Índice de Capítulo

    “Ouçam, devotos da força: seus mestres lhe chamam. Grande fora o dia em que pela primeira vez percebera fraqueza.”

    Izandi, a Oniromante


    Havia uma muito densa sombra de cansaço sobre Ereken. Pensou que estava em forma, que nunca tinha saído dela, antes ou depois de ser acolhido pelo duque Theolor Beesh. O final da tarde estava provando que estava errado. 

    Protegia-se do frio intenso, que fazia o orvalho congelar antes mesmo de se condensar, com três pesadas camadas de lã, couro e pelagem de urso. Sua camisa estava enforrada, calçava botas forradas e acochadas e luvas grossas que mal o deixavam sentir o cabo da espada; e, ainda assim, sentia-se congelando. E cansado.

    Um dos seus aprendizes decidiu apostar tudo em um único golpe. Achou que conseguia imitar a complexa forma de Ereken de se posicionar com o pavês e que a forma favorecia o ataque. Investiu o escudo contra o mais uma vez mestre de armas, que previu o que o rapaz faria. 

    Seus escudos se chocaram, e mal sentiu a onda de choque chegar aos seus músculos, mas Ereken a desviou para o pé direito e o girou como a tampa de uma garrafa. Imediatamente deu suas costas às costas do aprendiz e o golpeou com o guarda-mão da espada, que reverberou chocalhando na cota de malha. 

    Outro aluno foi mais esperto e não esperou, atacando o Mestre de Armas mirando em sua jugular. Ereken o viu de soslaio, mas foi suficiente. Com a mão da espada, projetou um corte alto e o arrastou, inclinando a espada dele. O zunido do metal ressoou dolorosamente. O mais velho acertou o aprendiz com o pavês. 

    “Ainda há muitos.” Podia contar ao menos trinta de pé no pátio da Fortaleza-Montanha, cujo chão estava deslizante de suor congelado. Suar era a esperança de todos parados, esperando pela sua vez. Poderia enfrentar todos de uma vez, tinha certeza; quando ainda tinha dezoito ou pouco mais.

    Seu braço da espada tinha os calos ardendo; o do mindinho parecia ter estourado. O braço esquerdo já estava cansado por tanto segurar o escudo de carvalho, cujas extremidades já eram serras irregulares como as montanhas do Ducado.

    Expirou bem e balançou a cabeça para tirar o suor, que descia em direção dos olhos amarelos-âmbar, e voltou à instância, a mesma que usou contra Cei Gherrit. Havia criado ela poucos momentos antes do duelo — já a considerava uma de suas favoritas. Sua mente titubeou ao seu filho Bert, enquanto isso, um aprendiz loiro e alto brandiu sua espada curta com intenção de matar. 

    O Mestre de Armas recuperou-se a tempo para reagir diversas vezes. Mudou a empunhadura da espada, ao modo de uma adaga, e prendeu a lâmina do rapaz entre o guarda-mão e o fio, então estendeu o braço, forçando-o a soltar a espada. O aprendiz foi resiliente e continuou a forçar seu caminho. Retirou uma adaga do cinto e golpeou; Ereken bloqueou com o escudo e empurrou-se contra o jovem, que caiu no chão.

    Antes que o próximo viesse, a trombeta da noite foi tocada, alta como se para acordar os seres antigos que não existiam mais. 

    Ereken embainhou sua espada. Tinha a entregado para um forjador, que refez seu fio e o deixou mais afiado do que nunca. No entanto, desgostou — ela parecia mais leve. “Demorarei para me acostumar com isso.”

    — Por hoje, terminamos — arfou, por mais que seu rosto não exibisse seu cansaço. — Estão liberados, por hoje!

    Os aprendizes saíram a vaias, um por um, então todos. Ereken aproveitou para desamarrar as cordas do pavês, pois seus dedos permaneciam letárgicos. “É como se cada dia ficassem mais duros e menos úteis.” Guardou o escudo; o cheiro de carvão queimando fluía de uma “porta” em arco de pedra, onde os forjadores passavam o dia quase inteiro martelando. Não os invejava. Retirou seu cantil e tragou um gole de vinho, mas já estava gelado.

    Neve pendia até onde os olhos poderiam ver nos adarves da muralha e as ameias tortas e lascadas, como se uma coisa muito pesada se prendera nelas há muito. A visão justificaria. Com seus bons olhos, conseguia ver quase toda a decida da montanha, até onde a névoa perene e séssil permitia. 

