. Mas a imagem morrera. “Meu sire não é o tipo de homem que faria isso.” Voltou ao pensamento da forja; uma mãe de dezenas de espadas da época em que os Beesh eram reis e a magia era obra de demônios e diabos. E imaginou que diabos fossem mais calorosos: a escadaria deixava o lugar muito mais frio conforme descia cada degrau.
Não encontrou nenhuma forja, onde anões batiam ferro borbulhante; viu as espadas, milhares delas enfileiradas em bainhas.
Suas paredes eram amontoados de pedra e terra pisoteada, com raízes ramosas e pesadas as atravessando; o piso, rachado como um prato caído, estava infestado de cadáveres de ratos, de gramíneas flácidas e escuras e de cogumelos fedorentos, mas as espadas estavam intactas. Não conseguia notar um sinal de ferrugem sequer.
— Dizem que os Beesh amam mais pedaços de metal do que suas mulheres. Amei menos do que minha esposa até o dia que me deixou — se aproximou da menor fileira de espadas; com um rápido olhar, o quase braço direito contou mais de cem, impressionando como todas eram diferentes. — Esta era do meu avô…
— Este lugar deve ser importante, sire.
— Largue as formalidades, amigo! Estamos sós aqui, eu, um velho, você, um esgrimista, e espadas que serviram até o fim de seus donos. E talvez seus fantasmas!
Ereken fechou os olhos e suspirou pela ponta do lábio.
— Esta era… de meu bisavô, duque Harins Beesh, o Cego. É a segunda mais bonita que já vi. Veja o fio: essa retidão inacreditável é um traço da Forja Imperial. A espada não era dele, todavia, derrotou um general inimigo em combate singular e tomou-a para si. Esta era de seu braço direito, Garns Nise, o Cegador, que diz ter degolado um dragão-real sem dono. Ainda consegui conhecê-lo, antes do meu pai ter me expulsado para a capital. Esta aqui… era a de Jeihann.
Um gosto amargo e forte abateu a língua e peito de Ereken.
— Eu sinto muito, sire. Se não fosse por mim…
— Cale-se, imbecil! — Deu um passo como num salto e agarrou Ereken pelo colarinho. — Meu filho foi feliz até o último instante cruzando aço contra você. Lembro-me do sorriso dele como se fosse ontem! Quisera eu estar no lugar dele. Jeihann teria sido um ótimo sucessor para a Casa, se não fosse um idiota! Mas foi um idiota que cruzou espadas contra você. Não faz ideia de quantos sonhariam com isso. Não se arrependa.
Os olhos âmbar voltaram-se para os castanhos. O duque o soltou, então devolveu a espada do filho para a bainha.
Virando-se a Ereken, Theolor desembainhou sua espada. Aço-cinzento, longo e afiado.
— Nós temos uma tradição muito velha: tomamos uma espada como tão íntimas a nossas esposas, mas, quando achamos alguém digno, as damos a eles, nossos braços direitos. Meu amigo, quando o vi lutar na Barragem, vi a espada mais bela que já tive o prazer de ver, e quando derrotou meu filho, sabia que tinha a obrigação de torná-lo meu homem de armas. Tomei-lhe como amigo, como irmão e te trouxe para cá sem perguntar seu nome, de onde vinha ou o que fazia; se era um bandido ou um adorador de deuses falsos. Dei-lhe um novo nome, a ti, teu bastardo e tua esposa; até arranjei parteiras das Ilhas Coral para ajudá-la a parir Hydele e o outro. Que descanse com Lohssau.
— Bert não é meu bastardo… E eu sei. Sei e sou eternamente grato a isso — respondeu ao duque, sem coragem de olhar a face do homem à frente. — Não há como eu pagar por isso.
