Capítulo 32: Alguém está feliz com isso?! (1)
“O caminho para o inferno é decidido em poucos pensamentos.”
Izandi, a Oniromante

Princesa Silale encostou a mão esquerda na parede, enluvada e com uma pulseira de prata com uma safira pendendo. Longe à sua frente, ao final do corredor, a porta alta de mogno vermelho estava fechada; olhava-a com seus olhos azuis cheios de melancolia. Cei Bert ajustou a gorjeira da nova brigantina: vermelha, chegava aos joelhos protegidos por aço.
Sua nova armadura ficara pronta há poucos dias. Placas de aço temperado, pintada de castanho e cinza no peitoral, trabalhado no entalhe da guarda real: uma espada coroada. Altas eram suas ombreiras castanhas, adamascadas eram as grevas — como o resto da armadura —, e seu manto era simples, um linho leve e farfalhante. Ricamente trabalhada, e, como Bert pensou, cara. Não detestava sua forma e adornos, ou do elmo com uma viseira em “T”; mas se recusou a usar mesmo na frente do rei.
— Deixe-o, meu rei e meu pai — pedira a princesa, com a mão no peito e um sorriso constrangido no rosto. — Ele diz que não precisa, e… bem, demonstrou isso…
Cei Bert agradeceu uma única vez, abaixando a cabeça e beijando sua mão como imaginou que Ereken o faria. Não detestava a armadura. O que não gostava era do peso. “Cansativo…”
Não tinha uma noite que bastasse há dias. Ajudara os cozinheiros há alguns outros dias. Havia uma infestação de ratos, que atacaram visitantes da princesa enquanto caminhavam pelos corredores do castelo. “Perfeito”, dissera a princesa. “É punição por tua violência, por agora.” Perseguira ratos aquela manhã e tarde inteira, mas houve lucro. O cozinheiro do castelo ficou muito grato; e a filha dele também.
…A princípio fora tímida. Usava a desculpa de entregar vinho…
— De que é este sorriso atroz, Cei Bert?
O homem piscou com força.
— Nada, minha princesa — respondeu, passando a mão pelos cabelos tacanhos. Ela suspirou. De alguma maneira, parecia menos pálida. Ajustou o broche que unia a pelagem de urso sobre os ombros, então suspirou mais uma vez.
— Estou bonita, Cei?
Bert sentiu uma pontada desconfortável no peito.
— Não lembro de vê-la feia, Vossa Alteza.
— Foi pedido meu que dissesses meu nome, Bert.
— Quem sabe depois, princesa. — Prestou uma vênia para irritá-la. — Agora, vamos?
Ele ainda bocejou profundamente, expirando as últimas brisas do fim de tarde, cujo sol fracamente laranja atravessava a balaustra alta do corredor. Estavam ao menos a doze metros do chão. O salão do trono era o lugar mais alto de todo o Castelo dos Bloemennen. Neve pendia entre as partes da balaustra, brilhante com um pouco de orvalho congelado.
Cei Bert Zwaarkind acompanhou a princesa de Aarvier até a porta, dando olhadelas ao teto arqueado. Lembrou-se do juramento que fora forçado a fazer sob a ponte. Sentiu sangue esquentar suas bochechas. “Por que fiz isso?”, pensou enquanto um servo abria a grande porta. Respirou fundo o ar; cheirava à menta.
Entraram pela esquerda em um salão largo com piso ladrilhado em um laranja cheio de arabescos, que escalavam pelo batente até as altas paredes. Onde não jazia detalhes cor de ouro, rubis e cassiterita, flâmulas com o Pavão Coroado dos Bloemennen e tapeçarias intricadas de batalhas e contos cobriam as paredes.
Ao norte da sala, onde rumavam, havia um estrado de quinze degraus, onde estava o rei. Sentado no trono, altivo e antigo, escuro como pinheiros e com ombros de rubi brilhante, o rubi da sua coroa refulgia em direção de seus vassalos, ajoelhados, e seus ministros de pé aos seus lados.
O ministro dos conselhos, apesar das costas entortadas e barba batendo no umbigo, parecia o menos cansado. Setenta anos estavam erigidos sobre seus ombros, mas sequer precisava de uma bengala. “Até Juliann e Lender tinham um mentor.”
