Índice de Capítulo

    — Você já ouviu centenas de vezes de… de Sua Majestade. — Desviou os olhos.

    — Mas nunca de você. — Cerrou os braços. As nuvens pesadas tinham parado de cuspir flocos de neve e aberto um pequeno espaço, mas que era grande o suficiente para ver as doze estrelas que compunham a Carruagem de Vymya. Sinal de morte olhá-la sem querer, lembrou-se do ditado. Ululou um barulho estranho e cuspiu na neve. — Vamos, me conte. — Abriu um sorriso amarelo e cansado. — Quero saber de você, minha “serva-calente”.

    Mirta comeu um pouco de sopa, então deixou a tigela sobre a neve e abraçou seus joelhos — vestia uma couraça e pelagens sobre o vestido de sacerdotisa, além de botas grossas forradas de pelos. Olhou para as Luas no céu, e seu rosto enegreceu e os olhos semicerraram.

    — O Sol lá brilha o ano inteiro. O solo é verde, brilhante, e o mar espalha o cheiro de sal por todas as ilhas… — de repente, suas costas enfraqueceram e ela também caiu no chão. — Cresci no Monastério das Esposas da Ilha de Helina. Minha mãe também era uma Esposa de Deus, e ela orgulhosamente dançou por três meses para o Rei Tomad Leol em seus solares e na sua cama…

    — Então você é uma princesa?! — interrompeu Faina.

    — Só uma filha-do-mar, como várias das Esposas de Deus são — respondeu. — Se você fosse filha do Rei Carlo, primeiro esposo de sua mãe, eu seria sua tia.

    Faina acertou um peteleco na orelha da amiga.

    — Não gostaria de casar meu filho com minha tia — tentou cruzar os braços; não conseguia encontrar força para isso. — Não sou meu bisavô. Continue!

    — O Monastério era muito quente, principalmente em comparação com cá. As flores eram lindas. Cresciam jasmins grandes como cabeças, campanitas azuis, roxas, vermelhas e rosas, erva-de-passarinho, hibiscos brotavam de pedras rachadas e nossa urze era alta e florida. Havia uma sebe feita de uma flor branca chamada flor-de-virgem, cujo chá era tão saboroso que vendíamos a preço de prata, mas sua cera era transformada em um perfume que, bem, levava a perda da virgindade de muitas.’

    “Eu achava linda a sebe, e ficava lá o dia quase inteiro. Quando minha mãe morreu, fui levada para o Castelo, e virei amiga de sua mãe e da irmã gêmea dela, ambas Damas das Ostras, belas e lindas, ambas ainda muito jovens, ambas grávidas e ambas senhoras rainhas. Lá era belo, com pilares, e arcos, e torres arqueadas, e seus topos pareciam pérolas, suas salas e seus edifícios eram redondos, e a água do mar entrava em seu leste e subia até os jardins, onde caia nas flores.’ 

    “Havia flores e árvores que só vi no Castelo. Troncomar era grande, tão grande quanto uma torre, e suas folhas brilhavam durante chuvas escuras. Centenas de milhares de vaga-lumes ficavam lá à noite. Mas então vim pra cá… — Ouviu um ronco e corou. — Você… você está dormindo, Faina?

    — Assim me chama… — sentiu o peito cansar — pelo nome… — sentiu os olhos pesarem como uma montanha.

    “Ei, Mirta, quando salvar o meu Krazhii, vamos fugir para as Ilhas?”

    O torpor da nevasca parecia ser claro de tão escuros que estavam seus olhos. Era como se afundasse, devagar, devagar… em uma cama de plumas, macia… em uma cama de neve, cheirosa, calma. Um calor macio na bochecha, um toque nos seus braços e um conforto maior nas costas, e sentiu estar afundando ainda mais… O negrume dos seus olhos escureciam… nuvens se formavam no céu do seu sono…

    — Ainda sente-se embriagada, Faina Eykarisna Arrundria?

    Seu coração saltou. Faina quis dar para trás e se proteger, mas todo seu corpo estava envolto em escuridão. Uma letargia atingiu cada um dos seus membros, como se desconectados do seu corpo. Tentara gritar e varrer o lugar com seus olhos, mas somente via à frente: uma Arrundria.

    Era a mulher mais alta que já vira, tão alta que sua cabeça mal alcançava o peito da mulher. A palidez em sua pele era maior do que das neves, como se sangue ou calor jamais a tivessem tocado. Seus cabelos pendiam da cabeça ao chão, tão brancos que reluziam uma luz dourada, amarelos como os olhos leoninos… 

    Estava nua, e então vestida de algo que Faina não entendia, roupas que não conhecia palavras para descrever além de estrangeiras. Em sua cabeça pendia um toucado grande e largo e escuro, que lembrava Faina a uma cabeça de serpente, de onde um véu castanho caía.

    — Tomarei isto como um sim; mas, desta vez, é de medo. — Esboçou um sorriso. — Vem.

    Faina sentiu um choque percorrer do seu cérebro ao ventre, dos dedos das mãos aos pés. Então uma luz surgiu entre as nuvens, dourada e refletida pelo chão. Ouviu espumas se misturarem a terra, como se beijassem uma areia cor de ouro. 

    Ouviu gemidos de felicidade e barulhos de crianças; passos e corridas suaves sobre um chão abafado; cheirou peixe fresco, sal e suor, e brisas quentes colidiram contra sua pele. Ao abrir os olhos, viu árvores de um caule só, que se estendiam tortuosas por metros, e em seu topo residiam folhas verdes e longas, e dezenas de frutos parecidos com o da nevadeira pendiam.

