Capítulo 33: O caminho das cinzas e do ferro (2)
“Quanto custa o preço da paz? Quanto é o preço da ação?”
Izandi, a Oniromante

— Como consegues dormir sobre um monte de papéis e uma mesa dura, meu menino-moça?
Ezekel cobriu o rosto e gemeu baixo. “Por que me lembrei desse dia?” Quando voltara para casa, sua testa sangrava feio. A ama de leite o socorreu e o boticário do paço costurou a ferida, feita por um galho que se revoltou contra seu braço fraco e atingiu o rosto. Depois disso, só pôde ouvir o choro de Sesje e o impacto do galho contra seu traseiro. Foram os últimos dias que a viu antes de Ocas Ciled.
Sua esposa dedilhou seu ombro.
— Estás pálido, meu amor — ela disse, com o rosto tisnado ficando tenso e triste. — Tiveste um pesadelo? Sentes-se mal?
— Não — suspirou, tocando a cicatriz no topo da testa. Piscou profundamente, então tocou a macia mão dela, a beijando. — Estou bem. Só me lembrei de uma coisa. Sonhei que estava com Sesje.
— É demasiado desgostoso ouvir do senhor meu marido que sonhara com outra mulher — resvalou o rosto, puxando a mão que Ezekel segurava. Ela fez um muxoxo e franziu o cenho, cheia de ira e presunção.
— Sesje é minha prima — se levantou, ajoelhou-se num joelho e tocou o grande ventre da esposa, coberto por um vestido de cetim e um longo xale de pele de coelho e renda. O beijou, levantou-se e beijou-a na mão de novo. — Não havia maldade… Nós dois éramos bem bobões, sendo honesto.
Ela cobriu a boca, afim de não ser ouvida, mas sua risada gritante foi como o urro de um grande boi. Deitou-se no sofá do escritório — limpo e reorganizado — do esposo, então ficou rindo ainda mais. “Gostaria de entender o que há de tão engraçado nisso”, pensou Ezekel. Haveria algum dia que poderia entender toda a graça em forma de mulher que tomou como esposa?
Enquanto ela ainda recuperava a respiração, entre súbitas recaídas de riso, desabotoou o botão do pescoço e deitou-se com ela. Não cansava de observar sua face, e permaneceu assim. “Não se por mais quanto tempo conseguirei fazer isso.” Beijou-a. Pôs a mão esquerda na coxa macia de Ofina, escalando vagarosamente por dentro do tecido. “Há algo terrível vindo, e não estou tentando impedir.’
‘Mas é ao menos possível impedir?”
Ofina projetou um olhar exequível, com os olhos semicerrados cheios de luxúria… no entanto, apontou para não muito atrás de si. Ezekel notou o alto garoto de cabelos loiros, coberto por uma armadura de aço reforjada, desviando o tímido olhar. O príncipe tentou desvencilhar-se do ato, ma sua esposa agarrou suas bochechas e focou-o no olhar.
— Ainda posso estar certa quanto ao sexo… dos dois — brincou ela, tanto com a voz quanto com sua mão. — Mas dois hão de ser demasiado difíceis de saírem!
“O que estou pensando? Irei proteger vocês dois, vocês três. Os amo.”
Ouviram batidas à porta assim que Ezekel abriu a boca para responder. Ele rapidamente se recompôs, abotoou as roupas e assumiu um tom de voz diferente. Ofina não pareceu se importar e continuou deitada. O id Baene voltou para sua cadeira e reorganizou os papéis, enquanto Theo dirigiu-se à sua senhora protegida, oferecendo-lhe o braço para ficar de pé caso quisesse. Ela não o quis.
Notificações das guildas comerciais, de tesouros e bancos, da guilda dos banqueiros e até das forjarias! Com os olhos bem abertos, manejou-as com cuidado e ficara cada vez mais atraído pelas letras nelas escritas. Contribuiremos com sua causa, Vossa Graça, com até duzentas espadas destinadas aos escudiamantes por três quintos do preço, além de cotas de malha, leu.
“Que deslucrativo!”, pensou. Dedicamos humildemente o valor de quinhentos lírios de prata em carnes para os dragões-reais, dizia uma carta da guilda dos mercantes. Ezekel riu disso. Uma carta pessoal do Banco do Dragão de Charyçás.
“Um terremoto desola vários bordéis e assassina vinte pequenos mercadores, e nada fazem. Digo que quase fui morto, então dispõem-me grandes somas.” Suspirou. “Está muito fácil para ser verdade.” Reconhecia seu carisma. Nunca fora um homem que chamava muita atenção senão pela aparência ou curiosidades pouco masculinas. “Um dragão sob meus pés não muda tudo.’
‘Graças aos Deuses não estão sujos de saliva.”
— A pessoa ainda está esperando, Vossa Graça — avisou Cei Theo, ajustando a espécie de estola que mantinha sobre as ombreiras torçaladas. — Deixo-a entrar ou a dispenso?
— Pode entrar.
A porta fora aberta com um empurrão cansativo, recebendo a luz do fim de dia, que permeava o escritório mais uma vez. Cei Sefriri entrou e prestou uma vênia profunda. Esperava-lhe. Quando voltara da praça à frente do Palácio, ela fora a primeira a o cumprimentar. Meus parabéns, Vossa Graça! Eles todos lhe obedecerão como bons filhos, tenho certeza!, ela disse, batendo as palmas cobertas pela manopla.
