Capítulo 34: Sangre, sangre, sangre! (1)
“Sangue, sangue, sangue vermelho e branco
Assim a Chama Branca regozija
Sangue, sangue, sangue branco e vermelho
Martiriza, martiriza, martiriza!”
Izandi, a Oniromante. Excerto de “Mistérios da Pedra de Gelo”

Um dos homens à frente se mexeu primeiro. Com um esforço que deixava as batidas do seu coração quase ouvíveis, tentou dar um passo, e o barulho da neve sendo empurrada pelo seu joelho foi quase como uma tortura para todos que conseguiram ouvir. O vento gritava alto, poderoso e impiedoso, tão forte que era visível pela neve que arrancava do chão e disparava ao céu à esquerda, rumando longe e alto.
— Não vou continuar isso — afirmou. Deu as costas para a neve elevada como um montículo longo demais, então saiu de perto. Mirta abraçou seus antebraços.
Faina meneou a cabeça.
— Vamos acampar — falou, e os homens mais próximos repetiram o que disse. — Mas só até a nevasca diminuir.
Tinha que dar graças e agradecimentos aos deuses pela idade avançada do Chefe Valko. Já tinha nevado tanto que não conseguia mais enxergar nada, e a nevasca não dava sinais de parar. Mais de uma vez imaginou que estavam completamente perdidos.
O velho Tihimil a confortou e corrigiu em todas essas vezes. Não estamos. Vê aquela única estrela mais brilhante, entre aquelas duas nuvens com formato de nariz? Ela se chama Doisrya, e sempre aponta para o sudoeste. Estamos na direção certa, Ay rieq. Ver Doisrya brilhando no céu em breu estava lhe trazendo conforto. Mesmo que só um pouco.
Bastava. Bastaria.
Doisrya não mais brilhava; uma nuvem escura havia coberto sua luz há um tempo que já não sabia dizer. Não dormiu desde que teve aquele sonho. Não dormiu, mal comeu e mal conseguiu pensar em qualquer outra coisa. Quando a hora máxima chegar, abandone. “Abandonar o quê? Minha criança na mão dos Caras-Queimada?”
Sua barriga roncou, e com um olhar, notou que toda a gordura que tinha ganhado com a gravidez tinha sumido. As linhas de sua pelve tinham retornado, e tão marcadas que conseguia senti-las com o toque mesmo com a roupa por cima. “Abandonar o quê?”
Bastou que ouvisse o estalido das fogueiras que suas pernas cederam.
— Ay rieq — falara Mirta. Faina desviou os olhos dela, que então se abaixou um pouco e tocou no ombro da mais alta. Quantas vezes Mirta tinha tocado seu ombro? Flocos de neve atingiram a touca na sua cabeça. — Ay rieq, vamos para perto da fogueira. Perguntei algo a um homem mais velho.
— O quê? — Tirou os olhos da neve no chão.
— Ele disse que estamos perto do bosque deles. — Cerrou os dentes, que tremiam de frio junto das suas sobrancelhas. — Faltam uns dois dias, ele disse.
Faina lufou um vento quente, que Mirta aproveitou e pôs sua cabeça perto, como se fosse uma fogueira. A mãe riu com o ato, de coração aprazido, então soprou um ainda mais quente e beijou a testa da amiga. “Obrigada.” As duas saíram pouco depois das proximidades da barreira de neve alta e densa, que à alta não parecia tão alta assim. “Eu poderia ir sozinha”, pensou, enquanto chegava ao braseiro aceso. “Cruzaria esta neve toda com ela batendo no topo da minha canela e chegaria na floresta.”
Seus homens tinham ficado bem mais tempo no primeiro acampamento do que esperou. Derrubaram muitas árvores-sangue e nevadeiras, e até abetos que conseguiram achar. Montaram trenós para carregar mais árvores-sangue. Faina sugeriu que fizessem também para o transporte, mas tinham pouquíssimos cavesões para isso.
Os cães de caça eram muitos e igualmente fortes, mas não tinham força para levar quase quinhentos guerreiros armados e mantimentos, além de que eles não queriam deixar as escravas de cama para trás de maneira alguma.
Uma delas servia dois homens a céu aberto, com neve salpicando suas costas e o vento gélido a fazendo tremer e gemer, mais de frio do que de prazer. Faina desviou os olhos e mandou que a entregassem algum cobertor ou que ao menos fossem para dentro de alguma tenda; o porém era que o vento estava forte demais para que alguma tenda fosse erguida. A fogueira vacilava demais, bruxuleava como se fosse apagar a qualquer instante.
