Capítulo 34: Sangre, sangre, sangre! (2)
“Sangue, sangue, sangue vermelho e branco
Assim a Chama Branca regojiza
Sangue, sangue, sangue branco e vermelho
Martiriza, martiriza, martiriza!”
Izandi, a Oniromante. Excerto de “Mistérios da Pedra de Gelo”

Faina arfou.
— Não quero precisar deles — afirmou. O homem de mais de noventa anos fechou o rosto. — Eles disseram que só querem conversar, só isso…
— Todos nós sabemos que não, Ay rieq. Como um Chefe, já os enfrentei mais vezes do que posso contar. Ao lado de outros Chefes, ao lado de Bárbaros. Eles não ceifariam minha amiga Auta se quisessem conversar.
A mãe fechou os olhos e deixou o pescoço desabar. Abraçou os próprios braços de um jeito quase patético. O coração deu uma batida rápida e profunda, feita um espinho furando fundo na pele. Mirta deu um passo à frente e tocou o cotovelo da amiga, um ato de calmaria para o coração de Faina. A sacerdotisa continuou, como se fosse a Voz da mulher.
— Eu sei. Se quisessem conversar, estariam aqui agora. Acha que querem a matar, Chefe Valko?
O velho abaixou a cabeça.
— Imagino que sim. Nada me faz sentido além disso.
A resposta fez Faina cerrar os punhos.
— Se esperarmos os arqueiros chegarem, estaremos protegidos à distância. — O Chefe se virou para o tataraneto. — Disse que são todos muito bons, não? Viu, a resposta foi ótima. Vamos entrar na floresta separados em grupos bem dispersos, com arqueiros um pouco para trás, escondidos entre as nevadeiras. Ludinyask disse-me que conseguiam disparar em locais apertados; que eram bons caçadores em floresta densa. É perfeito.
Faina abriu um pouco os olhos.
— Ainda melhor: temos muitos números. O batedor disse que eles eram quantos? Não faz diferença, somos mais que quinhentos. Os mataríamos facilmente.
— E nesse caminho, matariam Krazdoro — retrucou Mirta. O Chefe fechou um dos olhos. — Sou mulher e não entendo de guerra, senhor Chefe, todavia, me é arriscado de… demais isso.
“Brisa, calor, o vento calmo da manhã, água em copo, um pinheiro cheio de folhas. Neve parada. Uma floresta cheia. Pássaros dormindo. Ovelhas cansadas. Um barco parado no porto.”
— Não se reagirmos mais rápido. Polegar é rápido como uma flecha, com certeza conseguiria se esconder e encontrar onde estão escondendo Krazdoro. — Cruzou o braço esquerdo, então o mexeu como se uma espada decapitando. Faina conhecia o movimento muito bem. — Ele o acha, mata os que lhe guardam, tomam o bebê e sai escondido, não, Polegar?
O homem baixo, que estava no trenó, recebendo um copo de vinho quente de uma escrava, se levantou. Faina o olhou de soslaio. Um gato, imaginou. Tinha cabelos cor de areia, quase tão brancos quanto neve fresca, e sua altura era a mesma que a Arrundria teve aos oito anos: menor que Mirta adulta, ainda que ele tivesse no rosto meia dezena de rugas de expressão e uma barba a fazer, e sobre ele, uma roupagem grossa e várias peles de urso.
— A depender de quantos Caras-Queimada tem lá, consigo fazer isso sim. — Puxou sua adaga: escura e pontilhada, em formato de um triângulo longo. — Chego, furo e vou embora. Não deve ser tão difícil.
— No pior dos casos — continuou Tihimil —, meu querido amigo, retorne e nos conte tudo. Seremos muitos, Ay rieq. Conheço essa floresta. Confie em mim.
— Eles tem um refém, meu único filhinho… — ciciou Faina.
Tihimil pôs a grande e grossa mão sobre os olhos.
— Queria a sabedoria de Sakonnya — murmurou. Pensou Faina que era parecida com a Mãe de Muitos. Sakonnya não tinha mãe, e agora Faina também; e nem pai, marido… Mas a antiga Rieq teve seus filhos consigo até à morte. O seu estava nas mãos de homens que… “Eu não os odeio”, murmurou-se. “Os aceitarei no meu coração.”
O velho quase teve os olhos saltando do rosto. Ficou de frente ao rosto da mãe e segurou suas bochechas. Faina semicerrou os olhos e tentou desviar o olhar. Seu peito caiu, seus músculos das costas enfraquecendo; a batida do coração fora pesada. Quieta…
— Ay rieq, me parece um bom plano — disse Mirta.