    Águas azuis-claras se moviam e batiam contra o chão, arrastando areia e conchas; sentia grânulos de areia macios e rosas sob e sobre seus pés, molhados e esquentados. O Sol pendia laranja, as nuvens eram brancas e tão poucas que podia contar na mão; e a luz rasava até as águas e refletia nelas contra centenas de metros de areia rosada, e não havia sequer um bloco de gelo pendendo sobre as águas, mas ao longe via corais vermelhos, altos, saindo do mar como uma paliçada.

    Sem perceber, um pequeno sorriso calmo desenhou-se no seu rosto.

    Deu um passo a frente, mas pareceram vários, pois toda sua visão mudou. A praia ainda era a mesma, mas agora estava mais movimentada. Parecia ser tarde, uma tarde calma. Viu rameiras ao longe, com vestidos que não escondiam praticamente nada; vendedores de peixe e frutas, marinheiros e pescadores.

    E notou um rapaz. Um menino loiro, alto como um adulto, mas seu rosto era jovial como se mal tivesse dez anos. Era forte como um adulto, e seus cabelos cor de trigo pendiam em seus ombros; e os olhos dourados com uma seta negra fez com que ficasse rodeado de meninas, mais velhas e mais novas, sem nenhuma vergonha de disputarem-no.

    Seu sorriso aumentou ainda mais. Dera um passo, com o coração cheio de deleite materno. De repente notou Mirta, que segurava uma guirlanda de flores brancas, pequenas e de quatro pétalas, que pareciam cada uma o bico de um gavião. 

    Não usava as roupas de sacerdotisa, mas um vestido azul com um decote circular que chegava ao umbigo, amarrado nos seus ombros por um fio amarelo que parecia muito caro.

    Ela se aproximou do garoto, e no mesmo momento, ele pegou sua mão e ambos correram para o mar, e jogaram a água das ondas um contra o outro…

    — Que lindo, não?

    Faina virou-se.

    — Vós serdes Vymya? — questionara Faina, ajoelhando-se aos pés descalços da mulher. — Eu morri e deixei meu filho?

    — Quem eu sou carece de importância — respondera a pálida. — E não estás morta. Não creio que hás de morrer antes da sina perpétua de tua alma, criança rancorosa.

    — Eu não guardo rancor contra ninguém — retrucou Faina, pondo a mão no peito. — Somente contra meu bisavô, mas já não sinto mais isso… Ao menos não tanto…

    — “Todos nas minhas Ilhas são meus filhos.” — Fechou os olhos. — Não és tu a primeira senhora a pensar algo assim. Pois muito bem.

    A pálida gigante saltitou até as águas e Faina a seguiu. Assim que sentiu as ondas batendo nos seus pés, o rapaz a percebeu. O coração da mãe se encheu de felicidade e o rapaz sorriu, correndo na sua direção.

    Faina estendeu os braços e sentiu os olhos preparados para chorar, e o menino a abraçou. Abriu a boca para falar, mas a pálida não o deixou falar. Subitamente, o rapaz virou um bebê, vestido em lenços e panos grossos, repousando calmo sobre os braços da mulher mais alta.

    — Uma vez tive também um filho — falou, então beijou a testa do menino e o entregou para Faina. — Amei um homem e o dei não só um, mas dezesseis filhos, e ele, vendo meu amor, não maculou minha honra com nenhum bastardo. Fomos felizes, mui mais do que outro pai e mãe serão.

    Faina apertou seu Krazhii, olhando intensa e desesperadamente para o filho; seu lindo Krazdoro, cujos olhos pareciam com os de Nikol e de seu bisavô, o nariz pequeno e arredondado idêntico ao seu e da sua mãe… Lágrimas só não conseguiam parar, caindo às bochechas e testa do seu filhinho… “Cruel; meus deuses são cruéis demais…”

    O abraçou e pôs contra o peito, que pesava e caía de leite não mamado, e doía como se esfaqueado.

    — Quem és tu? O que você quer de mim?!

    A mulher se virou — sua aparência ficara ainda mais pálida. Seus olhos leoninos subitamente brilharam com a intensidade de um sol escaldante e seus cabelos ganharam o aspecto de chama, uma chama branca que tremulava e bruxuleava como se estivesse morrendo, apagando. 

    Faina deu para trás; sangue ardia e rangia os dentes; de chofre, sentia como se agulhas tivessem surgido dentro do seu corpo, furando seus pulmões e fazendo respirar impossível.

    — Por agora estás incompleta, Rieq Faina Eykarisna Arrundria, filha de Nikol, filho de Manen e Kozen. — Estendeu a mão, e logo todo aquele terreno desapareceu e virou uma nevasca cinza e quente. — Não sou “quem”, sou algo: sou seu sonho. Está desesperada, buscando consolo. Sou sonho, e neste sonho eu te digo: quando a hora máxima chegar, abandone.

    — Gh… — ciciou, tremendo os dentes.

    — Acalma-te e acorde. Aproveite e brinque, cace, mate, viole e testemunhem violarem. — Tocou a bochecha da Rieq e beijou sua testa. — Estarei contigo ainda mais uma vez neste ciclo, e depois somente no próximo.

    — Faina! Faina! — gritara Mirta.

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