O velho Tihimil se reuniu com um dos seus homens e se sentaram em um trenó cheio de troncos de árvore-sangue. Uma escrava de cama, que Faina percebeu ser ao menos descendente de Bárbaros, se aproximou dele e retirou lascas da árvore, que começara a sangrar uma seiva ainda líquida. A mulher esfregou as mãos com a seiva, então sua feição foi tomada por um alívio que fez os ombros enfraquecerem e suas bochechas avermelharem.
“Ah”, lembrou-se ela. “Meu homem tinha feito o mesmo. Me entregou a seiva e a dividiu comigo, então bebemos e comemos, e então me teve na cama.” Abriu um curto sorriso. “É saudade? Mal lembro seu nome, ou rosto. Onde ele deve estar?”
— Krazhii… — ciciou; o fruto daquela única vez. Se ajoelhou perto do fogo. Logo mais fogueiras surgiram e ouviu água borbulhar. — Espero que cozinhem algo doce — disse. Seus olhos voltaram para as nuvens. Os Luas haviam se escondido no meio das nuvens, mas seus olhos ainda jorravam luz, mesmo que opaca, para toda a terra coberta por neve. “Acho que vou pedir para Mirta me contar mais uma história. Preciso dormir…”
Abandone. Abraçou os joelhos.
Uma escrava de cama, uma garota alta de cabelos como areia, veio lhe entregar comida. Mirta pareceu não vê-la, pois estava de joelhos, perto da fogueira. A Rieq agradeceu, então pegou o guisado de peixe com batatas, cevada e cebola, o pouco de carne seca e um copo de leite esquentado.
Pôs a carne seca na boca primeiro e a mordeu; mas sabor nenhum a veio. Retirou os espinhos do peixe e comeu a carne macia, junta da batata cozida, mas não veio gosto nenhum à língua. Conseguia relembrar o gosto do suor e da seiva de árvore-sangue, que saboreou há mais de nove meses, mas não o da carne que comeu agora. Bebeu o leite de uma vez, então soltou o copo.
“O que estou fazendo aqui?’
‘Tenho altura para ir embora sozinha, adentrar o bosque deles sozinha. Não quero abandonar meu filho! Ele está com fome! Com certeza o colo de outra não o faz tão bem como o meu, e não o faz feliz!”
Fungou e secou o olho. Pôs força nas pernas, que afundaram os pés dentro de neve macia, então se ergueu e foi até onde um bando de seus homens buscavam algum prazer com escravas de cama. O vento frio chocava com a pele nua deles; e a Rieq viu mais do que o rosa, negro e roxo das genitálias: lorigas de couro e espadas deixadas no chão.
Olhou para os lados antes de se abaixar e segurar o cabo de uma espada de metal de vulcão: sua lâmina tinha um sulco escuro, com respingos mais escuros por todo o corpo e fio, e assim que tentou tirá-la do chão, a espada jogou todo seu peso contra o chão.
A mãe arfou e gemeu. Ficou de cócoras de novo e puxou a espada, e se levantou com um grunhido de dor; como se um choque tivesse cruzado seus músculos. “Como isso pode ser tão pesado?!” Sentiu espasmos na sobrancelha e um nó na garganta. Fechou os olhos e suspirou.
“Tenho fé de que só querem conversar. Desde que me devolvam ele, não me importo de conversar. Eu não os odeio.” Eram filhos da sua terra, de onde o sangue do Primeiro Arrundria percorreu e percorre. “Talvez seja isso que desejem”, concluiu. “Meu sangue. Querem me sangrar para aguentarem o frio, como o Primeiro Arrundria fez com os Primeiros Chefes.”
As escravas sempre lhe contavam quando era menor. O Primeiro Arrundria desceu da Montanha do Leão com espada e escudo em mãos, rumando às batalhas à sombra da montanha.
Armou suas mãos com raios, e fazendo o céu rugir, derrotou os Valke e os Ryba. Os Ryba fugiram, e vendo seu poder, o Valke se ajoelhou e pediu clemência, e ele os deu poder para aguentarem o frio e resistirem ao metal. Elas lhe repetiam o canto quase como uma adoração, sempre quando penteavam seus cabelos, lhe teciam roupas ou a banhavam:
‘Vos ouço’, disse o Poderoso
Ruge ao céu e diz: ‘E sou piedoso
Minha clemência será lembrada.
Sou o Grande, e tu serás minha espada,
Pois deus poderoso eu sou
E vós me seguirás aonde eu vou.’
, dizia a canção. Quase como uma boa lembrança, recordou-se de como as Esposas de Deus brigavam quando as escravas lhe cantavam; nunca pôde ouvir depois que o Primeiro Rieq conquistava os Ryba. Mirta ficava em silêncio, e assim que as mais velhas começavam a brigar mais feio, as duas iam embora brincarem juntas no bosque do paço, longe de todo o resto da família paterna e dos olhos dos eunucos.