— E se falhar?! — bravejou a mãe. — E se Polegar for pego? E se eles se irritarem? E se forem mil?!
— Podemos…
— Eu sou a Rieq e não quero isso! — interrompeu, cerrando os punhos. — Não quero isso!
— É inocência demais acreditar no que ele falou, Faina! — bravejou o Chefe, e Faina ergueu o pescoço e peito de susto. Mirta segurou o vestido de Faina e acenou com a cabeça. — Ouça este velho! Se quisessem conversa, não teriam matado sua mãe! Não teriam levado seu filho e sabe-se-lá os deuses o que fizeram com Nikol!
A mãe fungou. Sua amiga apertou sua mão mais uma vez, fazendo-a ceder. Faina abaixou a cabeça, e Mirta ficou na ponta dos pés.
— Pode funcionar, Ay rieq.
— E se não funcionar?
— Mas e se? — Sua amiga ergueu a cabeça, a olhando de cima. Mirta piscou e buscou na sua mente a memória exata. “Os registros da Biblioteca do Monastério… Sim, o Anistória: a Velha Política.”
A sacerdotisa estrangeira ergueu as costas e olhou diretamente nos olhos de Faina.
— Nas Ilhas Coral, há trezentos anos, houve uma batalha de sucessão… a história é longa, mas um lado venceu. E eles não eram os Leol. Eram bastardos, e esses bastardos puseram seu filho no trono. Para justificarem seu ato, o casaram com uma princesa que sobreviveu à guerra. Em Auria, o mesmo aconteceu com os Godwill e seus mestres, os Greanall. Quando detronaram os loucos, sua linhagem não os permitia a coroa, então casaram uma princesa com seu eleito rei, e até hoje são reis de Greanalg.
Faina suspirou; um ar quente que misturava alívio, medo e susto. O velho Tihimil abriu e fechou a boca, tentando entender o que a sacerdotisa quis dizer em tom mais claro.
— Então… não matariam meu filho em retaliação… porque podem casá-lo com uma princesa deles?
— Seria estranho de Norq’Riq afora, mas talvez sim.
Um choque percorreu as costas da Primeira. “E então o criariam como um deles, adorando seus deuses e queimando a face, e quando crescesse, sangraria por eles.” Sentiu o coração amargurar. “Não, não, não! Krazdoro será criado nas Ilhas Quentes junto de Mirta e comigo, ou onde ele quiser!” Só de imaginar o rosto do filho, desfigurado pelo fogo, seu estômago retorcia.
“Brisa, calor, o vento calmo da manhã, água em copo, um pinheiro cheio de folhas. Neve parada. Uma floresta cheia. Pássaros dormindo. Ovelhas cansadas. Um barco parado no porto. O mar quieto. O sorrir de uma criança. Da minha criança.”
— …Certo — ciciou com a voz trêmula de medo e ira, deixando um ar pesado fugir da boca. — Posso fazer isso — respondeu a Tihimil em alta voz.
— Ótimo! — disse o velho, com as flácidas bochechas levantando de tanto alívio. — Pelas Ilhas Quentes! — Olhou para o céu; viu Doisrya no firmamento, que ressurgia no meio das nuvens, brilhando forte.
E não somente ela. Conseguiu ver Malerya, Tatarya, Shua e Fairya. A constelação da Espada estava inteira no céu, repintada no meio do breu da Noite. Mirta cobriu a cabeça ao perceber uma ventania forte, que os atingiu feito o último suspiro de um animal antes da flecha o atingir. E assim que o vento passou, viu o rosto de Faina centrado, e acabou por sorrir pela amiga.
“O caminho às Profundezas será para nós duas, então.”
— Ainda temos cinco dias, pela minha contagem — falou Mirta aos que lá estavam. Tihimil e Polegar trocaram um olhar de camaradagem, e a Primeira meneou a cabeça levemente.
— Muito bem — respondeu Faina, e nada mais falou na conversa.
As duas logo deixaram os homens para trás. Tihimil ordenou que um rapaz que passava chamasse os capitães da hoste, e enquanto isso as duas se aproximaram do fogo mais uma vez, uma fogueira menor onde descansavam guerreiros mais novos.
No entanto, notou que sobre um montículo de neve estava sentado Imanyn Vladein, com faca e madeira em mãos. “Ele estava aqui? Nem me lembrava dele. Pensei que tinha ficado com Razin…” Ele cortava pedaços retos e finos da pequena tora de abeto em um passo quase musical. Quando terminou, havia um retângulo pouco maior que sua bota.
— O que está fazendo? — perguntou Faina, com Mirta ao seu lado, com olhar curioso e aprazido, como quem se lembra de algo interessante que vira na infância. Trocou olhares rapidamente com o homem, que demorou para perceber quem era.
