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    “Há figuras, confesso, que jamais pude exercer meus poderes por cima e ver seus corações. Sinas; estas são outras histórias.”

    Izandi, a Oniromante

    — Os deuses são cruéis, cruéis demais.

    Seu horizonte estava maculado de branco e de neve até o limite, e quando não era o chiado imparável da neve cortando o ar, era o ranger dos dentes das dezenas de homens que a rodeavam e protegiam. Era como se o céu, em todo seu negrume mal iluminado pelos Luas, estivesse vomitando novas montanhas de neve — e as queriam prontas logo. Todos sentiam em seu âmago que somente iria piorar.

    “Por que a nevasca tinha que começar justo agora? Há quantos dias estamos caminhando?!”

    Os deuses estavam sendo vis demais.

    O batedor que viera ter com Tihimil e Faina caíra no chão e desmaiou por dias depois de revelar ser capturado. Não acordou com o ardor da fumaça, do calor do fogo nem o do álcool forte. Ao cair o terceiro dia desacordado, a mãe não conseguiu se controlar e pegou uma adaga. 

    — Ele vai acordar com a dor! Ele tem que acordar! — gritara a Tihimil, que quase não conseguiu impedi-la, se não fosse por ajuda de Mirta, que ainda que muito menor, segurou a Arrundria pelas bochechas.

    Quando o batedor enfim abriu os olhos, todas as suas palavras só encheram o Faina com ainda mais pesadelos e medo; desespero de mais.

    — Eu achei estranho demais — começara, comendo mingau. — Quando cheguei em um acampamento menor, com um amigo Bárbaro que fiz, ele foi alvejado por flechas. Consegui chegar praticamente dentro de um com o triplo de Caras-Queimada e eles não me pegaram. Achei que, digo, imaginei que eram fugitivos daquele bando de malucos, mas não eram. Um deles se aproximou de mim; acho que já sabia que eu estava lá.’

    “Quando me virei, eles já tinham flechas preparadas para mim. Imaginei que ia morrer, mas eles não me mataram. Pelo contrário, me levaram até um deles, que tinha uma loriga de couro. Era o mais alto e mais forte ali, grande que achei que era um Arrundria disfarçado, mas não era. O rosto dele estava inteirão queimado, mais branco que a senhora, moça Arrundria; digo, Rieq!’

    ‘Achei que iam me matar de um jeito cruel e comer meu coração, mas não foi bem isso. Ele me mostrou uma criança, um bebezinho loiro, que tava mamando numa Cara-Queimada. Daí ele pôs as mãos nos meus ombros. Meu povo só quer conversar com sua mestra. A traga em um mês; cinco semanas, e não vamos fazer mal ao filhinho dela, ele disse. Daí me soltou, e quando quase comecei a fugir, ele me falou que o garoto já tinha idade para começar a queimar o rosto…”

    Parou e comeu todo o resto do mingau de uma vez só. A Rieq estava praticamente de joelhos, com o coração batendo tão alto que até ele escutava.

    — Daí eu saí e começou uma nevasca enorme, mal consegui sair…

    Faina ficara sem qualquer força, despencara no chão. Estava desolada e tão entristecida que tardou para voltar a raciocinar. Somente chorou, chorou e chorou por minutos.

    Mas assim que parou, ordenou que todos os Vladein e os homens que vieram com Tihimil se preparassem. O povo das Ilhas Brancas cedeu-lhes mel, vinho, ervas, carne, roupas grossas, gordura, seus gaviões-negros, seus cães de caça, cavesões e suas espadas. 

    Mais de quinhentos homens e oitenta escravas de cama vinham com Faina, no passo mais apertado que conseguiam no meio de tanta neve caindo. Mas agora seus pés afundavam na neve até o joelho, e mesmo sendo Noite, era tudo cinza; branco aos pés, cinza na altura dos olhos.

    Negro acima de suas cabeças.

    — Ay rieq! — gritou Tihimil Valke, em parte agradecido pelo frio que calava sua artrite, em parte cobrindo o nariz de tão frio que estava o ar. — Temos que parar! Andamos há três dias sem parar!