    Pequenas ravinas de neve existiam entre pinheiros velhos e longos, cujo escuro das folhas era o único que se destacava em meio ao resfolegante caminho bem cuidado, talhado entre as montanhas. Mas o céu, fechado e invernal, era como uma benção em noites sem Luas: conseguia ver inúmeras estrelas no céu, reluzindo e formando desenhos tão raros de se enxergar, como um tapete guia, um mapa que mudava um pouco todo dia.

    “Hydele amaria ver isso”, pensou, sorridente. “Sinto que também amaria a temperatura.”

    As duas Luas brilhavam no céu; tanto a branca quanto a prateada, quase na mesma intensidade, ainda que fracas. “O inverno está quase acabando”, refletiu, tal qual refletiu o cansaço, apertando ambas as mãos. Se apoiou numa ameia por alguns segundos e voltou os olhos para a subida: as suntuosas escadarias transpostas umas nas outras. Sua teoria sobre ser uma fortaleza construída em cima da outra se concretizava conforme a explorava. 

    As escadas se uniam, passadiços de pedra mal lapidada — e outras feitas por um mestre artesão ou um pedreiro lendário — passavam entre torres de vigia, edifícios e construções de descanso, forjas e estábulos. Quanto mais alto, mais destruídas por algo enorme e pesado pareciam; as marcas de garra eram mais fundas e afiadas. Enquanto subia, notou em um dos passadiços uma mancha congelada de sangue, então se abaixou.

    Encontrou pedaços de carne e de ossos entre os tijolos esmagados. “Alguém foi esmagado aqui.”

    Dos portões da muralha, sempre havia carruagens e mais carruagens trazendo madeira, das forjas sempre havia crepitar do fogo e rugidos de martelos; e os estandartes eram balançados pelo vento congelante, que subia como fogo em direção das mais altas torres, onde ficavam as lentes-de-observação. 

    Percebeu ao longe a armadura reluzente do Ceire, de onde uma capa pendia às costas, que além do Grilhão de Funci, tinha enleado um arco longo em preto, de onde quatorze flechas saiam até o fim do tecido, mas no centro havia uma espada retesada. “O símbolo de sua ordem, imagino.”

    Ao lado do Ceire direito, notou o conde, também vestido com roupas pesadas contra o frio, além de uma touca cobrindo os cabelos grisalhos. Thirtu estava de costas para eles, com os braços estendidos, como se esperando um abraço do vento. “De alguma forma, me lembra Jenna”, pensou. Se aproximou.

    — Meevel destruiu esse lugar — dissera o conde, passando a mão por uma das marcas de garra. — Deveriam ter expulsado-o logo. 

    — Temo que eu não conseguiria — respondeu o Ceire, repousando os braços na ameia. — Passei minha vida em combate contra monstros em Luichea, mas aquilo não era um monstro. — Exibiu um sorriso. — Imagino que suas penas ainda jazam sob a neve da Fortaleza. 

    — O vi somente uma vez — falou, tragando o cantil. — Antes de Better embebedar-se das ideias que lhe fizeram mau, acompanhei Theolor no Sempre-Verde em uma companhia de batalha contra o Império. Vi Better levar Meevel até o limite dos meus olhos, então descer aos céus como um relâmpago laranja. O impacto foi tão grande que as gavinhas voaram até nós, e nossos inimigos e aliados pararam o clangor para ver o que fora aquilo.

    Entregou o cantil para o Ceire, que tragou um gole curto.

    — Quanto tempo achas que ainda resta a Sua Majestade? — questionou o Ceire, semicerrando os olhos com um semblante já enlutado. — Estive com ele ano passado, na primavera. Testemunhei-o vomitar sangue e uma… massa negra. Pela boca e pelo nariz. — Cobriu o rosto. — A este ponto é uma surpresa para mim que ele ainda esteja vivo.

    O conde fitou o nada. “Sua Majestade não parecia tão doente”, pensou Ereken.

    — …Tenho fé de que não o perderemos antes do seu meio-irmão. — Sorriu, pondo a mão no ombro do Ceire, dando o consolo de um velho amigo; percebeu Ereken de soslaio. — Nada derruba o velho Cyreck. Barão.

    — Vossa Graça — respondeu, enfim subindo os degraus. — Perdoem-me por espioná-los — riu.