Não quero a obediência deles, respondeu. A Cei continuou lhe proteger pelo resto daqueles dias; e a via com cada vez mais frequência. Sentia profunda vontade de enviá-la para guardar sua esposa e aias; Theo era bonito demais, e de aparência muito forte.
Para onde Ofina ia, suas cinco aias seguiam-na — era assim desde que saiu de seu país, até mesmo em Ocas Ciled. No entanto, a Cei estava sempre à sua porta. Ezekel se sentia grato, mas…
Detrás da Cei, um homem de costas pouco firmes e cabeça raspada fez sua bengala ecoar com um rápido tap-tap, um que Ezekel reconheceu de suas épocas de estudante. A longa estola multicolorida e bordada com os doze símbolos da antiga Arda Ciled reluzia prateada com a luz dos cadeeiros à forma que andava o homem de longa barba esbranquiçada, contrastada com a mancha no lábio seco — cheiros de chocolate e pêssegos saltitavam.
Os ombros do id Baene se endireitaram, com um pequeno sorriso traçado nos finos lábios vermelhos do ex-estudante.
— Reitor Lesham!
O velho sorriu, apoiado na bengala de madeira com o pomo esculpido no formato de uma coruja-dragão.
— Justos Quinze — falou Lesham, olhando para cada vitral e afresco no escritório —, nunca imaginei que entraria aqui duas vezes nessa vida.
— Bom anoitar, Cei-mulher — falara Ofina em voz tensa, suavizada num instante para o reitor. — Que graça tê-lo aqui é, reitor Lesham. Oferecê-lo-ia vinho de manga, se tivesse aqui.
— E eu aceitá-lo-ia, se tivesse aqui, boa menina. Neste caso — tocou no ombro —, aceito na próxima vez que voltar as Ilhas onde a neve não olha.
Ofina lançou uma gargalhada muda. Estranhamente, Cei Theo fitava o velho reitor com apreensão, esfregando os dedos uns nos outros, suas narinas abrindo e fechando com o trincar do seu cenho. Ezekel estranhou dar atenção para um detalhe tão pequeno; e logo devolveu-a para o reitor, que sentou na cadeira à frente da sua mesa. Ergue os ombros e apertou as mãos enrugadas do Mestre dos Ciles.
— A que devo sua presença, meu professor.
— Não muito — respondeu, secamente fechando os olhos e suspirando. Ele observou as papeladas e livros ao redor do id Baene, vasculhando com os olhos os títulos nas lombadas. — As Cinco Leis Unificadas? Não era este o livro de Keyne Mustert, ideólogo por trás de Better Bloemennen? — Aceitou uma xícara de chá, traga por Cei Sefriri. — É um tomo perigoso esse que tens, Ezekel Godwill.
“Eu sei”, suspirou.
— Não tão perigoso, se nas mãos certas. — Deu de ombros. — Estranhamente, ajuda minhas audiências e julgamentos…
— A sabedoria de tirano — ironizou o velho, extasiado com o doce chá de fruta estrangeira. — Um tanto engraçado ouvir isso de um homem cujo ato mais justo foi contra sua vida! Mas não foi para estas coisas que vim. Este velho está velho e quer dormir cedo! — riu. Marido e mulher haviam se esquecido do quão estranho era o humor do professor que lotava salas e corredores para as aulas. Cei Theo ajudou Ofina a se levantar, e ela beijou a testa careca do velho, que respondeu balançando a mão esquerda em um gentil gesto de dispensa. — Seu marido está me vendo, garota!
— Não faça piada com idiotices, velhote.
Ela deu as costas para o velho reitor, voltando-se para o sofá mais uma vez.
— Gostaria eu também de saber como andavam meus alunos favoritos, mas, pelo jeito, estão bem até de mais. A criança nasce mês que vem, suponho? Gêmeos… Recomendo um bom chá de folha de framboesa vermelha… Sim, framboesa vermelha e canela! Um pouco de gengibre, camomila e urtiga-de-bailarina. Mil-folhas e sálvia… Possuem sálvia, certo?
— Ordenei minhas aias a arranjarem-me sálvia e também saliva-de-virgem. — Pôs o polegar acima do indicador. — E funcho, alforvas e hortelã.
— Boa aprendiz, boa aprendiz. — Fez um olhar orgulhoso, fitando a gestante. Depois, atribuiu o olhar para id Baene, cujos olhos azuis estavam amavelmente congelados no semblante soberbo da esposa. — Ótimo. Sendo assim, tenho somente isso para lhe dar, rapaz. — Enfiou a mão na manga da toga, retirando de lá um rolo. — Leia-o em paz, e antes do Conselho dos Cinco. São as vontades de Ocas Ciled e de todo o Cirdário, do Alto e do Baixo.
O id Baene recebeu-o, assentindo com a cabeça. Assim que pôs a mão no rolo de papel amarelado e selado, o velho reitor recebeu ajuda de Cei Sefriri para se levantar.
— Não tenho muito mais para fazer aqui, senão desejar-lhes felicidade. Até. E não parem de estudar.
Ezekel e Ofina acenaram para o velho homem, que saiu com os pés chapinhando pelo piso. A porta foi fechada vagarosamente. “Deveria tê-lo acompanhado”, pensou, voltando-se para sua papelada. Pouco depois, Cei Sefiri voltou.
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