Imanyn abaixou a cabeça e engoliu seco.
— Eu… estou fazendo uma ideia que tive…
Faina ficou de cócoras e bocejou.
— Está rente à Rieq, me mostre — zombou.
O órfão de Skjá engoliu em seco e tirou do manto um segundo retângulo e um novelo de lã amarrado em linhas. Amarrou as tabuletas nas botas, então se levantou. Faina ergueu uma sobrancelha, enquanto Mirta ficou com olhos quase arregalados. “Ela teve uma ideia útil? Que ótimo!”
— É para compactar a neve, imagino?! — falara Mirta, surpresa; a amiga quase ouvia seu coração batendo.
— S-sim!
Imanyn imediatamente saltou em cima do montículo onde estava sentado, e invés de afundar muito, afundou muitíssimo pouco, espirrando mais neve para os lados do que para dentro. Sentiu-se tão vitorioso que pôs as mãos na cintura e ergueu o pescoço. Mirta tocou sua costela e questionou:
— Consegue fazer mais desses?!
— Acho que sim…
— Filho de Skjá, podes ter feito demasiado benéfico à Rieq!
O homem avermelhou. Faina riu baixinho enquanto Mirta fez um sorriso amarelado, e logo se corrigiu. A Rieq acenou para outro guerreiro mais jovem, que amolava seu machado em uma pedra, e para um que estava deitado na neve, com uma escrava deitada sobre seu peito. Os dois se levantaram com olhos cansados, especialmente o segundo, mas a Rieq fingiu que não viu. Beijou-lhes na testa.
— Ajudem-me e ajudem aquele homem. — Virou o rosto para Imanyn Vladein. — Façam o que ele mandar, e se precisarem, chamem outros.
Os rapazes acenaram.
A nevasca ficou ainda mais fraca. Faina conseguiu ver mais estrelas no céu. A constelação da Espada estava brilhando e apontada para o sudoeste, enquanto a Coroa parecia um arco retesado, mirado em direção ao norte. Ela olhou muito bem para as estrelas e respirou fundo. “Sairemos em breve, mui em breve”, pensou.
Mas ao virar o rosto para as outras fogueiras, reparou uma comoção.
Havia um homem coberto com pele de baleia-gritadeira, apertada em toda a pele; mas sobre a couraça peluda, pendia uma camisa brilhante, feita de centenas de milhares de anéis entrelaçados e brilhantes. Um dos homens da sua hoste o notou e desembainhou sua espada. Faina suspirou e correu na direção dele, mas já era tarde.
Num instante, o com a pele de baleia retirou uma espada brilhante e limpa, que ressoou alto com o impacto dos metais. Foi embate de metal contra metal, homem contra homem rugindo. Seu homem pôs força contra, mas o de rosto esbranquecido girou sua perna para trás junto com o peito e cotovelo da espada, e a lâmina pontilhada deslizou pelo metal puro e liso, fazendo um riscar como o grito de um fantasma.
O homem se recuperou, por sorte, e se abaixou enquanto o com a pele fez um golpe horizontal mirando seu plexo. Deu uma cambalhota para frente e se ergueu, e o da pele se pôs em riste mais uma vez, atacando como a pontada de uma agulha. Seu guerreiro defendeu girando a espada e batendo na horizontal, e uma faísca surgiu brilhosa.
Faina se aproximou com passo ainda mais rápido, arfando. Tinha pernas longas, mas nunca fora boa em correr; suas pernas afundavam na neve. Mas os do da pele pareciam que não. Ele girou um dos pés, que afundou na neve, e jogou o corpo para baixo, desviando de um golpe horizontal. Assim que a espada passou a seis centímetros do seu nariz, pôs força monstruosa na coxa e se levantou, acertando o pomo da sua espada no gogó do guerreiro.
Antes que fosse dar o golpe final, vários homens cercaram o encapuzado. Ele meneou a cabeça e ergueu as mãos, com espada segurada só no pomo, por dois dedos. Os vários tinham machados em mãos, e alguns se prepararam para matá-lo no próximo instante. O encapuzado suspirou como se desistisse da vida, e o lufado da sua boca parecia mais vermelho do que branco.
— Chega! — bravejou Faina, há poucos metros; ao seu lado, vinham mais de vinte. — Chega!
O da pele abaixou o capuz de cabeça de leão-do-mar, e Faina cerrou os dentes com força. Um rosto esfacelado, mais branco do que uma pele permitia ser; roxa em outras partes, um negro escuro próximo do olho e um rosa sem cor e doentio cobrindo o nariz.
— Éw tu a Gharrap dos Pisa-Terra?
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