    Faina parou seu andar. Sua barriga grunhia, o seio pesava e os olhos estavam vermelhos.

    — A neve… nos perderá… — Abraçou-se. A neve atingia sua pele e pisava descalça a neve, ainda assim sentia-se fervendo. “Não posso parar, não posso… Krazdoro… Meu Krazhii…”

    — Vamos parar! — gritou Mirta, apertando o braço da Primeira. — Ainda temos tempo e estamos perto! — Ficou na ponta dos pés e estendeu os braços até as bochechas de Faina, que resvalou o olhar e deixou uma lágrima pingar. — Temos tempo…

    — Meus filhos precisam descansar! — Faina rugiu, e no mesmo instante os quinhentos homens em marcha pararam. — Eu sei. — Entrelaçou seus dedos nos dela. — Eles também são meus filhos… Merecem descansar… — calou-se, então sussurrou: — Mas o único que saiu de mim precisa de mim agora…

    Seus joelhos cederam e afundaram na neve.

    — Vamos parar e acampar!

    — Vamos parar e acampar!!! — urrou Chefe Tihimil Valke, e viu o alívio na face de todos que a neve permitiu.

    Por muita sorte, a nevasca diminuíra um pouco, como o orvalho congelando no Ferrão do Norte. Conseguiram visibilidade o suficiente para que vissem estar próximos de um bosque de nevadeiras altas e tortuosas, e principalmente de árvores-sangue. Alguns homens pegaram machados e começaram a derrubar as árvores sangue e juntaram centenas de galhos em uma única fogueira, onde outros tinham escavado, que explodiu em fogo vermelho mesmo com neve respingando.

    — Isso vai queimar por um dia! — comemorou Tihimil, e Mirta sorriu. Logo começaram a erguer as barracas: madeira e peles de baleia, presas ao chão por pedras pesadas que acharam lá. Ergueram uma para Faina: uma feita da maior baleia, que era branca com manchas negras em sua pelagem. Era próxima do fogo.

    Trocou o couro pela liéve, que caiu tão leve sobre sua pele naquela tempestade que sentiu estar nua. As escravas de cama pegaram panelas e começaram a cozinhar carne, e os cachorros começaram a uivar alto. Aqueles que sabiam falcoar entraram na floresta para caçar. A uma dúzia de quilômetros às costas da Rieq, colinas altas cobriam o chão quase como montanhas, quase ocultas pela nevasca.

    “Odeio a neve”, concluíra.

    Seu coração bateu com tanta força que socou um montículo de neve, que abaixava e derretia.

    — Ay rieq — chamara Mirta, então espirrou. Segurava nas mãos uma tigela grande, que cheirava a carne cozida e ervas, e um cálice cheio de mel. — Tome, é seu. As escravas disseram que essa erva ajuda a se acalmar quando comida com carne e mel…

    — Mirta… — Abriu um sorriso. Pegou a tigela e comeu como ela disse, mordida por mordida, e tragava o mel acompanhada da amiga. Sua barriga ficou cheia, e sentiu-se como se os membros estivessem muito mais pesados do que eram normalmente.

    Logo atiçaram as chamas da fogueira e ergueram outras, e as escravas pararam de servir comida para servirem seus corpos. Faina abraçou seus joelhos e apontou para uma das panelas.

    — Ei, Mirta.

    — Sim, Ay rieq.

    — Me chama de Faina, já te disse isso.

    — Não posso — respondeu, finalmente cedendo e pegando um pouco de sopa para si. — Sou sua Esposa de Deus, além da sua serva-calente. — Assobiou baixo, pondo os dedos nos lábios carnudos e vermelhos. Faina não sabia que ela conseguia assobiar. — É assim que se demostra respeito em meu lar.

    Faina apertou os dedos dos seus pés. Seus olhos pesavam tanto que imaginou que dormiria. “Quero dormir e acordar com Krazhii em meus braços”, desejou. De chiste, derrubou-se na neve, vendo de soslaio o brilho da fogueira maior.

    — Ei, Mirta.

    — Sim, Ay rieq.

    — Me conte do seu lar — estendeu os braços.

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