— Mãe Primeira virei, e meu filho ainda verei — completou. Erigiu os ombros e olhou para o céu. Os Luas estavam mais visíveis, disparando de longe muito mais luz do que nos últimos dias. O vento atingiu seus cabelos negros-cinzentos, que pouco farfalharam. Notou a grande fogueira do acampamento arder mais forte.
Deu meia volta e encontrou com Mirta, que ainda estava ajoelhada.
— Ei, Mirta — chamou. Vendo que a sacerdotisa estrangeira não tinha respondido, ficou em silêncio e se pôs de joelhos perto dela. Nunca rezara para os deuses da mãe e da amiga. Comia os peixes, vez ou outra experimentava os vestidos e ouvia as histórias que contavam; mas não os conhecia. Conhecia o Deus Fogo, ele brilhava no céu; conhecia o Deus Rígido, afinal, viva sobre suas costas; e nunca vira o Deus Azul. Conhecia o Deus Branco.
A ira dele estava sob e sobre sua cabeça. “Está enfurecido porque me afastei demasiado do nosso sangue?”, perguntou-se
Viu Mirta abrir os olhos.
— Ei, Mirta — chamou de novo. A sacerdotisa virou a cabeça, abrindo um sorriso de alguém que estava com paz no coração. “Ela é uma pessoa do calor”, pensou Faina.
— O que foi, Ay rieq?
— Eu preciso de alguém inteligente, vem comigo, por favor.
A sacerdotisa se levantou.
— Sempre à sua vontade, Ay rieq. — “Por mais dolorosa que ela lhe seja.” Ocultou a dor com um sorriso.
Resvalou o olhar por um instante. Teve um sentimento triste ao olhar para a amiga. A Rieq sorriu e pôs a mão no ombro dela, então foram embora. Andavam por onde seria uma pradaria durante o Dia, quando o Deus Fogo, senhor de todos os guerreiros, ardia sobre as nuvens. O solo possuía leves ondulações que só conseguiam ver por causa das camadas e camadas do tapete plácido sob seus pés, que nem as fogueiras conseguiam derreter.
A luta das fogueiras para queimar estava diminuindo. Logo centenas de homens e escravas se reuniram ao redor delas. Um cão passou e se esfregou na coxa de Mirta, que abriu um curto sorriso antes que o animal fosse embora, olhando para seu dono. As duas deram mais atenção para os trenós, que estavam agora sem boa parte da madeira que tinham conseguido derrubar, e o alimento diminuiu. “Difícil imaginar que há animais selvagens nesse lugar”, refletiu Mirta.
Tihimil Valko estava de pé quando enfim chegaram. O velho homem estava coçando seu queixo, ocultado por sua oleosa e grisalha barba. Suas feições sisudas e cálidas se estreitaram para olhar para o céu. Buscava Doisrya atrás das nuvens?
Não fazia diferença para os homens mais novos ao seu redor, que se divertiam em alguma espécie de competição com pedaços de metal do tamanho de polegares, que eram jogados alto. Assim que ouviu os passos abafados das duas, o Chefe virou para trás e abriu um sorriso.
Faina levantou os braços e abraçou o velho homem. Suas feições encouraçadas pareciam mais leves, como se uns vinte anos tivessem voltado. Sua postura estava menos inclinada, e seu martelo de guerra descansava a menos de meio metro de onde estava.
— Tenho boas notícias, Rieq — falou o Chefe após o abraço. Seus homens se levantaram e abaixaram a cabeça, saudando Faina. Mirta também saudou o Chefe da Primeira Tribo, que beijou a bochecha embranquecida da mulher. — Hum — pigarrou. — Estamos bem próximo do nosso destino, Ay rieq. O bosque onde o batedor falou fica não muito longe daqui, e acabo de descobrir que já fui nele mais de duas vezes quando tinha trinta Noites! Só há uma clareira lá, não nos perderemos.
Faina fungou e lufou profundamente.
— Que notícia maravilhosa… — ciciou e fungou de novo. Secou a lágrima no braço nudo. — Continue, por favor.
— Hum… Bem — olhou para o céu —, se a nevasca diminuir mesmo que só um pouco, conseguiremos avançar mais hoje. O ideal seria que não precisássemos.
— Por quê?
— Reconhece aquele rapaz ali? — Apontou para um jovem no trenó, que estava com os olhos calorosamente presos em Faina. — É meu tataraneto, Ludinyask. Disse-me há pouco que te amou a primeira vista… Huhum! — pigarrou; o garoto avermelhou. — Ele trouxe a notícia de que conseguiu vinte arqueiros Bárbaros.
Regras dos Comentários:
Para receber notificações por e-mail quando seu comentário for respondido, ative o sininho ao lado do botão de Publicar Comentário.