    O conde deu uma lufada entristecida, mas aliviada. Thirtu virou o rosto e, vendo Ereken, saltou para o chão.

    — Bonitão! — Apontou para o barão, coçando a testa com a outra mão. — Chegou na hora perfeita!

    — Para jantar, ir à minha cama e dormir? — achincalhou; sentiu o braço esquerdo enfraquecer.

    — Haha! — cruzou os braços, franzindo o cenho e acirrando os olhos azuis brilhantes nele. — Muito engraçado! Mas não. Preciso que venha comigo, guardar minhas ovelhas!

    — Aproveite a oportunidade e desça as montanhas — bravejou o Ceire, apertando a mão contra a cabeça dela; sua luva ficou enegrecida.

    — Vai se ferrar, velhote! Já disse que não vou embora daqui!

    Thirtu se soltou e deu um chute fraco no calcanhar do Ceire, que suspirou o olhou para o céu escuro. Uma brisa tibiosa os atingiu, mas percebeu que próximo chegava uma nuvem escura e carregada, grande como uma montanha deitada; abaixo da Fortaleza, reparava a névoa crescendo, subindo aos poucos a distância entre a falda das montanhas e o alicerce de onde pisavam.

    — Vá com ela — ordenou o Ceire, com a voz calma, que de alguma maneira acalentou o coração de Ereken. — A lã delas é importante aqui.

    O Mestre de Armas abaixou a cabeça. Thirtu esboçou um sorriso vermelho e saiu correndo Fortaleza abaixo; mal teve o Mestre tempo para jantar. Assim que entrou no refeitório, onde seis chaminés e fogões lufavam calor e rufavam brasas e fumaça, a jovem chegou com um cajado em mãos, uma aljava na cintura e um arco amarrado na perna.

    Os dois saíram do refeitório sem pressa, com as sinetas redondas do cajado ciciando; mas assim que deram um passo fora dos portões, viram ao longe um paredão de névoa densa formando-se. Ereken soltou uma lufada de ar mais pálida do que o normal. 

    — Essa noite vai ser fria. Tem certeza de que quer pastorear hoje, senhorita Thirtu?

    — As minhas ovelhas gostam de frio assim. — Soprou as mãos e esfregou elas. — São donzelas do frio e do escuro.

    Ereken ergueu uma sobrancelha quando a jovem levou as mãos acima da cabeça; de chofre ela bateu palmas com força, ecoando alto por dezenas de léguas. Então ouviu um tropel abafado por neve vindo à sua esquerda. Seu braço direito se contraiu e tomou sua espada, mas Thirtu sorriu, pondo as mãos ao lado da boca.

    — Venham logo, suas peludas!

    Beeeeeeeeh! — ouviram ao longe; uma cortina de neve jogada para cima surgiu à esquerda deles. Ereken deu dez passos inquietos até ver mais de trinta ovelhas correndo em uma linha quase reta. Existia, percebeu ele, ao limite do firmamento da Fortaleza um declive, quase como uma caverna às costas do bastião. 

    As ovelhas diminuíram o passo, de forma que pareciam saltitar pela neve, até que andavam devagar e em linha reta. Passaram por Ereken uma a uma, e percebeu ele que elas tinham uma pelagem grossa e escura; mais do que as ovelhas dos pastores do Planalto Cinzento. As ovelhas ainda seguiam, uma a uma até a pastora. 

    Thirtu tocava em suas cabeças, então elas faziam quase que um circulo ao seu arredor. Ela apontou para o bosque de pinheiros descendo pela direita. 

    — Trinta e duas donzelas — urrou Thirtu, batendo o cajado no chão, deixando os sinos chacoalharem alto. — Nenhuma se perdeu… — olhou para uma, que estava ao fundo. — Dhertu, você ficou prenhe? 

    A ovelha ululou e ergueu uma das patas, quase como se respondendo a pastora. “Mas que…” 

    — Eu não! — Pôs uma das mãos na cintura. — Não tenho como cuidar de mais uma de vocês, suas peludas imundas!

    Bateu o cajado de novo.

    — Sigam-me! — e começou a andar. Ereken percebeu que estava de queixo caído, pálido e sem reação. — Você também, Bonitão!

    “Bert e Willmina estavam certos”, coçou o cabelo. “Tem todo tipo de… pessoa no mundo.”

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