Capítulo 33: O caminho das cinzas e do ferro (3)
“Quanto custa o preço da paz? Quanto é o preço da ação?”
Izandi, a Oniromante

— Boa-noite a vós também — falou, como se estivesse segurando isso há tempos. Pôs as mãos nas costas armaduradas, cobertas por uma capa verde-musgo, mas sua aparência não era como a das mulheres e homens que conheceu em Greanalg.
Sua armadura era de aço-cinzento adamascado, com visíveis camadas de metal reforjado sobre metal nos fornos da Cidade de Ferro, desde as grevas ao manto e o elmo simples, de onde os cabelos, com cheiro de óleos de pintura, cintilavam sobre as ombreiras torçaladas, e era somente uma testa mais alta do que Ezekel.
— Eu trago meus relatórios, Vossa Graça.
Ezekel cerrou os dentes e franziu o cenho.
— O que há hoje? Por favor, sente-se.
— Nada de novo — ela disse, ainda de pé. — Mas, bem, alguns preços pioraram, como de costume após ouvirem que um senhor quase foi assassinado. Ah, sim! Nas masmorras, afirmam ter capturado aquela que tentou matá-los, Vossa Graça.
Ezekel quase saltou do seu cadeirão. Ofina atingiu o braço do sofá com um soco alto.
A assassina ser capturada seria um dos piores cenários possíveis. Os irmãos não tinham planejado até aquele ponto, ao menos não de forma clara. Cada segundo do conselho de guerra dos três fora cansativo, na língua dos Godwill, a Língua dos Dragões-Reais e dos Draconeiros, com palavra escondida por trás de palavras, significados escondidos entre cada significado. “Foi detestável”, pensou. “E tão natural para eles.’
‘Este lugar não é para mim.”
Se escorou na cadeira e suspirou enquanto Cei Sefriri caminhava sem ritmo pelo escritório. Repousando a cabeça, o calor das paredes aquecia seus pensamentos. Distorciam-se. Eram como se as vozes de rei Rikard e Natharel dançassem por ela. Ofina se levantou, com ajuda, e tocou seu ombro. Ela pôs um sorriso sério no rosto, que de alguma forma conseguiu ficar ainda mais lindo, então sussurrou na sua orelha:
— O que estás tramando, meu homem?!
— N…
Parou de falar. Desvencilhou-se dela por um instante.
— Cei Sefriri, meu querido Cei Theo, poderiam nos deixar a sós por um instante?
— Às suas ordens, Vossa Graça — respondeu a Cei, sem ânimo. Theo prestou uma exagerada mesura, então sairam do escritório.
Ezekel se levantou. Havia deixado uma jarra com suco de uvas. A remexeu um pouco e encheu um cálice.
— Tem uma guerra vindo…
— Id Baene, disso sei, oras! — Bateu no seu ombro. — Minhas aias ouvem muita coisa: sei que está comprando metal, espadas, e que teve reuniões com os Goldwey, Melk e Danet, e que tem dado escapadas para a casa de Aretes da Escama de Kaios e filho de Faio.
Sutilmente, ela suspirou e deu um olhar cansado. Ezekel puxou sua cadeira e sentou-a nela. Ofina bebeu um gole do suco. “Doce demais”, pensara ela. Fez um gesto com a mão, e assim que seu marido se aproximou, fê-lo sentir o gosto do suco. Segurou a gola do terno woulevita, fazendo força para que não saísse do beijo.
O término foi como um estalo, e um fio de saliva arroxeada pendeu entre os lábios carnudos da esposa e os finos do marido. Sentiram um calor na pelve e na face; mas desviaram os olhos. Ofina repousou suas mãos no ventre.
— Tu realmente tens que fazer guerra?
— Não quero e não vou… — Cobriu o rosto. A Coroa dos Acenos estava em sua frente, deitada em uma almofada de veludo com bordas tricotadas em filigrana.
Tocou na cicatriz no topo da testa.
— Mas é meu trabalho, sou o id Baene. Me deram essa função e aceitei. — Sua esposa desviou o olhar, porém o esposo não ficou quieto: levantou-se, segurou as bochechas lisas e afagou os longos e cacheados cabelos que eram quase um manto de anéis. — Haverá paz, prometo. Nossos filhos nascerão e crescerão em reinos em paz.
Os eztrielizianos não faziam guerra no inverno. Ninguém além dos de Kierlrúm faziam guerra no inverno, nem mesmo a Casa Mynson, cujo lema era “Sempre Venceremos”, guerreava quando a neve congelava seus pântanos e planícies. O inferno surgiria ao fim do inverno — e o inverno estava acabando. A promessa confortou Ofina, que voltou para o sofá, tamborilando os dedos no ventre opado.
