Índice de Capítulo

    “Ouçam, devotos da força: seus mestres lhe chamam. Grande fora o dia em que pela primeira vez percebera fraqueza.”

    Izandi, a Oniromante


    Um vento gelado atingiu seu rosto como um tapa. Ergueu o cachecol e a gorjeira até altura da boca e a seguiu, em passo rápido até ficar ao seu lado. Logo se aproximaram daquele bosque. Seus pinheiros eram altos e tortuosos, com folhas verde-escuro como azevinho, escondidas por neve. 

    Os arredores da Fortaleza-Montanha não eram os mais espaçosos e longos do mundo; apesar de que imaginava que uma pequena vila poderia ser facilmente feita onde pisavam. Não sabia o porquê da Fortaleza ter crescido tanto para cima; agora sabia. Não era o vento frio que cortava a pele e roía os ossos: flores de neve brotavam da neve.

    Seus caules eram altos e suas pétalas eram de um azul claro como os olhos de sua esposa; e, mesmo com cheiro de neve sobrepondo quase todos os da Fortaleza, o dessas flores venenosas e urticantes conseguia ser pungente como fumaça. Nunca, nunca jamais toque nessas flores, advertira uma vez Cile Henri. Um toque deixará a pele vermelha e com coceira. Depois fica roxa, seu sangue esquenta, seu coração fica fraco e perde os movimentos dos membros. Começas a alucinar, e antes do final da primeira hora, vomitará seu cérebro. Queimem todo o lugar onde estão crescendo, cavem nele e queimem de novo!

    Uma vez fizera uma viagem com vinte homens e acamparam no Ode dos Pássaros. Um dos novatos fez as necessidades no mato e limpou-se com uma delas. Ereken testemunhou cada segundo do pranto do homem.

    As ovelhas de Thirtu comiam as mesmas flores venenosas. Engoliu em seco. O Mestre de Armas reparou que as orelhas dessas ovelhas eram maiores do que as que já vira, e as pernas também — e os olhos, ainda maiores. Elas ululavam enquanto comiam, mas não era um barulho de dor; um pranto ou gemido de sofrimento.

    Pareciam ser deliciosas.

    “Qual seria o gosto delas?”, perguntou-se Ereken, fitando os arredores em busca de lobos. “Com flores assim por perto, duvido muito que haja algum por perto.”

    — Não é muito bom e dá uma dor de barriga horrível — falara Thirtu, dando batidas fracas no chão com o cajado de pastor e coçando a testa com a outra. Ereken franziu o cenho de susto. — Se comer uma dessas vai ficar o resto do dia no banheiro. — Ela sorriu, pondo uma das mãos enluvadas sobre a cintura. — Se tô falando das flores ou das ovelhas, só tem um jeito de descobrir, bonitão.

    — Sou casado — respondeu, dando um salto à esquerda, ainda que olhando para as ovelhas. Eram doze e já tinham comido quase todas as flores que brotavam da neve. — Creio que não quero descobrir. 

    “E não deveria estar ajudando uma pastora a pastorear; sou o Mestre de Armas da Fortaleza.”

    A princípio, quando o Ceire Joran Cyreck anunciou que o barão Ereken Zwaarkind, o Cavaleiro do Duque, seria o novo Mestre de Armas do castelo, não houvera outra reação senão o silêncio. Soubera Ereken que a maioria dos soldados à sua frente, principalmente entre os mais jovens, eram lestistas. A maioria desses sobe as montanhas para ter onde comer durante o inverno; sequer sabem manejar aço. Ensine-os bem. Confio em você, dissera o Ceire. Ouviu da boca do Ceire ainda que havia pouco mais que mil homens na Fortaleza.

    No entanto, havia na multidão um homem que reconhecera Ereken. Seu nome era Mathey; o que tinha de roliço tinha de barba no rosto e força nas duas mãos. Ereken testemunhara isso de primeira mão contra seu braço esquerdo. Conheço seu nome, Duas Espadas! Não estou aqui para ganhar menos!, ele gritara, desafiando Ereken para um combate pelo seu emprego.