Príncipe Howan estava sentado em um trono menor, um degrau abaixo e à direita de seu pai. Havia um trono vazio ao lado de Sua Majestade, um menor e menos detalhado. O anunciante avisou a presença da princesa, que prestou uma curta e graciosa reverência, então sentou-se à esquerda do seu rei, um degrau abaixo. Cei Bert ficou de pé ao seu lado, com a postura mais séria que conseguia fazer.
— Vieram vós mais cedo do que esperado — respondeu o rei, sua voz ressoando pelo vasto espaço do salão cujas abóbodas eram tão altas que pareciam inexistir. — Os outros lordes do leste deveriam inspirar-se em vós. Meu tempo não é infinito.
— O pássaro-de-voz demorou para chegar, Vossa Majestade! É sabido que voam devagar no inverno! Vim como representante de minha Casa assim que…
— Cala-te, Lamoraal! Nosso pai…
— Façam-me ambos o favor! — bravejou o rei a Lamoraal e Alewin Hons, gêmeos de Alehia Bloemennen; primos do rei.
Fora iniciada no começo da tarde com o objetivo de garantir as rotas de distribuição. Aarvier tinha uma geografia lamentável para guerra: quanto mais em direção ao noroeste e sudoeste, mais baixas ficavam as terras; o contrário também era válido.
Um avanço inimigo seria complexo, difícil de lidar. Bert conseguia pensar nisso: era hora do dono de todas as terras onde pisavam deixar claro que ele era o senhor de todas elas. “Ele não os liderou em guerra?”, pensou Bert. “Guerra contra o próprio irmão?’
‘O maluco que quis fazer uma bagunça nos reinos?”
— Huhum… — pigarrou Lamoraal. Era um homem alto, mas de um aspecto arredondado e pesado. Seus cabelos loiros eram longos e caiam sobre as costas como uma cachoeira, todavia sua calvície já era proeminente, mesmo sendo mais novo que o rei. — Como lestinos, Vossa Majestade, nossas fortalezas, fora a grandiosa e onisciente Fortaleza-Montanha, são um tanto quanto muito úteis para defen…
— Já sei disso! — bravejou e golpeou o ombro do trono. — Esqueceis que também batalhei, Lamoraal Hons? Coff!
Bert fitou Alewin ocultando um riso esdruxulo com a manga do seu manto, idêntico ao irmão gêmeo se não pelo cabelo mais curto e corpo mais magro. O rei começou a dar suas ordens e falar aos dois, todavia Bert não tinha atenção a dar para isso.
Alguma coisa poderia acontecer, afinal, com exceção de Cei Hilsen e Cei Gherrit, feriu todos naquela sala sem um quê de remorso. Cei Ressen Alegre estava próximo do rei, com uma faixa-medista cobrindo seu olho direito, enquanto o esquerdo ainda tinha cicatrizes da agressão de Cei Bert.
Já Cei Witte Rwicks nem conseguira sair das salas boticárias dos medistas.
Mesmo sendo punido com uma retenção no salário e ameaças de morte pelo patriarca da Casa Rwicks, Bert se sentia revigorado. “Caçar ratos me deu uma garota com pernas mais macias que um travesseiro; e eu nem sabia que ia ser pago! A próxima punição vai me fazer o quê? Virar rei?’
‘Aquele momento… Aah!”
O misto de sensações, a dor tremenda que revirou seus órgãos da barriga e o êxtase animalesco que veio quando se soltou. Seu ahvit antes não emanara com tal velocidade, tomando tal forma com tanta exatidão. “Quero vivê-lo de novo…”, pensou. A maneira como seu corpo estava leve, livre do sono… Todavia, não era um risco que desejava passar. Não tão cedo. Mesmo estando tão perto…
O marquês Rwicks era um dos ajoelhados ao rei, porém seu olhar não saia de Cei Bert. O rapaz conhecia a feracidade desenhada naquela forma de olhar. “Me subestima e, ainda assim, nada pode fazer agora que Sua Majestade conhece minhas habilidades”, riu. Coçou a barba. “Já tá na hora de cortar.” O príncipe também tinha uma barba rala presa na ponta do queixo.