“As crianças nascerão na primavera.” Antes que percebesse, Ezekel tocou sua cicatriz e entortou a postura. “Guerra…”, pensou, e conforme a possibilidade ficava mais clara, seu coração acelerava dolorosamente. Mordeu o lábio trêmulo. O medo, porém, não vacilou em Ezekel.
Não conseguia imaginar qualquer palavra de conforto vindo de alguém. Decisões foram tomadas por si; coisas que uma vez decididas, não haveriam volta. Já tinha notícias de seu irmão, rei Rikard, que recebera um pássaro-de-voz do rei Rheider Bloemennen.
Sua fonte de espiões confirmou o que fora dito a partir de rumores; no sul de Aarvier, ninguém conseguia sobrepujar as ordens do duque Theolor Beesh — as muralhas de seu castro, os restos do antigo castelo de quando os Beesh se chamavam de reis, eram cheias de servidão e lealdade. “Se atentaram contra sua vida usando de magia, o que fariam quanto a minha, que supostamente tem mais valor?”
— Não vai acontecer nada comigo, Ofina. — Não vou deixar que aconteça guerra. Vou ao Conselho dos Cinco, e vou convencê-los a parar antes de qualquer conflito.
— Viril é o marinheiro que luta sem lutar, dizem no meu lar — melodiara em voz fraca. Logo um sorriso se abriu. Seu esposo, ainda que tivesse o mesmo rosto afeminado e cabelos caídos como os de uma donzela, de repente parecia um homem novo. — Agora acho que entendo isso, ainda que um pouco. Mui bem. Provavelmente lutarei no parto enquanto luta em palavras; mas não deixe que passe disso. Não quero ter que voltar pras Ilhas Coral, e muito menos virar uma viúva. Quero criar meus filhos nas Terras Livres — suspirou —, e recuso-me a ter menos que oito pestinhas com cabelos de trigo e pele-de-mar.
Ela bebeu o resto de suco no cálice, então voltou para a escrivaninha, querendo abraçar o marido. Pôs força para se erguer, mas suas pernas fraquejaram. “Gêmeos realmente são um peso a ser pensado”, disse-se ela. “Quando saírem, haverá mãos para os dois.” “Barcos às Ilhas”, pensou subitamente o esposo. “Quanto custaria um bom barco?”
Tomou uma folha limpa, todavia logo desistiu. “Produzir barcos em uma cidade sem mar é impossível. Produzir entalhes de lírio é caro e difícil. Vi com meus próprios olhos… Outrossim, contratá-los como guardas pessoais… Rikard casou-se com a irmã de uma. Talvez possa abusar disso.” E escreveu uma carta de aplicações de algumas somas do Tesouro Godwill à Ocas Ciled e à família marquesa Relác, com palavras complicadas e certeiras.
De chofre as portas do escritório foram empurradas com um estrondo. A Cei entrou a passos gritantes e de uma vez.
— Vossa Graça! — gritara ela. Ofina fechou o rosto.
Cei Sefriri correu até o id Baene e bateu a mão direita contra a escrivaninha. O id Baene se assustou com o comportamento intenso, todavia recuperou seu foco — após arfar como uma goteira —, percebendo que a Cei tinha nas mãos uma gaiola com um pássaro.
“Um pássaro-de-voz?”
Era um pássaro vermelho de pequeno bico amarelado, com as asas vermelhas erguidas. Observava os arredores como imaginava o id Baene que um espião seria. Cei Sefriri mexeu sorridentemente na trava da gaiola.
— Como funciona? Nunca pude ver um antes! Algum feitiço? — melodiou. Podia não serem palavras de conforto, mas Ezekel passou a gostar muito de ouvir a voz dela. Sentia pena dela, que jurara castidade para entrar na guarda, jamais podendo casar.
— É um animal — respondeu com um sorriso fraco —, não há magia. Só é esperto como nós somos.
— Que pena! — Levou o dedo, coberto pela malha escura da manopla, vagarosamente à cabeça do pássaro. — Até um pássaro pode fazer uma mulher feliz!
Ofina ergueu as sobrancelhas e fitou Cei Sefriri com o semblante cheio de desgosto, mas a cavaleira fingiu não se importar nenhum pouco. Assim que retirou a trava da gaiola, o pássaro levantou voo por poucos centímetros antes de parar de volta na haste onde estava de pé. Fitou o id Baene com os olhos amarelos fixos e profundos.
— I-i-i-d E-E-zekel?
— Sim, sou eu.
— O-o-o-o-o rei de Aarvier está-tá-tá-tá-tá-tá-tá-tá-tá-tá-tá-tá-tá morrendo. Ca-ca-caiu quase morto-to-to. Seu filho é bastar-tar-tardo tra-tra-tra-traidor!
Cei Sefriri assobiou.
— Peço que seja sábio, Vossa Graça, pois agora só restam as cinzas — ela disse, fazendo um carinho na cabeça da ave.
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