— Não tem o que pagar, somos amigos, afinal! — “E que bons amigos”, pensou Ereken. — Há algo que… esqueci nesta história: te dei um sobrenome, mas não lhe dei um brasão. Te tornei meu vassalo, um dos meus ungidos cavaleiros, mas não te dei um sobrenome, não de verdade, mesmo te chamando de “Filho da Espada”.
“Conversamos sobre isso uma única vez, e evitei desde então…”, lembrou-se amargamente o Mestre de Armas.
— Nunca pedi por isso, Theolor. — Levantou uma das mãos. — Hydele ama esse lugar, minha Willmina também. Duvido que Bert vá querer ficar aqui, mas sei que também o ama. Não me importo de continuar aqui, de morar nas torres de visitas. É um bom lugar, mais do que mereço.
— Pelos Deuses, pare de ser tão humilde! Pelas nuvens de Fuinvol, você é um homem! Precisa de um pouco de ganância! Arrogância!
“Não tenho por que ter ganância. Recebo mais do que consigo gastar, vivo num lugar livre de perigos, com boa comida, boa vista; um filho saudável, tenho a esposa mais linda que um homem poderia sonhar, uma filha inteligente que promete ser ainda mais bela e talvez, se for da vontade dos deuses da minha esposa, ganhe um menino em antes do próximo outono. Não tem porque”, repetiu-se, franzindo a sobrancelha em dúvida. “Há um.”
— É Eztrieliz o problema, seu lerdo! Danem-se os dissidentes! Better nos deu um problema que surge o tempo todo, mas morre fácil! A ideia de Wouleviel como Reino Uno nasce com o Sol e morre com as Luas no céu!
O semblante de Ereken estremeceu em seriedade, seus olhos âmbares e rosto aquilino pareceram o de uma coruja cheia de susto e raiva. Foi um choque que pôs sua cabeça para funcionar. Seu amigo era um duque, com o sangue cristalizado em lealdade há mais de vinte gerações em favor do reino e do seu povo, do seu rei. Tinha de cumprir seus deveres ancestrais com Aarvier, a terra fértil dos Cinco Reinos — Wouleviel.
— Meu filho ainda é novo e sem experiência, mal tem quinze e raramente se esforça para algo que não seja cozinhar ou escrever cartas para a noiva. Nianna é ainda mais nova, apesar de que a imagino governando melhor que meu Rheider. Se fosse Jeihann, não veria nenhum problema, mas Rheider tomou frente da linha de sucessão. Bijik é um tolo, Sgaan… ele quase não tem mais dentes. Mas você… Eu sei que tem experiência com isso.
Ereken tentou negar, todavia Theolor não deixou.
Segurando sua espada pela lâmina, apontou o pomo para Ereken.
— Torne-se um lorde. Como duque, posso te elevar até conde, sem permissão direta de Sua Majestade. Proteja minhas terras e família enquanto protejo este lugar, a minha e a sua família. Seja meu braço direito mais do que já é, e, desta vez, um de verdade, nos acordos da lei. — Levou a mão ao ombro do amigo. — Pense bem, Ereken.
Saíram da sala subterrânea em silêncio e foram aos seus afazeres. Não queria ter um brasão, ser anunciado perante vários nobres e fidalgos de toda Aarvier; era atenção demais. Um plebeu com um sobrenome já chamava bastante; então fora condecorado cavaleiro, mesmo tendo arracacado os movimentos do herdeiro do seu lorde.
Porém não tanto quanto um novo lorde, independente da fidalguia, sem qualquer origem e sem sangue beijado pelas luas, que tirou com a espada o braço e sanidade do filho do seu senhor. Seria uma música a ser ouvida em cada rua por semanas…
Apenas voltou às portas duplas da ala do medista, separando-se com o duque o avisando. “Independente da resposta, partiremos contra os dissidentes ao norte em dois dias. Lembra-te bem da proposta, amigo”
Queria que Hydele acordasse logo. Iria abraçá-la e comer bolinhos de neve com Willmina e Bert, e com qualquer outro que quisesse compartilhar da sua felicidade.
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