    O então Mestre de Armas ordenou que um dos seus alunos o entregassem uma segunda espada, mas Ereken não conseguira segurá-la; conseguiu mover o braço, mas assim que tocou o cabo da lâmina, seus dedos não se fecharam e ela caiu ao chão. O barão suspirou pesadamente e agarrou um pavês com o braço esquerdo. E então lutaram, resultando na vitória do novo Mestre de Armas e olhos vidrados do Ceire e do conde.

    Pressionou o lugar entre o braço e ombro com o dedão; sentiu seu sangue fluir pelo braço letárgico. “Isso não vai passar nunca?”

    — De onde que você era mesmo? — perguntou Thirtu, batendo o cajado sobre a neve; as ovelhas que já estavam cheias vieram em sua direção e fizeram um círculo ao seu redor. 

    — Sou do Ducado do Sul.

    — Ah! — bateu o punho na mão, coberto por uma luva de couro que chegava ao cotovelo. — Não faço ideia de onde isso seja. É de comer? 

    Ereken riu de cenho franzido.

    — Espero que não seja. O gigante que comer aqui…

    — Não fale de gigantes na minha frente, Homem! — bravejara, fazendo um círculo com a mão esquerda. — Mas te perdoo desta vez porque você é bonito — cruzou os braços e fez um biquinho. 

    — Eu… agradeço? — O canto do seu lábio abaixou. 

    — Hehe… — deu um sorriso malicioso.

    Ela bateu as palmas, levou a mão à boca e fez um assobio estridente e alto. Ereken cobriu os ouvidos, mas um tropel subitamente ouvira; vinte ovelhas vieram disparadas do bosque de pinheiros escuros e velhos, abaixo da região mais alta onde estavam. Thirtu bateu as palmas de novo e as suas ovelhas se reuniram em uma fila perfeita.

    — Você não tem medo de que elas não… voltem? 

    — Um homem grande como você falando de medo? — bateu palmas mais uma vez. Ereken resvalou os olhos. — Não, não tenho. Eu faço isso desde meus nove. Não tenho medo de lobo, nem do escuro. Sou uma bela mulher, não acha?

    Ereken ficou em silêncio. Thirtu virou os olhos e começou a contar suas ovelhas, sua voz bruta e aveludada ressoando em sussurro. De chofre ela parou e começou a recontar, coçando a testa. O barão deu mais atenção para o símbolo na faixa: pareciam dentes de cabeça para baixo, dentes afiados. Não reconhecia nenhuma família nobre que usasse uma única fileira de presas ou a cor da faixa. Não conhecia algum lugar que usasse roupas parecidas com a dela.

    Sob as peles de lobo e urso, ela usava um manto lilás amarrado à cintura por uma faixa grossa, com buracos no meio rodeados por ouro; pedras brilhantes caíam de lá, seguradas por fios finos de corda. A aljava no flanco direito parecia mais um alforje, seu arco era de uma madeira arroxeada, e de alguma maneira conseguia ser amarrado na bota.

    Ót! — cochichou. — Todas aqui. — Saltou da rocha onde estava, elevou as mãos acima da cabeça e bateu palmas. Ereken olhou para Thirtu levar sua mão ao cinto.

    Então agarrou uma faca atirada contra sua bochecha.

    — Pela Pedra de Gelo! — urrou Thirtu, de queixo caído e olhos arregalados. Suas ovelhas fizeram o mesmo barulho. 

    Ereken respirou fundo e abaixou a faca. Thirtu viu o semblante de Ereken ficar sério… então estremeceu; sentiu as costas congelarem e seus braços contraírem, e suas pernas pareceram congelar. Os olhos amarelos-âmbar do homem pareceram brilhar como fogo, mas ao mirá-los sentia-se congelando. Suas pernas fraquejaram, e quando se deu conta, seu corpo pareceu não saber mais respirar. 

    “Que… Que legal!”, gritara ela consigo.

    — Por que fez isso? — bravejou o Mestre; sua voz parecia séria como uma tempestade de neve. — Foi jogada para matar? Por que quer me matar?