— E quanto às Montanhas-Fronteiriças, Vossa Majestade? — questionou subitamente Martyn Berg. — Peço desculpas por minha ousadia, todavia não me recordo de termos discorrido sobre elas…
— Espera-se que o óbvio seja naturalmente pensado! — bravejou e tossiu. Príncipe Howan franziu o cenho e não esperou o acesso de tosse do rei piorar, logo saltando do seu cadeirão em direção ao pai. O rei, porém, ergueu sua mão furiosamente quase como estapeando o rosto do filho. — Eles compartilham nossa fronteira com Eztrieliz, mas e daí? Coff! Randi Wehresein-Hart é um monstro em carne de mulher. Não negociarei coff!, coff!, coff!, com ela, coff! Protegeremos nosso reino sozinho — tossira, com seus cabelos farfalhando como se houvesse um forte vento.
Bert se moveu em direção ao rei para ajudá-lo, mas o príncipe entregou um remédio diferente, uma bolota cálcica menor, com cheiro de uma mistura de leite fresco e nozes. Não parou de tossir com o remédio, mas a escuridão no seu rosto foi diminuindo gradualmente. De um cinza forte, negro como um pinheiro nos olhos, a um cinza mais fraco, um branco escurecido até o branco natural de sua pele.
— Fhh — suspirou, cabisbaixo e de mãos apoiadas nos joelhos, como se sustentassem suas costas.
“Tio Ereken se ajoelharia ao rei ou somente iria saudá-lo para levá-lo ao cile?”, refletiu. Deu poucos passos em direção de Rheider Bloemennen. Tocou levemente os ombros do rei e disse:
— É melhor que vá descansar, Vossa Majestade.
— O que Cei Bert diz é verdade, Vossa Majestade meu pai! — palrou a princesa, suas feições estavam empalidecidas e, suando frio, tomou as mãos gordas e rígidas do pai, com calos enormes de suas batalhas em guerra. — Seu ministro dos conselhos pode lidar com isto, meu pai!
— Ainda há o que ser discutido, princesa — respondeu a ela, que mordeu o lábio e resvalou os olhos avermelhando para Bert. — Preciso… fortificar…
— Por favor, Vossa Majestade — disse Joris Cyreck, tocando o ombro do rei. — Já presenciei isso mais vezes do que gostaria de lembrar. É prudente descansar
— Neste caso, deixe que a continuo! — pedira o príncipe, fazendo um sorriso confiante. — Os ministros estão aqui, minha irmã também; e sei que visconde Cyreck não me abandonará com seus conselho. Até tenho uma… — fitou Bert de esguelha — ideia de como garantir auxílio de Kierlrún. Sei que até Sua Alteza Randi aceitaria o acordo.
Bert não gostava daquilo.
Rei Rheider Bloemennen meneou a cabeça e observou, protegendo os olhos da luz do sol e seus vassalos. O ministro dos grãos e o das moedas pareciam animados, mas não exibiam, enquanto o ministro dos conselhos continuava austero e rijo em seu dever. Um tênue e fraco sorriso surgiu no rosto papado e oval do rei, que fechou os olhos como em uma grande satisfação.
Cei Bert ofereceu a mão para o rei, a fim de ajudá-lo. Ele meneou um não com a cabeça. O cavaleiro saiu de sua frente. O rei tocou o chão com seus pés e empalideceu; fez força para se levantar, como se não tivesse se alimentado por semanas, e o negrume voltou debaixo de suas sobrancelhas. Arfou pesadamente; Cei Ressen e Cei Hilsen se aproximaram do rei; Bert abaixou o lábio — e sentiu uma tristeza acometer seu peito.
— Sangue meu, meu filho, Sua Alteza Howan Bloemennen, príncipe herdeiro, futuro e legítimo rei de toda Aarvier, será minha voz — anunciou o rei. — Suas decisões serão as minhas.
No mesmo instante os lordes nortinos e lestinos se ajoelharam, seguidos dos guardas e cavaleiros. Sua Majestade respirou fundo, e por um átimo de segundo Bert viu os olhos dele perderem a cor. Tentou agir mais rápido, mas assim que pensou em agir…
O rei despencou por todos os quinze degraus, estapeado por cada um deles.
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