    Ela percebeu que estava com joelhos afundados na neve. Levantou o rosto; sentiu o braço direito tremer e seu coração parecia sair pela boca, e suas mãos tremiam tanto que não conseguia sequer segurar o cajado. De chofre, deu um tapa no próprio rosto. E sorriu.

    — Eu…

    — Você o quê?

    — Acho que você… — arfou, pondo forças nas pernas. Cuspiu no chão. — Que você é um ótimo candidato a marido!

    — Eu sou casado. — Estendeu a mão para ela e suspirou.

    — …pera, você é casado mesmo? Sério, sério?

    Ereken a pegou pela mão e levantou-a de uma só vez, quase a derrubando. Deixou suas guarda baixa… e percebeu que não estava segurando a faca pelo cabo, mas pela lâmina. A luva o impedia de se arranhar, mas notou que o fio da faca estava afiado o suficiente riscar metal e cortar madeira; matar um animal ou cortar uma couraça.

    Suspirou e girou a faca, a devolvendo para a jovem. Ela a pegou e devolveu ao estojo; amarrado nas costas da veste lilás.

    — Sim. — Franziu o cenho, olhando de volta para a Fortaleza. — Sou casado com a mulher mais bela e graciosa do mundo, tenho um filho mais velho e uma filha de doze anos. Queria deixá-los órfãos, por acaso?

    — Esse filho é solteiro? — Deu uma longa lufada e respirou fundo, então tirou o suor descendo pela faixa na sua cabeça. Ereken ficou calado. — Droga, por que que todo homem bom é casado… — ciciou.

    As ovelhas berraram baixinho. A jovem bateu palmas, fracas e trêmulas, e as ovelhas se levantaram.

    — Elas estão cheias e agora vão dormir por uma semana quase toda… Qual seu nome mesmo?

    — Ereken Zwaarkind. — Expirou profundamente e fechou os olhos. “Não foi por maldade”, concluiu. “De uma forma ou outra, foi bom para mim. Estou ficando fraco.”

    — Se… Ere… — Abaixou-se para pegar o cajado. Ao se levantar, viu a nuvem pesada no céu: estava próxima, enorme, tão grande que já ocupava e escondia não só as Luas, mas também boa parte das estrelas. — Bonitão, é melhor a gente ir embora.

    Ereken assentiu com a cabeça e ergueu os ombros mais uma vez. “Minha guarda está relaxada.” Respirou fundo o ar gelado das montanhas, áspero como se algo faltasse. Deixou a energia se unir e espalhar por seu corpo. 

    “Estou hirto e duro, fraco e mole.’

    ‘Meu pai riria se me visse.”

    Cerrou os punhos e os dentes com força para rasgar as costas da luva. Thirtu não notou, já estava à frente, em passo uniforme com a fileira de ovelhas gordas e sujas. Logo a acompanhou, virando de volta para a única entrada da Fortaleza. O fosso — o espaço entre os cumes das duas montanhas — estava coberto pela ponte, como sempre, com dezenas de carruagens cheias de lenha e barris com comida e vinho subindo.

    Todavia, reparou que havia um cavaleiro com o cavalo em um tropel furioso. Os mestres da carruagem pararam seus cavalos para Thirtu passar, no entanto, o montado no cavalo não; saltou acima das ovelhas e entrou na Fortaleza. Ereken não acompanhou a jovem pastora.

    — Cartas! Cartas! — ele gritou. — Tenho cartas aos senhores!

    Assim que entrou, já havia uma multidão de soldados rodeando mensageiro. Pareciam desesperados por qualquer notícia. Ereken sentiu uma pontada no seu coração e um frio escalar sua nuca. O mensageiro subiu em uma rocha e tirou das costas uma bolsa.

    — Lauren Asseliers, Denis de Pomar Branco, Robert de Pomar Branco… — e as entregou aos rapazes, que saíram felizes. O barão sentiu o coração e a vista enegrecerem. Neve começou a despencar do céu, e toda a luz que havia na Fortaleza passou a ser dos archotes e fogueiras. 

    Sentiu Ereken uma coceira na ponta dos dedos; um gosto amargo na língua. “Por que estou assim?” 

    Um soldado mais animado levou um archote até o mensageiro, que agradeceu.

    — Lauren de Paço dos Lobos. Lauren de Vila da Lontra… Lauren… Lauren Lennas… Lauren Lennarsenn. Perdão, está escuro. — Entregou as cartas aos lestistas. Ereken notou conde Siward e o Ceire descendo as escadarias.

    Sentiu uma inquietação no seu coração. Sua perna direita deu um passo para trás quase que sozinha.

    — Ereken Zwaarkind. 

    Seu coração disparou. Sua perna dominante fraquejou. Respirou fundo o ar frio. “Podem ser boas notícias, Ereken. Ande!”

    Acertou o peito com o dedão e seu coração acelerou como se numa luta intensa. O surto de energia chegou à sua cabeça. Saltou rápido até chegar ao mensageiro e tomou a carta da sua mão.

    Papel nobre envelopado, selado por cera vermelha e escura — o brasão dos Beesh marcava a cera ceca. Quebrou a cera a apertando, então tirou o papel lá de dentro. O escuro não fazia diferença.

    Amigo, estou te enviando esta carta para te informar. Provavelmente só a receberá um mês depois que enviei; garanto-te que não enviei somente uma. Sou seu amigo, Theolor Beesh, mas também seu duque e quero manter meu homem de armas favorito bem informado.

    Irei direito ao ponto, pois sei que é o que mais lhe aflige: nem Hydele e nem Willmina acordaram ainda. Estão desmaiadas. Seu Bert fora chamado por Rheider para que o guardasse, ao menos até chegar em Bennervir. Meu filho também foi junto, como já deve saber.

    Hydele partirá de meu castro em breve. Cile Henri disse que ela teve uma recuperação milagrosa graças a um remédio, digo, não entendi direito o que raios era aquilo, mas uma coisa que minha filha preparou. Disse ele que não havia ferida ou mácula na sua pele, além de uma pequena queimadura na região do ventre, e que parara de convulsionar. Willmina… bem, ela também está recebendo bem seja lá o que for aquilo. Está se recuperando bem, e tanto o Cile quanto os boticários que contratei dizem que o bebê está crescendo bem no ventre, por mais que ela não… bem. Este detalhe lhe pouparei, mas saiba que ambos estão bem.

    O tal de Cei Witernier, ‘o mais jovem cavaleiro da Guarda Real que já existiu!’, e nossa Jenna acompanharão Hydele. Estará munida com vinte boticários muito bem pagos, um Cile novo que contratei, e nosso rei deu a Jenna um papel cheio de bençãos e proteções. A garota provavelmente tem mais poder do que a princesa dessa nação agora! E lhe deu também um novo nome: Maribetye Bloen. Não faço ideia do que significa o nome, mas o achei horroroso e feio. Meu amigo nunca foi bom de por nomes.

    Ereken deu um suspiro profundo, como se seus pulmões virassem água e suas costas se quebrassem. Sentiu os olhos marejarem e uma lágrima escorrer, e depois outras, caindo no papel e congelando. “Estão… O importante é que estão vivas; que estão bem. Os amo.”

    “Mas também há notícias desagradáveis. Há pequenas batalhas acontecendo em toda fronteira entre meu Sul e o Leste dos Hoones. Os Boldey e Ritte brigaram de novo, e na fronteira com o Sempre-Verde, cem homens de duas casas se mataram sem piedade. Há rumores ruins, rumores péssimos e alguns difíceis de acreditar. 

    O Conselho dos Cinco se aproxima. Irei participar. Dane-se que não sou um rei. Minha nação ainda é minha. Será ao fim do inverno, e até lá quero poder abraçar meu amigo, Rheider Bloemennen, meu irmão e rei desta nação imunda e linda. Eztrieliz sendo o inimigo ou não, iremos esmagá-los como sempre fizemos.

    Até lá, meu amigo e confidente… peço que fique de olho entre todos ao seu redor. Me notifique de qualquer visão estranha.”

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